Sua mãe é Tukano, seu pai é Dessana. Ele é Dessana, do sib Kenhiporã, cujo significado em português é algo como “Filhos dos Desenhos dos Sonhos”. Puxou a identidade do pai, mas fala as duas línguas: a paterna e a materna. Nasceu em 1937, às margens do rio Tiquiê, afluente do Uaupés, no rio Negro (AM), próximo à fronteira com a Colômbia, e recebeu o nome de Sibé. Passou a infância ouvindo as histórias narradas pelos velhos, que explicavam a origem do mundo e falavam de uma época em que ainda não havia a noite nem o sono para dormir.
Quando completou onze anos, Sibé saiu da comunidade dessana de São João Batista para estudar no internato salesiano de Pari-Cachoeira. Foi ouvir e viver outras histórias. Lá, sem deixar de ser Sibé, falante de duas línguas indígenas, passou a ser também o aluno Feliciano Pimentel Lana, nome com o qual ficaria conhecido no mundo da escrita e da língua portuguesa.
- “O meu nome? Feliciano é o nome dos padres. Meu nome mesmo, assim, tradicional, é Sibé”.
Esse é, portanto, seu nome-de-assopro. Sibé levou para as salas de aula do internato, dentro de sua cabeça e de seu coração, tudo aquilo que havia vivido e aprendido no mundo da oralidade: as duas línguas e o rico patrimônio cultural intangível que elas armazenam, representado pelas narrativas, saberes, imagens e desenhos que ornamentam muitos objetos fabricados pelos povos do alto Rio Negro. Esses desenhos, com figuras geométricas multicoloridas e linhas bem marcadas, apresentam padrões gráficos tão inconfundíveis que permitem identificar a origem coletiva dos autores.
Durante os cinco anos em que viveu no internato salesiano, novos saberes foram sendo gradualmente incorporados: uma terceira língua – o português – fundamental para enfrentar o mundo que o rodeava, a escrita, alguns elementos de matemática e as lições de desenho que, já com o nome de Feliciano, teve com o padre Ezequiel Antônio Lopes, com quem pôde explicitar noções de proporção, perspectiva, construção geométrica, composição, luz e sombra.
Durante os cinco anos em que viveu no internato salesiano, novos saberes foram sendo gradualmente incorporados: uma terceira língua – o português – fundamental para enfrentar o mundo que o rodeava, a escrita, alguns elementos de matemática e as lições de desenho que, já com o nome de Feliciano, teve com o padre Ezequiel Antônio Lopes, com quem pôde explicitar noções de proporção, perspectiva, construção geométrica, composição, luz e sombra.
No entanto, a transfiguração de Sibé em Feliciano foi um processo carregado de conflitos e tensões. O internato queria que Feliciano matasse Sibé , que ele deixasse de falar línguas indígenas, que esquecesse as cerimônias sagradas, os adornos, as festas, o dabacuri, que apagasse da memória as imagens e as narrativas míticas ouvidas da boca de seus avós, que deixasse de escutar os sons das flautas sagradas, através das quais se apropriava dos segredos da paxiúba. Mas cada vez que afogavam Sibé, ele boiava na superfície e ficava de bubuia na mente e no coração de Feliciano.
Foi aí, então, que nasceu Feliciano Sibé Pimentel Lana, Kenhiporã, filho dos desenhos dos sonhos.
Feliciano Sibé, saindo do internato com o certificado de conclusão do 5º ano elementar, só encontrou tarefas pesadas e mal remuneradas. Ganhou o pão nosso de cada dia como oleiro, fabricando tijolos numa olaria e como ajudante de pedreiro na construção civil, carregando vigas, andaimes e caibros. Decidiu atravessar a fronteira, indo morar em Mitu, na Colômbia, onde trabalhou quase dois anos como servente, tratorista e assistente de telegrafista, aprendendo a se expressar em espanhol. Cortou seringa durante mais dois anos. De retorno ao Brasil, foi contratado como vigilante noturno. Fez um pouco de tudo na vida até o momento em que começou a desenhar os sonhos.
Foi assim: Feliciano ganhou, em 1965, um gravador e uma máquina fotográfica do padre Casemiro, missionário salesiano, que lhe pediu para gravar histórias completas contadas pelos velhos sobre a criação do mundo, estimulando-o a mergulhar em sua cultura. Feliciano aproveitou para gravar também outras narrativas: orações de como curar as doenças, como benzer o cigarro, como benzer a moça na sua primeira menstruação, a origem da noite, o roubo das flautas sagradas...
As narrativas gravadas foram ilustradas com desenhos, transformando as histórias em ‘narrativas gráficas’, num processo que já havia sido experimentado tanto pelas culturas amazônicas, como a marajoara, como pelas culturas andinas, com os ‘huacos mochicas’ . com os desenhos em cabaças contendo histórias, ou com os "cuentos pintados".
Feliciano e seu primo Luiz Lana, incentivados no exercício de sua arte, criaram uma série de desenhos que acompanham o registro escrito das mitologias Dessana, publicados no livro ‘Antes o mundo não existia’, organizado por Berta Ribeiro e editado em 1980, em São Paulo. Quinze anos depois, uma segunda edição foi feita em São Gabriel da Cachoeira (AM), com o apoio da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) e do Instituto Socioambiental (ISA) e uma apresentação da antropóloga Dominique Buchillet.
Os desenhos de Feliciano percorreram o mundo, adquirindo uma dimensão internacional. Foram expostos em São Gabriel; em Manaus, no Rio de Janeiro, na Alemanha, em mostra organizada pelo Museu de Etnologia de Frankfurt; na Espanha e na Itália, em edições do livro ‘Antes o mundo não existia’. Atingiram, portanto, um público letrado, urbano, com hábitos de leitura, freqüentador de museus, galerias e salas de exposições.
Durante a mostra de filmes e vídeos organizados pelo Instituto Socioambiental (ISA) nessa semana, no Teatro Chaminé, em Manaus, intitulada “Visões do Rio Babel – Conversas sobre o Futuro da Bacia do Rio Negro”, o professor Ernesto Renan Freitas Pinto, diretor da Editora da Universidade Federal do Amazonas, confirmou que vai publicar ainda este ano o livro com duas narrativas: ‘A origem da noite’ e ‘Como as mulheres roubaram as flautas sagradas’, cujas ilustrações e textos – dessana e português - são de autoria de Feliciano Lana.
Sem dúvida, o futuro da região do Rio Negro depende, em grande medida, da capacidade que tivermos para coletar e registrar os saberes e a literatura oral indígena, usando diferentes tipos de base física para esse registro. Os índios em todo o Brasil estão atualmente buscando novas formas interculturais de expressão, trabalhando não apenas o texto escrito e o desenho, mas ensaiando alguns passos com o teatro de bonecos – como começaram a fazer os guarani do Rio de Janeiro – ou o próprio recurso do vídeo e do cinema, como vêm fazendo muitos outros grupos. Qualquer uma dessas formas é válida para desenhar os sonhos.
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