CRÔNICAS

Lumpesinato em Brasília: Pau (lo Freire) neles!

Em: 15 de Janeiro de 2023 Visualizações: 3123
Lumpesinato em Brasília: Pau (lo Freire) neles!

A hora é grave e inconstante. Tudo aquilo que prezamos: o povo, a arte, a cultura, vem sendo desfigurado pelos homens do passado, que por terror ao futuro, optaram pela tortura”. (Vinicius de Moraes. Amigo Di Cavalcanti. 1963) 

Nas noites calorentas de Manaus, as famílias do bairro de Aparecida colocavam cadeiras nas calçadas dos becos diante de suas casas e narravam histórias de um tempo mítico que nunca acaba. Contavam, às vezes em forma de parábola bíblica, na qual Cafarnaum era o Beco do Chora-Vintém e Jericó o Beco do Pau-não-cessa, que tudo o que aconteceu ou acontecerá no mundo já teve como palco o antigo bairro dos Tocos. Tudo?

Quase tudo. A invasão das sedes dos Três Poderes, no domingo (8), não tem precedentes, nem mesmo nas periódicas incursões predatórias realizadas contra os “bucheiros”, que moravam no bairro de São Raimundo, do outro lado do igarapé. Nesta rixa histórica, a gente sempre respeitava o sagrado, nunca se depredou igreja, escola, catraia. Centuriões da PM e fariseus de coturno do quartel do 27º BC jamais apoiaram tais ações, como ocorreu agora em Brasília.  

O único precedente, é verdade, foi dado pelo Neighborhood of Our Lady who appears, um bairro-irmão dos Estados Unidos, que testemunhou há dois anos a invasão do Capitólio em Washington. Lá eles prenderam e processaram 900 vândalos.  Mas o igarapé de São Raimundo não é o Potomac River.

O que fazer com 1500 terroristas presos na Academia da Polícia Federal que depredaram as sedes dos Três Poderes? O ministro da Justiça, Flávio Dino, anunciou a operação sem a qual o governo Lula não sobrevive: identificar e julgar os financiadores, organizadores, executores e mandantes. Alguns presos em flagrante, que vão responder pelo crime em liberdade, deduraram vários financiadores. Afinal, quem são eles? A que classe social pertencem?

Lumpesinato

Os delinquentes fichados pela polícia fazem parte de diferentes setores do lumpesinato. Marx denominou de lumpenproletariat os marginalizados e desempregados crônicos, que às vezes recorrem ao roubo. Esse “proletariado esfarrapado” excluído do sistema de classes e, portanto, carente de consciência social, é facilmente manipulado pelas classes no poder em troca até de um prato de comida, como os manifestantes protegidos pelo Exército.  

Mas há golpistas da lumpenburguesia, termo usado por André Gunder Frank para nomear a fracção social parasitária antidemocrática de comerciantes, agro negociantes, industriais, madeireiros, empresários do transporte e do garimpo, que vivem à sombra do poder. Sabemos agora que no golpe do dia 8, havia muitos bandidos de gravata e colarinho branco, traficantes, ladrões, lavadores de dinheiro, condenados que usavam tornozeleira eletrônica. A  mentalidade deles, segundo o sociólogo alemão criador da teoria da dependência, se assemelha à do lumpenproletariat. Saca o Véio da Havan? O Luciano Hang?  Pois é!  

Numa ampliação do conceito, podemos nos referir ainda à lumpen-academia, no qual se enquadram médicos, advogados, professores universitários, além de militares graduados do “Meu Exército Imbrochável”, pertencentes a uma casta com salários estratosféricos, aposentadoria integral, que incentivaram durante mais de dois meses a presença de golpistas em acampamentos frente aos quartéis, de onde saíram para o quebra-quebra.

São todos ideológica e politicamente lumpen esfarrapados. O que os une é o ódio à arte, entre outras motivações. Esfaquearam obra-prima de Di Cavalcanti, mijaram em peça de Burle Marx, vandalizaram criações de Bruno Giorgi e Frans Karajcberg, quebraram esculturas como a “Bailarina” de Brecheret, picharam “A Justiça” de Alfredo Ceschiatti, atiraram no chão um crucifixo do STF e apunhalaram o “Orixás” de Djanira, que havia sido retirada do Salão Nobre por Michelle Bolsonaro, por ser “coisa do demônio” uma leitura sui generis da arte e cultura popular.  

