CRÔNICAS

CPI e corrupção: peixe no prato, farinha na cuia

Em: 31 de Julho de 2005 Visualizações: 6805
CPI e corrupção: peixe no prato, farinha na cuia

.O espetáculo da próxima terça-feira merecia ser filmado pela câmera monumental de um Glauber Rocha, como se fosse um jogo decisivo da Copa do Mundo. Nesse dois de agosto devia ser decretado ponto facultativo para que 180 milhões de brasileiros assistam em suas casas, ao lado de amigos e com uma cervejinha bem gelada, o duelo José Dirceu versus Bob Jefferson na Comissão de Ética da Câmara Federal.

De qualquer forma, as pessoas vão mesmo parar por conta própria para acompanhar o interrogatório: nas padarias, nos supermercados, nas lojas, nos hospitais, nos bares, nos lares e em todos os lugares onde houver um aparelho de tv funcionando. Os fatos políticos que abalaram o país, tal como as telenovelas, são espetáculos que estão presentes no cotidiano familiar, nos papos de cafezinho, nas reuniões de condomínio, na comemoração dos aniversários, nos encontros para jogar baralho e conversa fora.

Outro dia, numa partida de dominó na casa de um ex-governador do Amazonas, duas senhoras foram chamadas de Renilda & Simone, porque roubaram, passando ‘gato'. Já a dupla adversária recebeu apelido de Delúbio & Careca, porque um deles, que era o próprio ex-governador, gritava desesperado para o parceiro trapaceiro: “Curva de Tamburello! Curva de Tamburello!”, pedindo-lhe, em código, que matasse a sena, mas o leso, desinformado, apesar de ser radialista, não lembrava o lugar onde morreu Ayrton.

Por que as pessoas gostam de acompanhar por televisão as sequências intermináveis dos interrogatórios das CPIs? O espetáculo é, aparentemente, monótono, com uns senhores gordos, carecas e barrigudos, enfatiotados e verborrágicos, fazendo discursos repetitivos. De vez em quando, é verdade, aparece um jovem parlamentar exibidinho, filho ou neto de algum barrigudo e careca, tentando simbolizar a probidade e a honradez, mas não cola. Não inova nem no tom, nem na retórica, nem nos preâmbulos.

Tragédia grega

Os coleguinhas jornalistas têm caído de pau em cima das sessões da CPI, argumentando que elas são pouco informativas, que os parlamentares que interrogam são incompetentes e exibicionistas, que os depoentes parecem todos com a Pepita de Guadalajara: não têm vergonha na cara. A CPI nem sequer prende um só corrupto, porque todos eles já chegam devidamente habeas-encorpados e respondem sempre aquilo que todos nós já sabemos, de cor e salteado.

Os críticos não sacaram ainda que o que interessa nesses interrogatórios não são as respostas e nem as informações novas. Talvez sua função seja similar à das tragédias gregas. Na antiguidade, gregos, troianos e baianos assistiam às peças teatrais, cujo desfecho todo mundo estava careca de saber. Ninguém ia ao teatro para ver algo novo, nem para ser surpreendido com algum final inusitado. Iam ver em cena acontecimentos que já conheciam. O fim era sempre trágico e inevitável. Sua função era de catarse. Será que as CPIs públicas são uma versão tropical da catarse?

Catarse significa purificação, limpeza da alma. Quando Platão condenou a tragédia, argumentando que ela estimulava paixões mórbidas e doentias, Aristóteles usou a palavra catarse para justificar sua função de liberar o espectador de seus conflitos psicológicos, de suas culpas, porque a ação concreta contida na tragédia lhe ‘autorizava' a viver, por tabela, essa emoção. A catarse permite eliminar perturbações psíquicas, excitações nervosas, angústias, nos ajudando a ter maior controle emocional e a enfrentar os problemas da vida.

As sessões públicas da CPI, transmitidas pela tv, estão permitindo uma catarse coletiva dos brasileiros, uma purgação das nossas culpas, uma superação dos nossos medos, um auto-reconhecimento de nós mesmos. Pode até nos curar. Os brasileiros que vivem honestamente estão cansados de ver a impunidade dos que roubam e assaltam os cofres públicos. Por isso, as sessões públicas têm servido para que o Zé povinho se vingue dos corruptos, funcionando como a malhação do Judas no sábado de aleluia.

Malhação do Judas

Tudo bem: as audiências públicas das CPIs não trazem informação, mas em compensação possuem um caráter didático. Quando um deputado de bosta, embora por motivos escusos, xinga um corrupto e o corrupto chora, treme de medo, mente, balbucia, isso é uma demonstração pública de que o crime não compensa. Quando os corruptos reclamam – e muitos têm reclamado – que não podem mais sair na rua, ir a um restaurante, que são vaiados, que seus filhos são insultados na escola, isso serve como contrapeso da impunidade. A execração pública é uma forma de vingança popular contra o cinismo, o deboche, a cara-de-pau, os advogados caros, as datas vênias e o escamborum a quatrorum.

As sessões da CPI servem para o povo cuspir na cara dos corruptos trêmulos, acovardados, encagaçados. Se a corrupção é uma doença social favorecida pela tolerância e pela falta de punição, a execração pública não deixa de ser um remédio. É o que acontece cada ano, no sábado de aleluia, quando há um extravasamento coletivo de mágoas e rancores, simbolizado na malhação do Judas.

No bairro de Aparecida, o Edílson da dona Pequenina fabricava um boneco de pano e palha vestido com roupas usadas, tipo espantalho. Pendurava-o num poste, lembrando o traidor que se enforcou. Aí, o boneco era arrancado e todo mundo sentava a porrada nele, até despedaçá-lo. Às vezes era explodido, queimado, atropelado. No começo, o boneco representava apenas a figura de Judas, o traidor de Cristo, mas aos poucos foi sendo substituído por políticos e outros personagens. Depois de amanhã, dia do enfrentamento do ex-ministro José Dirceu com o Bob Jeff, vai haver malhação de pelo menos dois Judas. Será um sábado de aleluia, com peixe no prato e farinha na cuia. 

P.S. 1 – LIVROS - Terça-feira, a partir das 19:00 h, na FNAC Pinheiros, em São Paulo, acontece o lançamento de dois livros importantes para a compreensão da Amazônia. Um deles, ‘Peixe e Gente no Alto Rio Tiquié', foi editado pelo ISA – Instituto Socioambiental com os conhecimentos tukano e tuyuka sobre ictiologia e etnologia. O outro, organizado pela antropóloga Dominique Gallois, da USP, discute ‘As redes de relações nas Guianas'. Bem que a Valer ou a Lua podiam organizar lançamento deles também em Manaus.

P.S. 2 – TESE - Tem um gringo, professor da Universidade de Ottawa, chamado Roger Voyer, que está interessado na tese de doutorado do amazonense Cláudio Nogueira. A tese, bastante original, discute o desenvolvimento regional e faz um diagnóstico das tentativas de se desenvolver a ciência e a tecnologia no Amazonas, com propostas para aprimorar o seu parque industrial.

P.S. 3 – DEMISSÃO –Mônica Colares Maciel, professora da Escola Estadual Reinaldo Thompson, no Coroado, grávida de oito meses, entrou na lista dos demitidos da SEDUC. A coluna se solidariza com ela e vai entrar nessa briga em nome da criança que vai nascer.

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