CRÔNICAS

Entre a caneta e a borduna

Em: 05 de Julho de 2015 Visualizações: 10186
Entre a caneta e a borduna
- Ele não assina nem que a vaca tussa - disse a primeira.
- Só assina se for pressionado - falou a segunda.
Sei que as duas falam pelos cotovelos, mas nunca tive a sorte de conversar com elas. Quando a primeira, que é conciliadora, sofre uma derrota, cede o lugar para a segunda, que não rejeita briga. Foi o historiador Neimar Machado de Sousa, professor da Universidade Federal da Grande Dourados, que encontrou as duas numa sala do sexto andar do Ministério da Educação em Brasília e, finalmente, conseguiu, entrevistá-las.
Neimar pode formular perguntas. Doutor em Educação pela Universidade Federal de São Carlos e mestre em história regional do Mato Grosso do Sul, ele é "rato de arquivo". Andou xeretando documentação do SPI - Serviço de Proteção aos Índios em projeto com o Museu do Índio para catalogar, divulgar e colocar a documentação acessível aos índios e aos pesquisadores. Andou pelos arquivos do Paraguai e participou da criação do Centro de Referência Virtual da Memória e do Patrimônio Cultural Guarani e Kaiowá.
A documentação encontrada nos arquivos dá conta da presença dos índios na região, da invasão dos seus territórios e do conflito pela terra, além da participação deles, já despossuídos do seu chão, nos empreendimentos locais como a exploração da erva-mate e a formação de pastagens em fazendas. O historiador publicou livros e artigos sobre a catequese jesuítica e sobre a construção colonial da fome entre os Guarani. Por isso, talvez seja a pessoa mais indicada para realizar as entrevistas que fez, num momento em que se acirra o conflito agrário entre índios e fazendeiros.
Os conflitos
A origem do conflito reside basicamente no fato de que em passado recente os índios foram expulsos de suas terras, algumas delas vendidas pelo próprio Estado, que agora propõe, através do Ministério da Justiça, indenizar os fazendeiros para que se retirem do território indígena. Os fazendeiros, que estavam negociando a saída, mudaram de ideia diante da possibilidade do Congresso Nacional aprovar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC 215) que favorece seus interesses.
Foi nesse contexto que Neimar Machado de Sousa realizou as entrevistas, cujo texto intitulado A CANETA E A BORDUNA reproduzo aqui, aproveitando também para piratear a foto.
"Representantes indígenas de vários estados juntaram-se a uma delegação de professores e caciques das etnias Guarani, Kaiowá e Terena do Mato Grosso do Sul e partiram para Brasília, onde durante dois dias visitaram alguns órgãos do governo federal. Uma pergunta que se fizeram várias vezes foi: o que nos trouxe aqui?
Durante dois dias acompanhei, como observador, esse grupo e procurei ler-escutar os seus textos-falas para encontrar uma resposta. Ouvi muitas explicações. Uma delas foi escrita pelo cacique Jorge Gomes, da aldeia Pirakuá, em frente á Advocacia Geral da União:
- Nossos direitos não tem partido - conclamou os aliados do alto de sua sabedoria. Outra resposta foi verbalizada pelo índio Cretã Kaingang, do Paraná:
- Meu pai foi morto, lutando pelas terras usurpadas, sem nenhuma providência, por mais de sessenta anos. Eu era apenas um garoto de oito anos de idade". Já a professora Teodora de Souza explicou a Paulo Gabriel Nacif (SECADI-MEC) e ao representante da Secretaria Geral da Presidência da República o que entendia por pátria educadora:
Uma nação que todos, independentes de sua etnia, tenham acesso justo, gratuito, aos bens culturais. Uma nação em que os saberes não sejam privilégios de uma pequena elite.
De todas as respostas, a mais contundente foi escrita em uma fotografia, em cuja legenda eu escreveria: a caneta e a borduna. O professor, flagrado pelo fotógrafo, coordena uma licenciatura indígena na cidade de Aquidauana - MS e a borduna, à sua frente, pertence ao cacique Jorge Gomes, da etnia kaiowá. Intrigou-me como os dois objetos foram se encontrar no sexto andar do Ministério Educação, em Brasília – DF. Fui entrevistar os objetos em segredo.
A borduna, um pouco ríspida, contou-me muitas aventuras contra inimigos ferozes de outras tribos, abatidos em guerras imemoriais. Falou sobre sua participação na vingança dos parentes devorados por felinos-homens, predadores de índios, chamados pelos Guarani de ava poro’ú. Os cronistas coloniais Hans Staden, Jean de Léry e o sociólogo Florestan Fernandes ajudaram-me na investigação.
Entrevistar a caneta foi bem mais fácil, pois ela foi bastante eloquente. Contou-me que tem andado em muitos gabinetes de Brasília. Em alguns mais ausentes. Portas fechadas. Nas aldeias, disse-me, aprendemos, nos últimos anos a escrever palavras nas línguas maternas dos povos indígenas;. Falou-me que ajudou muitos professores-pesquisadores a registrar histórias de anciãos que não conseguem esquecer traumas pelas remoções de aldeias inteiras, quando eram também garotos, contra a própria vontade, em caminhões de transportar gado, sob a mira cuidadosa de “seguranças” armados e impedidos por anos de retornar ao local onde foi enterrado seu ponchito kuê, o cordão umbilical.

 Já no final da entrevista, o sábio objeto, bem mais à vontade, confidenciou-me que sua maior frustração na vida foi não conseguir colaborar, não por falta de vontade, mas por omissão de algumas autoridades, a rabiscar seu maior sonho: a assinatura da homologação das terras indígenas, que, segunda ela, está escondida numa gaveta do Ministro da Justiça, em Brasília. Diante de tantos relatos, compreendi o que trouxe estes professores e líderes indígenas à Brasília. Vieram ensinar ao governo que a pátria educadora é a irmã gêmea da pátria de direitos. Uma não vive sem a outra".

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4 Comentário(s)

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Hans Alfred Trein comentou:
06/07/2015
É uma pena que a caneta está tão desacreditada. São décadas, para não dizer séculos de engodo e mau uso. A caneta perdeu a sua confiabilidade. Quentin poderá restaurar a autoridade da caneta, para que não reste apenas aborduna?m
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Ana Stanislaw comentou:
04/07/2015
Adorei, Bessa!!!! Também deveríamos aprender que não vivemos sem os povos indígenas. É una pena que muitos representantes do poder e parte, ainda, significativa da população brasileira não aprendeu isso. O pior é que muitos se querquerem essa aproximação, diálogo com os indígenas! Muito bom, bom mesmo Bessa.
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neimar machado comentou:
04/07/2015
Obrigado por emprestar o ouvido de seus leitores aos Kaiowá e Guarani em Mato Grosso do Sul. Não se sentirão enganados, pois as histórias dos Kaiowá e Guarani, tragicamente, são compartilhadas por muitos outros índios de outras etnias. Contato de neimar machado
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Graça Barreto (via FB) comentou:
04/07/2015
A caneta é cruel, pior que a borduna.
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