CRÔNICAS

Trocar números por palavras: pode isso, Arnaldo?

Trocar números por palavras: pode isso, Arnaldo?

Se esquecemos o passado, ele volta (Spinoza. 1668).

- Será que um estatístico, que mexe com números e modelos matemáticos, tem condições de usar a linguagem das palavras para fazer literatura? Pode isso, Arnaldo?

Pode sim. O criador da teoria dos conjuntos, Georg Cantor, se refere à ponte construída entre a matemática e a poesia, que nos permite apreender a beleza e a estrutura de modelos matemáticos com uma abordagem lúdica e criativa. Ele garante que “a essência da matemática é a liberdade”.

Beleza e liberdade garantem que não existe reserva de mercado para o exercício da literatura. Se o estatístico liberta sua criatividade e imaginação e domina a linguagem escrita, ele pode transmitir suas experiências, sentimentos, ideias com maior ou menor qualidade. Com admirável qualidade literária no caso do livro Do pensamento Qui-quadrado a uma vida normal.

Seu autor Geraldo Lopes de Souza Junior, 48 anos, mestre em Estatística pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), entrou no paraíso que Cantor criou. Escolheu entre os gêneros literários a autobiografia, que é um reencontro com sua memória reconstruída do nascimento, em Niterói, passando pela infância em Manaus, a formação acadêmica, para o qual contribuiram  - Max, Carlito e Moisés - e o exercício da profissão nos dias atuais.

Suas reflexões estão ancoradas na obra de notáveis pensadores. Dois deles orientam cada capítulo através de epígrafes: o holandês Spinoza (séc. XVII) excomungado pelo poder da Sinagoga por criticar dogmas e Paulo Freire, preso, perseguido e exilado pela ditadura militar-empresarial do Brasil. Mas não são os únicos. Ele recorre também ao pessoal bom de cálculo.

A rua, a vizinhança

A matemática, presente ao longo do livro, nos ensina que “a vida é desordenada e imprevisível da mesma forma que a estatística, que é a arte de lidar com a incerteza” - escreve o autor.  Tais incertezas estão presentes desde sua infância naquela Manaus que se foi, mas também na sua idade adulta nessa outra Manaus que nas últimas eleições presidenciais despejou nas urnas uma pororoca de mais de 62% dos votos no Coiso.

Sua história de vida é contada em 18 capítulos curtos, cada um dando conta dos sonhos, escolhas, indecisões, aventuras, transgressões, posturas políticas, relações com pais, família, avó, filhos, amigos, instituições e convivência com os vizinhos.

Na rua, eram trinta casas “repletas de histórias, gestos e aprendizados que moldaram minha infância e adolescência” – ele escreve, reconhecendo implicitamente que aprendeu muito sobre a natureza humana, observando a vizinhança sempre solidária. A exceção era a vizinha de muro apelidada de “Maligna”, que furava toda e qualquer bola que caísse em seu quintal.

Em alguns casos, a realidade superava a ficção. Um exemplo: a família, que faria inveja à imaginação de Gabriel García Márques, não hesitou em batizar as três filhas com os nomes de Kenyellen, Katyellen e Karyellen. Quando li, perguntei ao autor se era ficção. Não era.

Nessa época, a vizinhança era sadia e não estava na UTI. Hoje, o vizinho morreu e seu atestado de óbito foi assinado pelo poeta Aldísio Filgueiras:

E os vizinhos

moram tão longe

vivem

e morrem tão longe

como se eu não pudesse

ouvi-los respirar

no endereço ao lado.

As fases da vida

As memórias do escritor estatístico dissecam diversos períodos: infância, juventude, idade adulta. Destaque para as brincadeiras infantis na rua, que “não era um simples endereço, era o lar eterno”, assim como para suas expectativas no período denominado por ele de Qui-Quadrado, no qual registra a dissonância entre o que esperamos e o que realmente acontece.

A originalidade da escrita reside em grande medida no fato de que as reflexões sobre a vida estão quase sempre apoiadas em modelos estatísticos e em considerações filosóficas, que iluminam o caminho percorrido, como na questão da igualdade de gênero relativa à divisão de tarefas com as irmãs e os irmãos em sua casa, dentro da qual diariamente se discutia a justiça social e os embates políticos e sindicais. E qual é a função dos estatísticos no texto literário?

Se alguém me perguntasse no mês passado quem é Weibull, Poisson e Bernoulli, eu responderia: “Nunca os vi mais gordos e, para falar a verdade, nem mais magros”. Hoje, graças ao meu interesse pela literatura e à minha curiosidade de fofoqueiro que me levaram a ler o Qui-Quadrado, eu diria que esses três pesquisadores criaram distribuições de probabilidades capazes de apimentar e elucidar a narrativa em cada fase da vida.

