CRÔNICAS

Tem pitiu no meu canto: o pitiu é nosso

Em: 29 de Outubro de 1996 Visualizações: 20203
Tem pitiu no meu canto: o pitiu é nosso
"Tem pitiu no meu canto / tem chiado de moquém. (Luiz Pucú, poeta amazonense)
 
De repente, não mais que de repente, me invoquei com a palavra pitiu. Pitiu é uma palavra que nasceu no Amazonas. Autêntica planta nativa, brotou aqui, no nosso solo, como a pupunha, o guaraná, o jaraqui e o Serafim Corrêa. Quando sentiam cheiro forte de peixe, os índios de língua tupi gritavam:
- Pitiu!
Os portugueses chegaram e aprenderam: pitiu prá lá, pitiu prá cá. A língua portuguesa falada na Amazônia acabou herdando esse vocábulo indígena. Mas só aqui. É desconhecido em outras partes do Brasil.
Aprendi essa lição na minha própria carne, em 1966, quando saí de Manaus para estudar no Rio de Janeiro. Em uma triste manhã, milhares de peixes apareceram mortos na praia do Flamengo e na Ponta do Calabouço. O cheiro invadiu as salas de aula da Faculdade Nacional de Filosofia, que funcionava na Av. Presidente Antônio Carlos, com a Beira-Mar. Recém-chegado ao Rio, comentei:
- Nossa! É puro pitiu!
Uma sonora gargalhada explodiu em toda a sala. Os meus colegas acharam engraçado. Ninguém sabia o que era. Tive de traduzir. Quase que o meu apelido ficou sendo "Pitiu". Passaram a me chamar de "Amazonense", com a mesma simpatia com que qualquer porteiro é identificado como "Paraíba" e os nordestinos da construção civil são conhecidos como "Baianos".
Até então, meu país era Aparecida, capital Beco da Bosta. Foi preciso que me chamassem de amazonense, para que eu descobrisse quem eu era. Foi aí que percebi que o Brasil não era um bloco homogêneo. Era plural. E que nós, amazonenses, éramos diferentes, tínhamos uma identidade própria, uma forma particular de sermos brasileiros.
Cheiro de peixe
Nos últimos trinta anos, muita coisa mudou. Os canais de TV, de alcance nacional, diariamente passam um trator sobre as diferenças regionais, nivelando tudo, tomando como referência a cultura e a forma de falar do centro-sul do país, onde os programas são produzidos. Talvez isso explique porque a palavra pitiu, que só existia no dicionário amazonense e paraense, está sendo varrida progressivamente do léxico regional.
Pitiu - coitadinha! - é, atualmente, uma palavra desprezada, humilhada, discriminada. Hoje, ninguém mais a escreve e poucos são os que a falam, numa cidade como Manaus, que procura esquecer suas origens indígenas. Os jovens não sabem o seu significado. Alguns velhos, em vez de "cheiro de peixe", usam no sentido de "fedor de peixe". Pode até ser. Afinal, a catinga ou o perfume dependem do nariz.
Independente da qualidade do odor, Pitiu é um nome bonito prá cachorro. Prá cachorro mesmo. Em vez de Rex, Lassie, Laica, Daiana, Rin-tin-tin, Snoopy, Beethoven, Au-Au, Canalha, Cocota e Babão, por que não batizar um cachorro com o sonoro nome de Pitiu? Nunca vi ninguém atiçar:
- Pega, Pitiu, pega!
Podia ser também o apelido de algum jogador de futebol. Os locutores esportivos narrariam jogadas épicas: "Pitiu mata a redonda no peito, dá um chagão em Edson Piola, um banho-de-cuia em Zequinha Piola, dribla a família Piola e todo o time do Fast, entra na grande área, chutou. É gol. Goooooool do Pitiu".
Aliás, há uma visível afinidade entre "pitiu", "chagão" e "banho-de-cuia": são palavras moribundas, que nasceram e cresceram no Amazonas e agora estão agonizando, morrendo. Merecem uma crônica de corpo presente ou de sétimo dia. No caso da palavra "Pitiu", podia ter destino mais nobre do que apelido de cachorro, se fosse um sobrenome de família, usado por diferentes profissionais.
Imagine uma placa de bronze, na frente de um consultório, indicando: Dr. Brígido Pitiu Jr, cirurgião dentista. Públio Caio Pitiu, advogado. Dr. Ivan Pitiu, ginecologista. Ou vereador. Taí. Pitiu cai bem como nome de vereador.
"O Edil Sildomar Pitiu apresentou projeto disciplinando enterros e velórios na cidade". Ou então padre e - quem sabe - até bispo: "Dom Alberto Pitiu abre a Campanha da Fraternidade". Por que não militar? "O Comandante da Amazônia, general Thaumaturgo Pitiu, jura que garimpeiros não invadirão as terras indígenas".
Laço afetivo
O leitor pode objetar: - Pitiu lá é nome de gente! Com todo o respeito que você merece, leitor (a), mas me desculpa, isso que você falou é uma tremenda bobagem. Nome de gente é aquele que a gente dá. Se existe no Amazonas uma família Pucu, com advogados, poetas, e gente decente, por que não pode haver uma família Pitiu? Quer ver nome mais bobo do que o do presidente da Caixa Econömica: Cutolo? Entre Pitiu, Pucu, Cutolo e Ribamar, sou mais Pitiu.
Existem, certamente, nomes e sobrenomes mais esdrúxulos do que Pitiu. Abtibol, por exemplo. Ou Corado. Risonildo é brincadeira. O que dizer da serraria Avelino, onde não tem nenhum duro, todos são ricos: Pauderney, Pauderley, Pauloney, Paunãosey, Pau-Mandado, Pau-Prá-toda-obra. É pau prá cacete, com o perdão do trocadilho.
Sim senhor, precisamos resgatar a palavra Pitiu. É claro que seu uso tem que ser moderado, sobretudo nos primeiros tempos. Não pega bem como nome de boutique, video-locadora, ou padaria. Mas não existe qualquer obstáculo para uma cadeia de "Supermercados Pitiu". Como o petróleo nas campanhas dos anos 50, o pitiu é nosso e já entrou até nos versos do poeta Luiz Pucú: "Tem pitiu no meu canto, tem chiado de moquém".
Eis aí aonde eu queria chegar. o pitiu é nosso, ao contrário do Cabo Pereira, que é deles. E não é pelo fato de ter nascido longe daqui. Isso seria uma discriminação inaceitável. Uma das pessoas mais comprometidas com o passado de Manaus e com a defesa de seu patrimônio é carioca: a arquiteta Ana Lúcia Abrahim. Ama a cidade mais do que muito manauara.
O problema do Cabo Pereira, portanto, não é ter nascido em Pau-dos-Ferros. É a sua falta de compromisso com a cidade de Manaus. Ele não ama Manaus. Não tem raízes aqui. Não criou vínculos. Para ele, Manaus é um imenso canteiro de obras, que deve ser loteado entre as empreiteiras. Qual o laço afetivo que esse senhor teceu com a cidade? O povo de Manaus não pode entregá-la para um aventureiro.
O Josué Filho, com originalidade duvidosa, uma vez comparou Manaus a uma noivinha. O Cabo Pereira quer estuprar a noiva antes do casamento. O Serafim, como vereador, já demonstrou que é capaz de brigar pela honra dela, pela sua beleza e por sua integridade.
No debate, se eu fosse o Serafim, encurralava o Cabo Pereira por aí. O Cabo vai tentar nos vender um peixe, tipo congrio ou manjubinha, cujo pitiu não tem nada que ver com o jaraqui ou o pacu.