O lumpesinato, que abomina manifestações culturais e artísticas, nunca ouviu tais nomes. Não é crime desconhecê-los. Muitos leitores, como eu, também não conhecemos as 700 obras do Palácio do Planalto, mas as amamos assim mesmo, porque pertencem ao patrimônio cultural do país.

Lições de civilidade

A depredação de obras de arte é “A derrota do pensamento”, livro do filósofo francês Alan Finkielkraut, para quem o pensamento baseado na ciência, na experiência, na leitura e nos saberes ancestrais está sendo destroçado por negacionistas como os invasores de Brasília. Aí a barbárie se instala, a humanidade retrocede e fica em quatro patas. Para retomar a postura ereta e a inteligência do homo sapiens, os golpistas precisam passar por um processo civilizatório: aprender a admirar a beleza, conhecer literatura, poesia, artes plásticas, música.

Sugiro para isso que os condenados à prisão assistam cursos baseados na pedagogia crítica e libertadora de Paulo Freire, autor execrado no governo do Imbrochável. Os que aceitarem, terão direito à redução da pena, considerando que “a educação é um ato político e a política é um ato educativo”. Podemos criar um currículo supimpa com várias disciplinas, entre elas a História da Arte.

Os presidiários golpistas deverão ler dois livros fundamentais dos anos 1950: “A Necessidade da Arte” do austro-checo Ernst Fischer, com prefácio magistral do saudoso Antônio Callado e “A história social da literatura e da arte” do húngaro Arnold Hauser, em dois tomos, que tomei emprestado em 1979 de Renan Freitas Pinto, professor da UFAM, e a quem – que vergonha! - não devolvi até hoje. Não é meu, mas posso emprestá-lo aos acampados na Papuda e na Colmeia. Vale a pena ler, embora como se queixou o Imbrochável, tenha “muitas letras e excesso de palavras”.

Se os depredadores do Planalto forem vacinados com esses livros, compreenderão quão hediondo foi o crime cometido, pois a arte, uma das formas de consciência social, nos completa e nos define como humanidade. “A função da arte – escreve Fischer em um dos cinco capítulos – não é a de passar por portas abertas, mas de abrir as portas fechadas”.

Calo nos dedos

As portas fechadas dos golpistas eram “outras”, que foram abertas por várias pessoas, entre elas a docente da UNESP, Sandra de Moraes; a presidente interina do Conselho Federal de Medicina, Rosylane Rocha; a defensora pública Ana Lúcia Braga do 2º Juizado Especial Cível de Niterói e a tenente do Exército, Silvia Waiãpi, indígena criada por uma família de Macapá recém eleita deputada. Elas comemoraram nas redes sociais a invasão do Congresso Nacional. Isso não tem precedentes no bairro de Aparecida.

Por isso, o uso da pedagogia de Paulo Freire para redução da pena vale apenas para patriotários desinformados e arrependidos, usados como bucha de canhão. Já para militares, médicos, advogados, professores universitários, parlamentares, pastores monetizados, empresários e cretinos digitais fake que participaram do golpe, convém empregar o método tradicional da dona Lurdes Normando, professora particular do bairro de Aparecida, obrigando-os a escrever 100.000 vezes cada uma das frases abaixo até criar calos nos dedos:

- Porta de quartel não deve ser incubadora de terroristas.

- Nunca mais atentarei contra a democracia e contra o patrimônio do povo brasileiro.

- A vacina contra a covid não causa a AIDS e protege os vacinados.

P.S. Sônia Guajajara e Anielle Franco não foram empossadas, mas empoderadas como ministras numa cerimônia belíssima. Juro que ouvi a voz de Mercedes Sosa cantando Como la cigarra de Elena Walsh:  

Tantas veces me mataron,

Tantas veces me mori.

Sin embargo estoy aqui

Resucitando

Gracias doy a la desgracia

Y a la mano con puñal

Porque me mató tan mal

Y segui cantando.

Cantando al sol

Como la cigarra

Después de un año

Bajo la tierra.