O matemático suíço Jacob Bernoulli (1655-1705) realizou em sua época trabalho pioneiro, criando um conceito central na estatística e na análise de dados usados em diversas áreas do conhecimento, para descrever a probabilidade de sucesso ou fracasso. A fase Bernoulli ajuda a entender a passagem do autor pelo Rio de Janeiro e por Belo Horizonte.

Paternidade e profissão

Já Waloddi Weibull (1887-1979), engenheiro e matemático sueco, criou uma ferramenta usada em probabilidades e estatística, capaz de fazer algumas previsões com base em dados disponíveis. A fase Weibull registra o encontro com Graziela, sua amada, o nascimento dos filhos, cuja educação é produto de profundas reflexões sobre as formas de relacionamento com eles.

É nesta fase que o autor manifesta a contradição permanente entre o tempo dedicado ao exercício da paternidade e sua realização como profissional na Secretaria Municipal de Saúde como estatístico.  Não é fácil chegar ao equilíbrio. Lança ainda um olhar crítico sobre a questão ética, com uma autocobrança excessivamente rigorosa.  Sobre a relevância social do seu trabalho, conclui:

- O que antes via como uma disciplina fria e técnica – a Estatística – se revelou como uma ferramenta poderosa, capaz de transformar profundamente a atenção primária de saúde em Manaus.

Outra fase que norteia um capítulo é aquela baseada em Simeon Poisson (1781-1840), matemático e físico francês, que descobriu a probabilidade de um determinado número de eventos ocorrer em um intervalo fixo de tempo ou espaço. Isso permitiu estudos inclusive na área jurídica como demonstrado por Poisson em sua “Pesquisa sobre a probabilidade em julgamentos sobre matérias criminais e civis”.

No exercício de sua profissão, o escritor Geraldo Júnior revela que se sentia preso a uma equação de Poisson, onde os eventos se multiplicavam e escapavam a seu controle, não permitindo que administrasse os seus impactos.

Para não dar spoiler deixo a leitoras e leitores o prazer de navegar por esse texto de leitura agradável, despretensioso, mas com profundas reflexões, que podem nos ajudar a olhar a nossa própria trajetória de vida. A ele cabe a frase retomada pelo escritor argentino Júlio Cortázar, quando perguntado porque escrevia.

- Escrevo para descobrir o que estou pensando.

Efetivamente, na medida em que o escritor coloca suas ideias e sentimentos no papel, produz um conhecimento sobre si mesmo, desenreda alguns mistérios que o afligem e descobre novos mundos. Esperamos que esse seja o primeiro de outros escritos que certamente virão. Queremos saber o que ele continua pensando.

P.S. - A pré-venda já está em curso. O livro será lançado na Amazon no dia 23 de maio de 2025. A versão impressa custa US$ 3,83 e a versão digital US$ 0,99. A intenção do autor era oferecer a custo zero, mas não foi possível.

Comente esta crônica



Serviço integrado ao Gravatar.com para exibir sua foto (avatar).

3 Comentário(s)

Avatar
Fábio comentou:
11/05/2025
Estudei estatística na UFES por algum tempo sem que imaginasse me graduar. Quase ninguém conseguia tal feito. Tinha que sobreviver aos Cálculos I, II, III, IV, além da sua teoria, em Análise I e II. Ficava encantado com a professora de Estatística Geral e suas explicações espaciais. Quase todos mudaram de curso, indo eu para a sopa da Comunicação. Isso me levou décadas depois para uma entrevista com o matemático francês Étienne Ghys após ouvir sua palestra na Academia de Ciências com o título - adivinhem! - A beleza da matemática. A matemática para o professor Ghys é poesia pura, um puro êxtase tão possível como um Dante. Poincaré conseguiu essa proeza de misturar números e letras, e letras para uma literatura infantil, o que vejo mais complexo. É isso, Bessa! Vida longa pra a estatística, pra matemática (a rainha das ciências), a poesia, pro Geraldo e pra você, em especial. Ah! Spinoza é inigualável.
Comentar em resposta a Fábio
Avatar
FELIPE JOSE LINDOSO comentou:
10/05/2025
Vivendo e aprendendo! Logo eu, que realmente só sei as quatro operações graças a dona Maria Luíza de Freitas Pinto, minha professora de primário no GE Barão do Rio Branco, lá na Joaquim Nabuco. Onde se compra o livro?
Comentar em resposta a FELIPE JOSE LINDOSO
Respostas:
Avatar
Taquiprato comentou:
10/05/2025
Oi Felipe, eu havia redigido um PS, mas acabei esquecendo.;Obrigado ´por me lembrar. Agora eu postei. A pré-venda já está em curso. O livro será lançado na Amazon no dia 23 de maio de 2025. A versão impressa custa US$ 3,83 e a versão digital US$ 0,99. A intenção do autor era oferecer a custo zero, mas não foi possível.
Comentar em resposta a Taquiprato