CRÔNICAS

Alma penada, rabilonga e crocoió no vestibular

Em: 27 de Abril de 1992 Visualizações: 13654
Alma penada, rabilonga e crocoió no vestibular

A mesquinharia é inimiga do saber.

Se você, leitor(a), tivesse vivido mais de seis anos em Paris, cursando o doutorado com Ruggiero Romano, historiador especializado na conquista da América, como é que se sentiria voltando a Manaus na qualidade de professor de História do Amazonas? É isso aí. Eu me sentia o  bonzão, o próprio "o" do borogodó.

Em meados de 1983, o Bonzão aqui votou de Paris para dar aulas na Universidade Federal do Amazonas, depois de haver vasculhado documentação sobre a Amazônia nos arquivos de Portugal, Espanha e França. Entro cheio de moral na sala da primeira turma do recém-criado Curso de História, que tinha apenas quatro alunos, quatro heroicos sobreviventes.

Já te contei que dar aulas para mim não é um trabalho, mas um prazer? Se contei, não custa nada um repeteco. Adoro dar aulas, sobretudo quando estou apaixonado pelo assunto e quando acredito dominar o tema, como era o caso.

Na sala de aula, encontro um aluno magricela e tímido, que respondia "presente" toda vez que era chamado o seu nome comprido: Geraldo Pantaleão Sá Peixoto Pinheiro. Leitor (a), você vai cair pra trás, quando descobrir o que eu fui percebendo ao longo do semestre. O mencionado aluno, que até então nunca havia saído de Manaus, conhecia alguns pontos do programa mais do que eu.

Mnemosine, a sogra

É que ele havia bebido a história na mamadeira, no berço, com o seu pai, o mestre Geraldo Pinheiro, um sábio da Amazônia como não existe mais. E ainda por cima, o aluno em questão era modestíssimo - aquela modéstia de quem sabe e conhece - compartilhando generosamente os conhecimentos e os livros que tinha com os colegas. Enquanto eu era apenas um apaixonado pela História da Amazônia Indígena, Geraldo, além disso, era apaixonado pela História tout court, mantinha um caso discreto, mas sério com Clio, sob o olhar vigilante daquela que podia ser sua sogra, a velha Mnemosine.

Quando descobri, fiz um escândalo. Berrei aos quatro ventos com todas as forças de meus pulmões: "ENCONTREI UM ALUNO QUE SABE MAIS DO QUE EU".

Raramente isso acontece. Mas acontece. E felizmente aconteceu comigo. Normalmente, professor medíocre - não era o caso do Bonzão aqui - não gosta de encontrar aluno brilhante, inteligente, superdotado como o Geraldo Sá Peixoto. Nesses casos, o professor procura esconder a sua própria ignorância, esmagando o aluno com o peso da hierarquia e de sua autoridade boçal.

Você me conhece, leitor (a). Numa situação como essa, só me restava abrir o jogo. Fui aluno do meu aluno, com quem humildemente aprendi. Criamos um grupo de estudos, onde todo mundo cresceu junto: Geraldo, Vânia Tadros, Luis Bitton, Hideraldo Costa, Luis Balkar, Luísa Ugarte, Francisco Jorge, Patrícia Sampaio, unidos pela paixão da História da Amazônia e conscientes de sua importância para melhorar a vida das pessoas. Juntos produzimos alguns textos coletivos: pelo menos dois livros, além de diversos artigos.

Do ponto de vista acadêmico, a figura mais importante do grupo foi o Geraldo. Ainda como aluno de graduação, cometeu a façanha de orientar alguns de seus professores que cursavam o mestrado e pelo menos duas professoras reconheceram isso, publicamente, por escrito, agradecendo na dissertação a contribuição dele.

Logo depois, a USP que havia aprovado o Geraldo na seleção de mestrado, decidiu encaminhá-lo diretamente para o doutorado, reconhecendo desta forma a densidade de seu conhecimento. A USP é a USP, é a melhor universidade do país, o que confirma que eu não estou exagerando.

Brincando com fogos

Por que estou contando tudo isso? Simplesmente porque a COMVEST realizou o vestibular e, para formar as perguntas da área de História, deixou de fora todo este timaço, liderado pelo Geraldo. O resultado lamentável está nas páginas dos jornais. Se a COMVEST não anular as perguntas, qualquer advogado desses de porta de xadrez pode fazê-lo, representando um ou mais vestibulando. Me explico.

Não vou entrar na polêmica que rolou se a palavra é "gomífera" ou "gumífera", porque isto é secundário, a meu ver. O essencial é que as perguntas sobre História da Amazônia estão viciadas, muitas delas inclusive contestando fatos históricos. Não se trata, portanto, de um problema de interpretação, o que por si só já seria grave.

