CRÔNICAS

Padre Marcos

Em: 17 de Novembro de 1995 Visualizações: 10769
Padre Marcos
Os seminaristas de Coari eram obrigados, anualmente, a fazer um retiro espiritual. Durante três dias, era proibido brincar, rir, estudar, bater papo. Silêncio absoluto. Todo mundo se concentrava exclusivamente na meditação e na oração. Um padre era escolhido como pregador, para orientar, com suas palavras, a reflexão sobre determinados temas. No final, cada um de nós saía arrasado, na maior “fossa”, com um sentimento de culpa por ter feito algo de errado, que não sabíamos bem o que era. O retiro era triste.
O ano de 1960 foi atípico, porque o pregador do retiro chamava-se padre Marcos Wenninger, o que prometia um retiro alegre. Na sua primeira fala, ele entrou na capela com um balão vermelho, vazio. Contou a história do João, um menino que morava no bairro de Chagas Aguiar, em Coari. João tirou boas notas na escola, achou que era o bonzão e sua cabeça se encheu de orgulho. Aí, o padre Marcos deu uma soprada no balão. João foi jogar bola, fez dois gols e acreditou que era o rei da cocada preta. Sua cabeça continuou enchendo de soberba e aí o padre Marcos deu outra soprada.
João continuou obtendo pequenos êxitos e, se sentindo o “o” do borogodó, aproveitou para humilhar os outros. Cada sucesso, era uma soprada no balão que o padre Marcos dava. E, de soprada em soprada – pou! – o balão explodiu. Com ele, a cabeça do João. E a nossa também. A soberba e o orgulho besta não resistem a uma lancetada de alfinete.
Esse foi o retiro mais animado da história do seminário de Coari, com lições profundas, didáticas, claras e, sobretudo, alegres, graças à capacidade de comunicação do padre Marcos, que sempre soube estabelecer cumplicidade, sobretudo com os jovens.
Lembrei-me dessa história agora que o padre Marcos, depois de 56 anos, volta para os Estados Unidos, deixando uma enorme saudade entre todos nós que convivemos com ele. Ele sabe disso. Mas não custa nada repetir: nós já estamos com saudade. E gostaríamos de dizer isso pra ele. Quando do seu falecimento, em 2009, ressuscitei uma crônica publicada no dia 17 de novembro de 1995 em A CRÍTICA, intitulada “Padre Marcos”. Ela dizia o seguinte:
Os primeiros padres redentoristas chegaram a Manaus, vindos dos Estados Unidos, em 1943, em plena guerra mundial. De lá até hoje, passaram pelo Amazonas aproximadamente cem missionários norte-americanos. Mais de vinte morreram. Alguns abandonaram o sacerdócio. Outros retornaram ao seu país de origem. Atualmente, existem apenas catorze trabalhando na Vice-Província de Manaus. Um deles é o padre Marcos Weninger, que aqui chegou em abril de 1951.
Hoje, 17 de novembro de 1995, às 18:00 horas, o padre Marcos estará entrando pela porta principal da igreja de Nossa Senhora Aparecida, numa procissão, acolitado por uma fila dupla de 25 meninos, simbolizando os 50 anos em que tornou-se membro da Congregação Redentorista, quando fez sua profissão de votos. Em seguida, vai concelebrar uma missa solene com todos os seus confrades. Redentoristas e paroquianos de Aparecida comemoram este meio século de dedicação ao trabalho pastoral.
Quem conhece o caráter do padre Marcos, sabe que ele é discreto e não gosta muito de oba-oba. Mas não há como fugir da homenagem: meio século é uma vida. Para alguns, são muitas vidas. Durante esse período, ele administrou sacramentos, anunciou a boa nova, catequizou, pregou missões e retiros espirituais, orientou vocações sacerdotais, conviveu com a juventude, fez viagens de “desobriga” pelo interior do Amazonas, varando paranás e igarapés. Enfim, acabocou-se e, como caboco, junto com o cálice, aprendeu a usar a cuia. Ele está no meio de nós.
Quem conviveu diretamente com o padre Marcos, como eu, sabe que foi um privilégio tê-lo como confessor no seminário redentorista de Coari, talvez porque a imagem do Ser Supremo que ele oferecia era a de um Deus justo, mas tolerante. Não era a de um carrasco, pronto a punir o primeiro vacilo. Era a de um Deus magnânimo, bom, que sabia perdoar. Um Deus legal, compreensivo. Enfim, um Deus que é Pai e não Delegado de Polícia.
Quando se tem a sorte de ser apresentado a Deus pelo padre Marcos, aquele clichê desgastado de um ser divino carrancudo e vingativo cede lugar à imagem de Deus alegre, que celebra permanentemente a vida, que atende ao nosso pedido insistente e diário de não olhar para os nossos pecados, mas  para a fé que ilumina a igreja e nossas ações.
Mais do que ninguém, este missionário conseguiu compreender a alma do jovem, vivenciando as grandes mudanças de seu tempo. Na adolescência, no meio de tantas dúvidas e incertezas, é muito importante ouvir o conselho de alguém experiente em que se confia. Milhares de jovens, nessa idade, tiveram a sorte de ouvir a palavra carregada de sabedoria do padre Marcos, que possui, além disso, extraordinária capacidade de escuta.
Seus sermões são construídos com uma linguagem clara e didática, imagens fortes, compreendidas por todo mundo. É um  raro dom poder manter a atenção de um público de fiéis tão diversificado. Padre Marcos consegue, porque seu discurso é alegre e instrutivo, tem gosto de nescau, de festa, de páscoa da ressurreição, de sino de natal, de aleluia, com peixe no prato e farinha na cuia.
Santo Agostinho, um dos maiores pensadores da Igreja, resumiu a essência de sua doutrina com uma frase mais ou menos assim:
- Ama a Deus e ao próximo como a ti mesmo e pinta os canecos.
Ou seja, vale tudo, desde que exista amor e solidariedade para com o outro. Acho que essa também foi uma das grandes lições que o padre Marcos deixou para os jovens que com ele conviveram. No momento em que a fé da gente fica no fio da navalha, é crucial conhecer alguém como o padre Marcos, uma cara muito do seu pai d´égua. (Ele merecia que devolvessem a sua bicicleta, roubada há mais de 40 anos).