P.S. - Cuidado, mães de família! O Egberto Batista, aquele responsável pela baixaria contra o Lula, está solto em Manaus. Foi contratado pelo Cabo Pereira. .

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9 Comentário(s)

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Shirley Penaforte (via FB) comentou:
26/06/2017
Maravilhoso o Pitiu de Manaus. Vou compartilhar,
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Agenor Sarraf comentou:
26/06/2017
JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE - Um sábio da Amazônia José Bessa é uma das almas mais lindas que conheço. Um sábio das línguas, histórias e culturas das populações indígenas do Brasil, pesquisadas e disseminadas desde a Amazônia. Diria que o querido amigo Bessa Freire é um corpo tatuado e fertilizado pela poderosa tradição oral continuamente reatualizada por dentro e por fora do país. Quando conversarmos com ele, ficamos encantados com sua capacidade de narrar vivências, saberes e experiências. Sabedoria, sensibilidade, humanismo, energia vibrante e contagiante o atravessam, conectando-o entre humanos e não-humanos. Toda semana escreve em seu TAQUIPRATI crônicas incríveis, carregadas de importantíssimas informações e sempre bem humoradas. Em 1996, Bessa talhou e socializou aspectos do famoso PITIU. Vale a pena conferir:
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José Marajó Varela comentou:
26/06/2017
mestre José Bessa é nosso! Patrimônio de todas Amazônias. Agenor Sarraf o mestre é missionário na pátria de Arariboia a ver se salva a alma brasileira da panemice, diz-que, ocidental.
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Angela Maria Bessa Freire comentou:
26/06/2017
Sabe do que me lembrei das aulas da d. Lourdes Normando, no Beco da Indústria, onde tinha um menino que era apelidado de pititiu e a professora disse um dia Pititiu vem dar a lição , tu te lembras?
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Camila Aranha comentou:
26/06/2017
Jurava a pitiú era de Belém, hehehe
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Maria Regina Pimenta comentou:
25/06/2017
Tem cheiro de pitiú no ar, quando os cabocos acabam de jantar, jaraqui, pirarucú, e tamuatá
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Daniela Fernandes Alarcon comentou:
25/06/2017
Bessa, lá entre os Tupinambá da Serra do Padeiro, usa-se muito pitiú ou pitium para se referir ao cheiro forte da caça, por exemplo, antes de ser tratada. No mesmo sentido, também se usa almíscar (alterado às vezes para misque).
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comentou:
26/06/2017
Elaíze Farias José Bessa, Copiaram do pitiú do Norte.. rs.. Tbm tem o pixé (que é mais pra fedorento). mas daqui a pouco vão dizer que o bico de apontar pavulagem tbm é invenção de lá.. kkk (não é o bico do \"ali\"). .
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José Marajó Varela comentou:
26/06/2017
nem amazonense nem paraenses, pitiú é tupi... Olha aí Pio Lobato Dona Onete fazendo banzeiro nos arraias linguísticos do nheengatu com o professor José Bessa.
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