Na pergunta 43 sobre a escravização dos índios, o gabarito da COMVEST apresenta a resposta "c" como a única correta. O autor anônimo das perguntas leu a página 191 do livro de Adélia Engrácia, que é excelente, mas nem sequer o folheou, porque na página seguinte se pode confirmar que na realidade todas as cinco opções são corretas, se considerarmos a farta e mutante legislação sobre escravização indígena no período colonial.

A questão 44 é, no mínimo, equivocada, quando assume o discurso dos missionários, atores comprometidos com o processo colonial, sem qualquer visão crítica, como se fosse a única verdade, a "verdade histórica". Não trabalha essa versão como discurso, mas faz uma leitura transparente de seus enunciados, renunciando a qualquer crítica histórica.

Nenhuma das questões vê a história como construção. Quase todas estão "furadas". A de número 41 é insustentável, a 15 é ambígua e assim por diante, conforme já foi assinalado pelos professores Geraldo Sá Peixoto, Luis Biton, Patrícia Sampaio e Luis Balkar, em matéria publicada aqui em A CRÍTICA.

Formular questões para o vestibular exige, de um lado, conhecimento profundo do conteúdo temático e, de outro, o manejo de técnicas específicas que a Faculdade de Educação da UFAM domina muito bem. Pois bem, o (ir) responsável que formulou as perguntas do vestibular deste ano demonstrou que não conhece nem uma nem outra. As perguntas não resistem a uma auditoria acadêmica realizada por especialistas das duas áreas. A impressão que fica é que as questões foram elaboradas por algum vereador ressarcido e não por um estudioso e especialista neste campo do saber.

Em 1985, a finada COPEVE - Comissão Permanente do Vestibular - elaborou uma prova, na qual usou um texto de Alexandre Rodrigues Ferreira, de 1785, que continha as palavras fogos e almas. Perguntava-se, então, aos vestibulando se fogos significava lares ou peças de artilharia. O gabarito apontava como correta a resposta errada: peça de artilharia.

Naquela ocasião, era março de 1985, escrevi uma crônica aqui em A CRITICA com o título "Democracia e alma penada", gozando a finada Copeve, porque fogos na documentação do século XVIII, naquele contexto de registro demográfico, significava lares e a palavra alma designava pessoa, indivíduo e não fantasma, assombração, crocoió ou rabilonga.     

A finada COPEVE, de forma inteligente, assimilou muito bem a crítica, anulou a pergunta e passou a convidar, a partir dos anos seguintes, especialistas para a elaboração das provas. Quer dizer, a avaliação que fizemos foi útil para melhorar a qualidade acadêmica, aperfeiçoar a Universidade e os mecanismos de acesso a ela e poupá-la de um vexame desmoralizador.

A atual COMVEST, em vez de transformar o secundário (gomífero versus gumífero) em essencial, devia seguir o exemplo de sua finada antecessora, assimilar as críticas de fundo que são absolutamente pertinentes e não tentar acobertar a mediocridade. Do contrário, a COMVEST estará contribuindo para desmoralizar a Universidade do Amazonas.

Bem que eu disse que a mesquinharia era inimiga do saber.

CARTAS DE LEITORES

Recebi várias cartas, pelo Correio.

Uma delas é de Daniel Carneiro Costa, 14 anos, estudante do Colégio Dom Bosco, comentando a recessão braba, a corrupção e as presepadas dos políticos locais. Ele mora na Rua Manicoré, Cachoeirinha.

Quem escreveu também foi o leitor Kassius Diniz da Silva Pontes, 15 anos, aluno também do Colégio Dom Bosco, residente no Conjunto D. Pedro I. Kassius elogia a coluna e coloca para fora todo o seu desespero em relação ao quadro político local, formado quase exclusivamente por "antas juramentadas".

A terceira carta foi do aluno do 5° ano de administração da Fundação Bradesco, Nelson Nascimento de Menezes, residente no Alvorada II. Ele tem 16 anos e demonstra sua preocupação com a corrupção generalizada no país, com especial menção às acusaçõed realizadas contra o senador do PDC (viche, viche).

Agradeço aos leitores o retorno dado. Fico feliz com a idade dos missivistas, que representa uma esperança. O nível de consciência desses meninos nos anima a pensar que nem tudo está perdido. Se o médico Nelson Fraije lesse essas cartas, certamente se candidataria a vereador. Sua integridade, sua inteligência e combatividade poderiam ajudar a restituir a esperança na luta política.

 

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4 Comentário(s)

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Guiomar Carvalho (via FB) comentou:
25/03/2013
Belissíma e merecida homenagem ao Geraldo Sá Peixoto Pinheiro.
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Aurelio Michiles (via FB) comentou:
25/03/2013
Que bela homenagem, antes do começo, mas bem antes...
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Harald Pinheiro (via FB) comentou:
25/03/2013
Merecida homenagem. É sempre bom reviver bons momentos em companhia da História. Legal
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Jordana Caliri comentou:
25/03/2013
Obrigada professor José Bessa pela lição de sabedoria! Parabéns professor Geraldo Sá Peixoto Pinheiro pela justa homenagem!
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