CRÔNICAS

Pãos ou pães, questão de opiniães

Em: 19 de Fevereiro de 1986 Visualizações: 12010
Pãos ou pães, questão de opiniães

- Toda vez que se produz, em qualquer lugar do mundo, uma explosão nuclear, eu fico com o corpo cheio de coceiras insuportáveis.

Esta declaração é de um cidadão português, 63 anos, ao jornal O SÉCULO, de Lisboa. E a prova de que não se trata de uma piada é que este lusitano não se chama Joaquim nem Manoel, mas Amilcar Alves.

O nosso querido portuga concluiu, ora pois pois - que sua pele detectava qualquer explosão nuclear, inclusive aquelas não noticiadas pelos jornais. Farsa? Não! Uma junta médica, após rigorosos exames, confirmou que tudo era verdadeiro e revelou o mistério: em 1938, Amilcar recebeu uma dose excessiva de radiação, o que o tornou hipersensível às explosões nucleares.

- Quando a radioatividade liberada pela explosão é muito grande aparecem rachaduras em todo o meu corpo e até mesmo feridas em minha cara - queixou-se Amilcar, transformado assim num verdadeiro "detector nuclear humano".

Por esta razão, Amilcar foi contratado pelo governo americano e pela OTAN, com salário mensal alto, para informar cada vez que sentir comichão. Através das perebas de Amilcar, a CIA ficou sabendo das experiências subterrâneas supersecretas realizadas pela URSS na Sibéria.

QUASE LINDO

No Amazonas, nós temos um caso similar, igualmente espetacular, protagonizado pelo cidadão João Lindorífico de Souza, 58 anos, mais conhecido na cidade de Tapauá - a célebre Tapauá - pelo apelido de "Quase Lindo". Toda vez que alguma autoridade aparece na TV ou nos jornais, cometendo agressões contra a norma padrão da língua portuguesa, o corpo de Lindorífico, lá no rio Purus, reage, fica todo avermelhado, a pele irritada e ele sente insuportáveis comichões, do tipo daquele conhecido popularmente pelo nome de "Já Começa".

Quando os erros gramaticais são demasiado gritantes, a cara de Lindorífico se enche de feridas, o que levou a população da região do baixo rio Ipixuna a trocar o apelido de "Quase Lindo" pelo de "Bibelô de Sepultura".

Os médicos que examinaram Lindorífico afirmam que, quando menino, o professor da escolinha obrigava-o a decorar o plural de leão, o feminino de elefante e o coletivo de lobo, nunca usados na prática, porque ele nunca viu mais de um leão, nem lobos reunidos e o único elefante que encontrou, no Circo Garcia, era macho. Lindorífico ficou, pois, traumatizado e frustrado com a dose excessiva e inútil de gramática normativa nele injetada, tornando a sua pele hipersensível.

Detector humano dos atentados terroristas oficiais contra a língua portuguesa, ele foi contratado pela Universidade do Amazonas para informar ao Departamento de Língua Portuguesa cada vez que sentisse alguma alteração em seu corpo.

Toda vez, por exemplo, que o ex-ministro do Interior, Mário Andreazza, visitava Manaus e abria a boca, prometendo resolver todos os nossos "pobremas" ("pobrema" deve ser problema de pobre), comichões faziam Lindorífico sofrer. Agora, na autodenominada "Nova República", ele continua sofrendo com as autoridades, sobretudo estaduais. E como sofre!

WELCOME SARNEY

O presidente Sarney veio a Manaus. Então, o atual prefeito Manoel Ribeiro - o Mané das Pracinhas - publicou na primeira página dos jornais locais, uma mensagem puxasacativa, assinada por ele próprio, prefeito, cujo título era: "SEJE BEM-VINDO, Senhor Presidente!". Erro de imprensa? Negativo. A prova é que neste mesmo dia uma gigantesca impingem redonda desabrochou, como uma rosa, na bochecha direita de Lindorífico, que nem o gênio do melhor demartologista da Amazônia, dr. Sinésio Talhari, podia dar jeito.

Erro de imprensa, às vezes, serve como desculpa. E erro de TV? Durante os três dias de carnaval, o prefeito Mané Pracinha apareceu quinhentas vezes na TV apontando o dedo na cara do telespectador: "Tu sabe o esforço que a Prefeitura fez para ornamentar a sua avenida. Tu sabe que este carnaval é seu". O discurso - está gravado - foi um festival de discordâncias pronominais. Feridonas apareceram no corpo do Lindorífico.

O atual prefeito, no entanto, tem uma desculpa: ele é professor de inglês e como 'teacher' pode alegar que não tem a obrigação de dominar o idioma de Camões e do Dadá Maravilha. O grave seria se ele escrevesse "Wellcome Sarney" com dois "ll" de "well".

Quem não tem desculpas é o ex-prefeito Amazonino Mendes, que está louco para ser candidato a governador do Estado. Ele é monoglota, não espica o english, nem o Nheengatu e trata a língua portuguesa - a única que fala - como o Bicudão do "Arranca Toco Futebol Clube" trata a bola: vive pisando nela e não dá uma dentro.

Em plena avenida Djalma Batista, o ex-prefeito, entrevistado para um canal de TV, primeiro repetiu - é claro - as mesmíssimas palavras do governador Gilberto Mestrinho: "Este será o maior carnaval da história do Amazonas". Depois, balançando a cabeça como um boneco de molas, arriscou uma frase surpreendentemente de sua própria autoria: "É disso que o povo precisa: de alegria e de comida, de muita festa e muitos pãos".

O próprio governador do Estado, Gilberto Mestrinho, em carta publicada por todos os jornais no último domingo, declarou por escrito à secretária de Educação Freida Bittencourt: Tu desenvolvesteS...

Depois dessas declarações, o corpo de Lindorífico fichou cheio de dermatites diversas, em lugares que nem sempre podemos revelar, porque nossa consciência pudibunda nos impede: 27 coceiras no corpo, 36 perebas no pé, 14 manebas na mão, 16 curubas, 33 impingens, 28 quistos, 18 pintas, 14 frieiras, vários focos de fogo-selvagem, purupuru e outros pruridos e pápulas cutâneas.

Transportado às pressas para Manaus, Lindorífico foi internado no Hospital Universitário Getúlio Vargas, onde declarou: "É por isso que Amazonino Mendes não aceita debater com ninguém. Mas não o condenem não! O importante é que o povo coma pão no plural, não importa se em "ãos" ou em "ães". Afinal, pãos ou pães, é tudo questão de opiniães".

Lindorífico diz que defender regrinhas gramaticais é pura babaquice e leseira das brabas. Os grandes escritores foram justamente os que romperam conscientemente com a gramática normativa, exatamente como o povo faz diariamente, trabalhando, cantando e amando. No entanto, se o seu corpo se revolta com os atentados oficiais é porque a gramática sempre foi usada pelo poder, com objetivos ideológicos, para humilhar o povão e discriminar o seu falar criativo. E agora, o próprio grupo social dominante que formulou as regrinhas, não as cumpre. E o que é pior: nem sequer tem consciência das transgressões. Assim, não tem curuba de peruano que agüente!

 

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