CRÔNICAS

O ninho do Japu “Fura-banana” no umbigo do céu

Em: 18 de Março de 2025 Visualizações: 10263
 O ninho do Japu “Fura-banana” no umbigo do céu

Japus e rizomorfos

aves e fios tecem

a vida na floresta. 

(Haikai de Joaquim Lopes e Noemia K. Ishikawa. 2024)

Carta aberta ao Japu “Fura Banana”

Niterói, 17 de março de 2025

Prezado Japu,

Menino, nem te conto! Não vou mentir. Nunca te vi mais gordo, mas já simpatizo contigo. Te conheci há duas semanas, quando li a dissertação de mestrado do Joaquim da Silva Lopes sobre ninhos de aves da Amazônia defendida no Programa de Pós-Graduação em Ecologia do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). Lá me deslumbrei com a foto do teu ninho, uma obra prima digna de figurar na Bienal de Veneza. Foi amor e leitura à primeira vista, o que me fez entrevistar o novo mestre sobre as aves e seus ninhos.

Aliás, uma dessas aves é o João-de-barba-grisalha, que conheço desde 2007. Da família do João-de-barro, ele constrói seus ninhos com “erva-de-passarinho” e esconde a entrada com gravetos para impedir que as cobras devorem os ovos e seus filhotes. O acesso é por um túnel. A arquitetura sofisticada lembra uma fogueira de São-João. Muito bonito, mas aqui pra nós, sem a exuberância do teu ninho. Eu disse pra ele: - João, o Japu é um artista. Sabe o que ele me respondeu?

- Quem é o Japu? Quem é esse tal de Joaquim? Não os conheço.

O biógrafo do Japu

Dei detalhes:

- Rapaz, deixa de comer mosquito. Tu conheces sim. O nome Baniwa do Joaquim é Malimaaka. Ele é filho do seu Antônio, do clã Waliperedakenai e da dona Inésia, do clã Hohodeeni lá da aldeia Koitysiali Inomanaa, na foz do igarapé Mutum, hoje Comunidade Canadá, no rio Ayari, São Gabriel da Cachoeira (AM). Começou a estudar aos 12 anos e aprendeu a falar a língua portuguesa aos 15 anos. Na década de 90 cursou Licenciatura Indígena na Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Agora é mestre em Biologia.

Foi aí que caiu a ficha. O Barba-Grisalha, alisando com o bico os fios do queixo, reconheceu:

- Ah, já sei quem é.  Por que você não revelou logo, de saída, o nome original que o pai lhe deu e que costuma ser rejeitado pelo Cartório?  Lembro muito bem do Malimaaka. Eu costumava fazer voos rasantes sobre sua aldeia. Ele tem cinco irmãos e três irmãs. Era o melhor aluno da Escola Bilingue Eeno Hiepole, que significa Umbigo do Céu. Antes a prefeitura havia dado o nome de Escola Tiradentes, mas trocou de nome por pressão dos Baniwa. Agora sei quem é o Joaquim. Mas, e o Japu? Quem é esse tal de Japu?

- Se eu disser o nome dele em língua Baniwa, você vai saber quem é. O Japu é o Towiri.

- Quem? O Towiri? Qual deles? Existem várias espécies dessa ave do gênero Psarocolius. Todos são meus amigos, incluindo o Fura-banana, de grande porte, três vezes maior do que eu. Ele tem cor preta, bico alaranjado, olhos azuis e cauda amarela. Gosta de se exibir para as fêmeas, cantando e dançando, se inclinando para a frente, num movimento gracioso. O som do seu canto parece o de um piano - disse o Barba-Grisalha, confirmando o que me disse o Joaquim na entrevista via zapp.

O Barba-Grisalha despediu-se, então, de mim e saiu voando para a sua morada mais ao norte. Posto que mais vale um pássaro na mão do que dois voando, fico contigo, amigo Japu, para te apresentar aqui o resumo da dissertação “Uso de rizomorfos em ninhos de aves da Amazônia e conhecimento Indígena do povo Baniwa na bacia do rio Ayari” defendida sexta-feira (28/02), na qual você é o personagem principal.

As penas do Japu

Te digo que o Joaquim, teu biógrafo, estabeleceu um diálogo intercultural entre o conhecimento Baniwa e o saber da academia. Com ajuda da Noemia e da Camila, suas orientadoras, buscou autores nacionais e estrangeiros que te estudaram. Passou um pente fino em publicações ligadas ao tema editadas em diferentes línguas, inclusive em Nheengatu e em diversos países: Argentina, Paraguai, Costa Rica, Colômbia, Venezuela, Malásia, Tailândia e na Europa, que indicam o uso de vegetais e de fungos na construção de ninhos.

