“Para filmar, você precisa sentir o silêncio da imagem no seu coração”. (Tcheramoi Alcindo Moreira. 2012)
Orientações, algumas poéticas, outra de ordem prática, foram dadas ao cineasta guarani Tupã Ra´y (Alberto Álvares) por dois sábios centenários: Wherá Tupã (Alcindo Moreira) e Karai Tataendy (Augustinho da Silva), que nunca usaram uma câmera, mas foram protagonistas e espectadores atentos de muitos documentários.
Finos observadores, com eles Alberto aprendeu – acreditem - o enquadramento e a tipologia dos planos, como revelou aos Awá, Gavião, Tembé e Guajajara presentes em São Luiz no evento Cineastas Indígenas: Língua e Memória do 5º Seminário Arte, Educação e Cultura do Centro Cultural Vale do Maranhão.
Isso ele contou em uma das duas oficinas realizadas de 23 a 25 de abril, a outra foi conduzida por Vincent Carelli, criador de Vídeo nas Aldeias – escola de cinema que formou cineastas indígenas nos últimos 37 anos. Ambos exibiram filmes e participaram da mesa sobre cinema, incluindo os produzidos por celular pelos Awá Guajá.
Tanto na mesa, quanto na oficina, Alberto detalhou o que aprendeu com os sábios anciãos sobre o cinema e o uso da câmera guaranizada.
- O olhar guarani percebe vida até numa simples gota de orvalho, na folha de uma árvore, na pétala de uma flor – disse o pajé Alcindo da aldeia de Biguaçu (SC), falecido no ano passado aos 114 anos de idade. Ele e dona Rosa Poty-Dja são protagonistas do documentário do Alberto Os verdadeiros líderes espirituais (2013 - 67 min).
O caçador de imagens
O cineasta ouviu também as orientações do cacique da aldeia Araponga de Paraty (RJ), Augustinho, hoje com 104 anos. O filme Guardiões da Memória (2018, 55 min) em que aparece ao lado da esposa Marciana, 96 anos, realizado em cinco aldeias Guarani do Rio de Janeiro, mostra como sábios idosos fazem circular o saber e as belas palavras através de narrativas, rezas e cantos. Lá, Augustinho ensina:
- Quem filma tem de aprender a caçar a imagem para não perder o fio da narrativa. É assim que o arandu (scheaber) atravessa a lente da câmera. Precisamos deixar de ser caça para sermos caçadores.
O caçador de imagens Alberto Álvares, Guarani Nhandewa, nascido há 42 anos na Aldeia Porto Lindo (MS), promove diálogo permanente entre o olhar de seu povo e os saberes obtidos na Pós-Graduação em Cinema Audiovisual da Universidade Federal Fluminense (UFF), que lhe conferiu o título de mestre e onde agora está cursando o doutorado.
Com as ferramentas criadas por esse diálogo, ele já realizou mais de 20 documentários, entre outros os longas-metragens A Sabedoria das Mulheres – Kunhangue Arandu (2021), o Último Sonho (2019) do tcheramoi João da Silva falecido em 2016 e o autobiográfico Yvy Pyte - Coração da Terra (2023), que filmou o berço do mundo na cosmogonia guarani.
Cineasta premiado, Alberto ministrou oficinas de audiovisual para compartilhar conhecimentos básicos e reforçar a importância de registrar narrativas e preservar a memória. Ele diz que “cinema indígena é outra forma de contar o nosso modo de ser e de descobrir diferentes mundos pelos olhos da câmera, criando ferramentas na luta pela terra, o direito, a língua, enfim, pelo nosso modo de viver”.
Câmera: a voz do silêncio
O cineasta conta que possuía pouca experiência quando começou a filmar, em 2012, o documentário Os verdadeiros líderes espirituais. Não tinha noção da distância ideal entre a câmera e a imagem em cada tomada, nem como selecionar a parte do cenário que devia aparecer na tela. Conversou, então, com Alcindo Werá Tupã na aldeia Yy Moronti Wera:
- Meu neto, já vi que você não sabe filmar. Vou te ensinar aquilo que a vida me ensinou. Antes de tudo, nunca se deixe dominar pela câmera, pois se ela te domina, você não consegue filmar da forma que quer, nem sentir o silêncio da imagem no seu coração. É preciso comandar a câmera como fazemos com o maracá para marcar o ritmo do canto e da dança nas cerimônias da nossa Casa de Reza”.