P.S - Fotos de Cláudio Nogueira 

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4 Comentário(s)

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Vince Aggeler comentou:
05/01/2015
Muito bem - gostei - bem feito. E a foto parece q a foto foi tirada naquela mesma aula que Voce descreve. Concordo que meu confrade Redentorista foi assim mesmo. Vivia de brincadeira, sempre com algun brinquedo na mao. Parabems.
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Claudio Nogueira comentou:
05/01/2015
Bonita crônica, merecida homenagem. Eu gostava muito dele; quando foi embora senti sua falta. Ele depois do almoço ia para dentro da igreja e ficava rezando ou lendo lá. Quando solteiro, por muitos anos, ia lá trocar uma idéia com ele. Conversamos muito, vários assuntos.
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Nelson Peixoto comentou:
04/01/2015
Sim, belíssima, estonteantemente feliz em ler toda essa narrativa como quem assumiu a alegre e santa vida do Pe. Marcos. Veja que já republiquei no perfil dos Emissários do Redentor. Vaaaaaleuuu, Babá!
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Julio Afonso comentou:
04/01/2015
José Bessa, seu texto traça, com detalhes, o perfil do Padre Marcos. Um Missionário Redentorista moderno, realizador e responsável pela educação cristã de uma grande geração de jovens coarienses. Sou grato a ele por ter me dado a oportunidade de ir estudar no Seminário Redentorista, em Benevides. Os ensinamentos ali adquiridos me deram a base do ser humano q sou hoje. Guardo respeito pela memória do Pe Marcos e tantos outros jovens padres americanos q dedicaram suas vidas as populacões amazônicas.
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