Um desses autores, o zoólogo suíço Emílio Goeldi (1859-1917), que foi diretor do Museu Paraense, estudou as aves da Amazônia e anunciou para o mundo da ciência, em 1897, que o teu ninho, amigo Japu, era construído com uma “substância peluda preta, muito parecida com as crinas de cavalo”, conhecida como cordão micelial e denominada pelos micólogos de rizomorfo, que é uma formação semelhante a uma raiz. Confere?

O outro é o botânico Jacques Huber (1867-1914), também suíço, que no Museu Paraense estudou as plantas da Amazônia e identificou, em 1902, um dos rizomorfos com o qual a família Japu fabrica o seu ninho – o rizomorfo de Marasmius - uma espécie de fungo marrom-avermelhado que produz pequenos cogumelos. Efetivamente, essas macroestruturas pretas ou marrom-escuras semelhantes a fios de cabelos são produzidas por alguns macrofungos.

Foi aí que o Joaquim Malimaaka e sua orientadora encontraram num pé de angelim no terreno do Museu da Amazônia (MUSA), em Manaus, um ninho cheio de rizomorfos. Observaram que havia uma interrelação entre aves e fungos, que revelavam a interdependência das espécies. Ele decidiu procurar ninhos dos teus parentes em duas localidades de Manaus e em São Gabriel da Cachoeira.

O estranho no ninho

Como é que ele fez seu trabalho de campo? O pesquisador acadêmico Joaquim da Silva Lopes vestiu-se com a pintura corporal do Baniwa Malimaaka, acostumado desde sua infância a observar o voo do Japu no entorno de sua aldeia. Ele já conhecia sua plumagem linda e chamativa, seus cantos maviosos e seus ninhos pendulares. Mas em junho de 2024, acompanhado de seu pai, foi até o igarapé Miriti e lá os dois encontraram 19 ninhos caídos nas folhas de uma bacabeira de sete metros, ao lado de um ninho de vespas.

O danado do Joaquim Malimaaka voltou em janeiro de 2025 para uma segunda coleta e viu uma colônia nova de japuguaçu, no momento em que as fêmeas tricotavam com amor seus ninhos enormes em formato de bolso. Era um espetáculo belíssimo: a árvore altíssima estava toda ocupada por ninhos do japu e as bolsas longas de 1 metro de comprimento balançavam ao vento. Os filhotes só ali, na moleza, embalados como numa rede de dormir. Na tardinha, outro show: o bando, chefiado por um guia, voou para o seu dormitório. Diante daquilo, até o agnóstico mais empedernido se ajoelharia.

É uma pena – diz Malimaaka – que o desmatamento e as queimadas estraguem esse espetáculo. Observou na área urbana de Manaus material artificial usados nos ninhos como os fios de pipa. E sobre o tema, trocou ideias com colegas indígenas de mestrado: Yuri Kuikuro, Diogo Cinta Larga, Alírio Afaba, Alexandre Tyson.

O estudo do Joaquim conquistou pesquisadores indígenas e não indígenas que, em um puxirum científico, chegaram na espécie do rizomorpho. O DNA de um pedacinho foi examinado e descobriram que a espécie é Marasmius neocris-equi.

O barulho da vida

No trabalho de campo, seu Antônio, o pai de Joaquim Malimaaka, foi semeando pelo caminho narrativas, que caíram em terreno fértil e foram registradas no 1º capítulo da dissertação. Na cosmologia e na história oral do povo Baniwa, ele destacou a importância simbólica e espiritual do Japu, cuja origem está ligada às narrativas de transformação e à relação entre humanos, espíritos e natureza.

- As narrativas sobre a origem das aves são conhecidas de acordo com os clãs. Sou do clã Waliperedakenai (Constelação de Sete Estrelas) e sigo as histórias de acordo com minha linhagem ancestral. É possível que outros clãs Baniwa tenham versões diferentes – escreve Joaquim Malimaaka, para quem o japu é mensageiro e intermediário entre o mundo físico e o espiritual, além de fornecer penas amarelas para as cangataras (cocares) e outros adornos.

Ele explica que ninguém mata o japu, que não é comestível, além de ser muito respeitado pelos Baniwa. Suas penas são coletadas de forma natural, algumas vezes caídas do céu e das árvores, outras retiradas para uso ritual daquelas aves criadas em cativeiro. Isso é feito de forma cuidadosa, amorosa, por meio de técnicas que não machucam o japu domesticado. 

- Nos rituais de benzimento o espírito de aves de bom comportamento é invocado para abençoar crianças em sua passagem para a maturidade. O benzedor transmite às crianças valores como independência e capacidade de produzir seus próprios bens, preparando-as para se tornarem futuras lideranças. Esse ritual serve para afastar pensamentos egoístas, promovendo exemplos de autossuficiência e colaboração – conclui Joaquim.