P.S. Agradeço ao artista plástico Fabio Diobral (Di-obral), autor da pintura de abertura Burle, Marx, Di

 

                                                                                               

 

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25 Comentário(s)

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Marcelo Chalreo comentou:
18/01/2023
"COMO OS MANIFESTANTES PROTEGIDOS PELO EXÉRCITO" - Querido Bessa, destaquei esse pequeno trecho da sua crônica. Por esses dias circulou um artigo do Roberto Amaral, aquele que foi fundador do PSB lá nos anos 50 ou 60 e que ainda segue vivo e atento. Nesse, entre linhas e entrelinhas, o velho Roberto destaca algo fundamental, isto é, tem que ir atrás dos mandantes, dos cúmplices, dos que, por ação ou omissão, apoiam e insuflam esse lumpesinato de vários escalões sociais. Jamais teriam chegado onde chegaram não fosse o apoio de setores importantes das FFAA. Se permanecerem ativos, não receberem a devida e legal admoestação do Estado, voltarão à carga mais dia menos dia. Abraço
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Mariana Kutassy comentou:
18/01/2023
Bordadeiras do Cariri : Bom dia, Bessa querido!! Suas crônicas são sempre um bálsamo. Você, tal como as bordadeiras do Cariri, consegue sempre capturar e alinhavar fios no espaço, que parecem soltos, e os enreda em saborosas narrativas. beijo prá vocês
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Therezinha Nóbrega comentou:
17/01/2023
Texto maravilhoso, meu amigo. Contudo, Lula fará outro país, tenho certeza disso. Alguns sempre ficam no caminho, mas o milagre ocorrerá, é a profecia. Muita paz e saúde
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Heliete Vaitsman comentou:
17/01/2023
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Franco comentou:
17/01/2023
A vacina contra a Covid já receberam; falta agora a vacina contra a barbárie! Perfeito!
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Ana Cláudia Campo de São Bento comentou:
17/01/2023
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Ana Suely Cabral comentou:
17/01/2023
Você faz da trágico o cômico responsável! Grata pela leveza de sua escrita! Esse texto diferente dos outros tem, no fundo, algo de nostalgia!
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Ana Celia Ossame comentou:
16/01/2023
Adorei as sugestões das penas
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Claudio Oliveira Muniz comentou:
16/01/2023
Mais uma genial prof Bessa . ????????????????
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Elaine Menehhini comentou:
16/01/2023
Com essa você se superou. Ri, senti raiva, indignação, nojo, mas também gratidão por compartilhares comigo esse texto genial.
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Isabella Thiago de Mello comentou:
16/01/2023
Ca-ra-lho! Perdôe-me o palavrão. Dar a oportunidade de aprendizado, como se ainda houvesse tempo, como se ainda houvesse esperança para quem se diz "semente de Hitler" é uma espécie de Ironia do Absurdo, do Descalabro. Até numa hora como essa, tu consegues unir o Jornalismo e a Literatura. Vamos aos fatos: ainda estamos em pleno golpe: O que seria de nós sem a coragem dos Ministro do STF, principalmente de Alexandre de Moraes?
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Andreia Directora comentou:
16/01/2023
Realmente foi uma barbárie o que ocorreu em Brasília. Tenho esperança que através da educação conseguiremos mudar o futuro . E ocorrido em Brasília seja lembrado como um ato de selvageria que não acrescentou nada positivamente. Só destruição
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Ana Silva comentou:
16/01/2023
É, quase tudo já aconteceu no bairro de Aparecida. Felizmente essa selvageria não. Paulo Freire neles! Sensacional, Bessa
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Ivo Barbieri comentou:
16/01/2023
Comprimento cordialmente essa crônica do Bessa. Está aí aos olhos da sociedade brasileira estarrecida o bárbaro atentado contra as instituições democráticas do Brasil. Os bárbaros tentaram destruir obras de arte e a arquitetura inventada e construída pelo imortal Oscar Niemeyer. Ignorantes desconhecem os valores da civilização e da cultura e da história. Tentaram derrotar a inteligência viva do País. A crônica do Bessa mostra que a inteligência e a sabedoria do povo brasileiro, quando ameaçadas, renascem das cinzas como a Fênix imorredora. Viva a democracia inteligente! Parabéns ao Bessa, capaz de ver com olhos livres a realidade da hora presente! Abraço Fraterno!