Segundo Alcindo, nas palavras recriadas por Alberto, “a câmera dá voz ao silêncio e eterniza a força da palavra dos mais velhos para as futuras gerações. Ela guarda palavras, sentimentos e memórias. As imagens não se renovam e não envelhecem. A câmera atua como um segundo olho, um segundo ouvido, ela guarda, com as imagens e o som, a memória. A sabedoria registrada no filme não será esquecida. Por isso, é preciso usar os equipamentos do cinema como se faz com um instrumento musical, como se o filme fosse um cântico”.
Alberto reconhece que o tcheramoi passou a ser o seu diretor de filmagem, mostrando o que devia filmar e em qual ângulo se posicionar:
- Pensei muito nas palavras de Werá Tupã, sempre me perguntando: Onde será que ele aprendeu? Com quem aprendeu?
Quem conheceu tanto Alcindo como Augustinho, sabe que ambos já haviam tido outras experiências com a câmera dos juruá (não indígenas), que com frequência entram na aldeia para filmar, mas nem sempre devolvem as imagens aos indígenas.
Câmera e caneta
Alberto insiste na ideia de que um filme é sempre construção coletiva, com o apoio dos mais velhos: “O meu principal personagem” – ele reconhece – “foi meu professor. Aprendi na aldeia a sintonia com a natureza, o canto dos pássaros, a luz do sol, imprescindível para que a captura da imagem seja envolvente. A câmera é minha caneta. Ela me ajudou a repensar a oralidade com a estética ensinada na Academia, que reescrevi fazendo cine com outra estética”.
- Entendi que o que se aprende na Escola de Cinema é muito importante, mas o enquadramento aprendido na aldeia vai além, tem que atravessar a luz – disse o cineasta, que fez uma tipologia em guarani dos diversos planos exemplificados com imagens ilustrativas.
Assim, o plano Nhemboty Porã (“fechar bem” em guarani) é um plano bem fechado que eterniza na Casa de Reza a fumaça do petynguá – o cachimbo sagrado. A câmera se aproxima bem perto do que quer filmar. O plano Rejupy pa conhecido como “plano médio” significa que ao enquadrar os personagens dentro da cena, é preciso olhar além da imagem para “sentir os espíritos” como quer o tcheramoi e rezador Augustinho para quem a câmera é igual a uma reza com a qual você precisa se conectar. Ela revela, além dos personagens, o cenário.
O cineasta prossegue enumerando outros planos. O Ha’ejawi we, também conhecido como “geralzão”, consiste em agrupar todos na cena, mostrando os personagens e os ambientes, com cuidado para não assustar o espírito de quem está sendo filmado. Ele usa o plano Etyma rupi gua, sempre que acompanha o movimento da dança cerimonial do xondaro, que prepara os guerreiros
A montagem: o cesto
Alberto citou ainda o Mokoin Ojeupiwe (“os dois sempre juntos”), usado quando ele escuta histórias dos mais velhos à beira da fogueira. A câmera grava parte do cenário através do olhar de quem filma. Já o Efiuma Iku’a rupi foca o personagem da cintura para cima, quando a câmera está próxima de quem está sendo filmado, o que permite capturar suas expressões.
Finalmente, ele apresentou os três últimos planos: o Iwategui, conhecido como “plano mergulho”, filma do alto para baixo. O Ijywy’i re, que significa “bem perto”, é para ser usado quando se quer mostrar o que está ao redor na aldeia, segundo Alcindo Werá Tupã. E por último o Ha’e ‘Itegui (bem pertinho), que encantou Augustinho Karai Tataendy para quem “foi Nhanderu que deu a sabedoria para filmar assim”. Depois de apresentar essa tipologia, Alberto, falante das três variedades da língua guarani, concluiu:
- Aprendi os quadros e os planos em Guarani, minha língua materna e é, através dela, que repasso os conhecimentos que me ensinaram. Nomeei-os em nosso idioma para facilitar o processo de aprendizagem dos alunos nas oficinas de filmagem que ministrei durante a gravação do filme Guardiões da Memória.
Ele discorreu ainda sobre a montagem encarada como a confecção de um ajaká (cesto). “Ao retirarmos a taquara da mata, extraímos dela a fibra necessária para fazer o cesto. Mas se o artesão não souber trançar, não conseguirá finalizar sua obra. Da mesma forma, o filme. Ao colocarmos o material na ilha de edição, é preciso saber selecionar e ordenar os planos para retirar o que queremos mostrar e trançar a história que será contada”.