Com essa pesquisa, Joaquim Malimaaka obteve o diploma de mestre. Mas todo mundo ganhou com esse momento histórico, no qual indígenas se tornam agentes sociais que refletem, questionam e produzem conhecimentos”, como sinaliza Ana Carla Bruno, antropóloga do INPA, instituição cujo diretor, o ecólogo Henrique Pereira, reconhece “a importância da aproximação da academia ocidental com as ciências indígenas amazônicas e a relevância da política de inclusão e de diversidade social”.

Consciente de que o formato dos editais ao mestrado dificultava o ingresso de indígenas, Noemia Kazue Ishikawa, então coordenadora do PPG-Eco, propôs a substituição da prova de língua inglesa para a de língua portuguesa, que é a segunda língua para muitos indígenas: Joaquim, o primeiro a defender sua dissertação, “trouxe uma imensurável bagagem de conhecimentos biológicos e ecológicos de sua vivência cotidiana” – disse Noemia.

Trouxe também poesia. Noemia poetizou em parceria com seu orientando sobre a vida na floresta tecida pelo japu, que ocupa lugar especial na narrativa oral Baniwa. O agora merecidamente mestre em Biologia sabe que o Japu é o Japu de tantas histórias e de tantas penas bonitas. Por isso, registrou o lugar dessa ave nas tradições do seu povo, consciente de que “a oralidade é o barulho da vida que temos dentro de nós”, como nos ensina o pajé guarani Wherá Tupã.

P.S. Na quinta-feira (13) foi inaugurada no Campus do INPA a Sala de Intercâmbio Científico e Cultural Indígena, espaço dedicado à promoção da troca de conhecimentos e experiências entre diferentes culturas e áreas do saber científico. Esperamos que a vida faça muito barulho lá dentro.

Fotos: Michael Dantas

Referências:

Joaquim da Silva Lopes: Uso de rizomorfos em ninhos de aves da Amazônia e conhecimento Indígena do povo Baniwa na bacia do rio Ayari. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Ecologia. Manaus. INPA. 2025. Banca: Noemia Kazue Ishikawa. (orientadora), Camila Cherem Ribas (coorientadora), Henrique Pereira dos Santos (ecólogo), Mario Cohn-Haft (Ornitólogo) e Rogério Hanada (Micólogo).

José R. Bessa Freire. Resiste, João. Carta ao João-de-Barba-Grisalha. Taquiprati. 04 de novembro de 2007. Manaus. Diário do Amazonas.  https://www.taquiprati.com.br/cronica/113-resiste-joao

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13 Comentário(s)

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Valter Xeu comentou:
19/03/2025
Publicado em PATRIA LATINA - https://patrialatina.com.br/o-ninho-do-japu-fura-banana-no-umbigo-do-ceu/
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Rubens Lima comentou:
18/03/2025
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Falcão Vasconcellos (via FB) comentou:
18/03/2025
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comentou:
18/03/2025
Isto é ciência viva
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Francisco Christo comentou:
18/03/2025
Babá meu querido amigo, cadê aquelas tuas crônicas magistrais que uniam política baré e comédia, frente a esse mundo tão cinza e de poucas esperanças, nada como uma crônica meio satírica que fazem todos rirem. Sorrir ainda é o melhor remédio para longevidade, nunca esquecendo também das mulheres, se tivermos uma boa companheira, podemos ser longevos. Um imenso abraço, meu querido amigo.
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Regina Rodrigues (RR) comentou:
18/03/2025
As universidades bem que podiam fazer resenhas das teses e dissertações em uma forma agradável de ler, e não em "academês".
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Joaquim Baniwa comentou:
18/03/2025
Muito obrigado. Ficou perfeita
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Ribamar FNCC comentou:
18/03/2025
Eu conheço como japó. É o japó e o japiim são muito parecidos.
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Flavia Lisboa comentou:
18/03/2025
É sempre uma emoção ver um indígena concluindo uma formação acadêmica, especialmente pela capacidade de interlocucao entre seus mundos e o acadêmico.
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Alexandre Thaison Satere Mawé comentou:
18/03/2025
Bom dia José Bessa Li a crônica, ficou muito bonita e muito interessante de ler ! Parabéns Waku kahato!
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Patrícia Alves Dias comentou:
18/03/2025
Amo os japus! Eles adotam os filhotes orfaos … e sabem cantar como qualquer outra ave e imita até mamiferos! “Amuuuuuuuuu”
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Kátia Tônkyre Akrãtikatêjê comentou:
18/03/2025
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Orlando Mateus comentou:
18/03/2025