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Zeze Weiss Revista Xapuri comentou:
16/01/2023
Que delícia de texto: Doído, sofrido, indignante, revoltante, mas danado de bom de ler
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Fernanda Garcia Camargo comentou:
16/01/2023
Bonita ideia, Bessa. Brilhante! Bastante poesia para desintoxicar, e logo uma vacinação de educação estética e política. Tem uma pintura que @fabiodiobral fez na ocasião, queria que visse! Beijos e saudade!!
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Celeste Correa comentou:
15/01/2023
Mano, eu creio que até os teóricos e especialistas do comportamento, e da mente humana, têm uma certa dificuldade de dar uma explicação contundente a respeito dessa barbárie ocorrida em Brasília. Mas eu penso que para além da histeria coletiva que o país assistiu, está evidente mesmo a questão da falta de educação. Não aquela educação formal, porque naquela confusão tinham também pessoas graduadas. Eu falo da total ausência de uma consciência coletiva, de sentimento de pertencimento em relação à coisa pública. E aí eu me reporto a um texto do Frei Betto que eu li há pouco tempo, onde ele faz algumas críticas ao PT e à esquerda brasileira por não ter se preocupado nesses últimos anos, em politizar a sociedade. E eu vejo que a crítica dele tem um enorme sentido. Por isso que o governo anterior defendia tanto a tal" escola sem partido" . Eles não têm nada de ingênuos e nem de loucos. Sabem do "perigo" que representa para eles ter uma sociedade com consciência política e visão crítica, Eu espero que principalmente os organizadores e patrocinadores dessa depredação do patrimônio público sejam severamente punidos.
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Múcio comentou:
15/01/2023
Excente!!! Professor, posso divulgar o textos entre os meus amigos, com os devidos créditos?
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Rodrigo Martins comentou:
15/01/2023
Eu me senti muito mal vendo toda aquela tragédia ao vivo, não consegui acreditar que aquilo estava acontecendo, triste demais. Tem que haver uma punição rigorosa para esses terroristas (sobretudo para quem financiou tudo isso), caso contrário abrirá precedentes para novas tragédias. Mas o bem vai vencer o mau e esses monstros não vão continuar com suas loucuras. E parabenizo Sônia Guajajara e Anielle Franco que foram empoderadas ministras, foi uma notícia maravilhosa que nós enche de esperança. Um abraço querido professor
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Nilda Alves comentou:
15/01/2023
Querido Bessa, crônica necessária, no ponto. Ando de saco cheio - desculpe - com textos que pilham, sem reconhecer que se está fazendo o necessário/possível nesse contexto; ou, pior, que têm conselhos aos que governam. Enfim, gostei imenso. Grande abraço Nilda PS Como sempre, passando adiante PS 2 Estou lendo o livro de Ana Arruda sobre Maria Ieda (a mulher mais bonita e elegante que conheci; professora maravilhoosa) e soube que você falou no lançamento (não soube dele; se soubesse teria ido). Nas orelhas, você fala que foi aluno dela em 1967 e juro que a dúvida me assaltou. Ela ainda estava no Brasil em 1967?
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Taquiprati comentou:
15/01/2023
Querida Nilda, obrigado pelo retorno, sempre anima a gente.. Sim, dona Yedda estava no Brasil em 1967, só saiu em 1969 . Quando ela morreu escrevi uma crônica Dona Yedda, a cangaceira amorosa https://www.taquiprati.com.br/cronica/948-dona-yedda-a-cangaceira-amorosa
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Felipe José Lindoso comentou:
15/01/2023
Resta saber se esse amontoado de lumpens consegue ler, ou escrever as frases da prof. Lurdes Normando. Talvez gravar os livros (ou seja, transformá-los em audiobooks) e colocar nos alto-falantes de todos os lugares onde eles estiverem. Indesligáveis e para sempre...
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Taquiprati comentou:
15/01/2023
Boa ideia, Felipe, bem alto, bem alto.
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Tania Pacheco comentou:
15/01/2023
PUBLICADO EM COMBATE - RACISMO AMBIENTAL https://racismoambiental.net.br/2023/01/15/lumpesinato-em-brasilia-pau-lo-freire-neles-por-jose-ribamar-bessa-freire/
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Valter Xeu comentou:
15/01/2023
PUBLICADO EM PATRIA LATINA https://patrialatina.com.br/lumpesinato-em-brasilia-pau-lo-freire-neles/
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