Dançar com a câmera
Da oficina, fez parte também uma reflexão sobre a trilha sonora que, no caso guarani, se apoia na música composta pelas vozes dos mais velhos, dos jovens, mulheres e as crianças. “Para selecioná-la, é preciso entender que tipo de canto corresponde à narrativa que está sendo contada dentro do filme. A trilha sonora conta o espaço da aldeia através da música e auxilia na sequência e movimentação do filme semelhante à correnteza no mar” – conclui Alberto:
- Desde que comecei a filmar, venho trabalhando o movimento de dança com a câmera. O dançar com a câmera é uma linguagem de enquadramento que redescobri na minha vida.
Foi assim que esse caçador de imagens aprendeu a sentir o silêncio da imagem em seu coração e se tornou cineasta graças às lições dos sábios guarani e da universidade na fronteira dos saberes.
Observação: Nos próximos artigos abordaremos (II) a oficina de Vicent Carelli, bastante festejado e homenageado pelos indígenas e não indígenas ali presentes; (III) As mesas de memória com a cacica Gavião Katia Tônkyre Akrãtikatêjê, Marcilene Kudá, professora da Escola Tembé e o antropólogo e historiador Guilherme Cardoso, assim como a de língua nas falas de Tatuxa´a, professor bilingue Awá, Flávia Berto, linguista, e esse escrevinhador.
Fotos: Emanuelle Rebelo
Referências:
1.Alberto Álvares: Petein Mbya nhema´em ta´anga arandure nhemboja´no re. Um olhar Guarani: O cinema na fronteira dos saberes. Dissertação. Mestrado em Cinema e Audiovisual da Universidade Federal Fluminense (UFF). Rio de Janeiro, 2021.
2. Brian Harley. Mapas, saber e poder, Confins. 2009. Online.24 abril de 2009. http://confins.revues.org/index5724.html
3. Creuza Krahô. Prumkwyj. Wato ne hômpu ne kãmpa: Convivo, vejo e ouço a vida Mehi (Mãkrarè). Dissertação. Mestrado em Sustentabilidade junto a Povos e Territórios Tradicionais; Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF, 2017.
4. André Brasil. Uma história dos cantos: levantes da floresta. In: LAGE, Leandro (org.). Imagens da resistência: dimensões estéticas e políticas. Salvador: Edufba, 2022.
5. Luciana de Oliveira & Rodrigo Wallace Cordeiro dos Santos: Cinema Guajajara para descolonizar olhares sobre as relações entre povos indígenas e Amazônia no documentário Zawxiperkwer Ka'a/Guardiões da Floresta. Buenos Aires. Ponencia ALALC, 2022.
6. José R. Bessa - Taquiprati
a. O adeus do pajé que falava com as árvores – Diário do Amazonas, Manaus, 14 de setembro de 2024 - http://www.taquiprati.com.br/cronica/1753-o-tadeus-do-paje-que-falava-com-as-arvores
b.Nhamandu baixou na UFF - http://www.taquiprati.com.br/cronica/1341-nhamandu-baixou-na-uff- Diário do Amazonas, Manaus,. 11 de junho de 2017
c. O último sonho de Verá Mirim. Diário do Amazonas. Manaus. 24 de julho de 2016. https://www.taquiprati.com.br/cronica/1296-o-ultimo-sonho-de-vera-mirim-version-en-espa.
d. Na maloca, uma câmera na mão. Diário do Amazonas. Manaus. 15 de novembro de 2015. https://www.taquiprati.com.br/cronica/1172-na-maloca-uma-c
e. Soy latino-americano: o festcine Amazônia. Diário do Amazonas. Manaus. 13 de dezembro de 2009. https://www.taquiprati.com.br/cronica/836-soy-latinoamericano-o-festcine-amazonia
P.S. – Três dias depois do evento, ocorreu o exame de qualificação de doutorado de Rodrigo Wallace Cordeiro dos Santos: O povo Guajajara e as imagens de um arquivo intermundos: memórias contracoloniais da Terra Indígena Caru ma Amazônia Maranhense. Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG. Banca: Luciana Oliveira (orientadora); Ivânia Neves (UFPA) e José R. Bessa Freire (UNIRIO-UERJ)