CRÔNICAS

Veneza e Manaus: lições de arte indígena

Em: 28 de Novembro de 2021 Visualizações: 4311
Veneza e Manaus: lições de arte indígena

O que têm em comum duas vitrines de arte indígena, uma exposta em Veneza em 2021 e a outra em Manaus, em 1997? A primeira foi na 17ª Bienal de Arquitetura, durou seis meses e se encerrou no domingo (21). A outra, aconteceu no Palácio Rio Negro e teve recorde de visitantes, entre eles dona Elisa, a genitora deste locutor que vos fala, cuja avaliação naquela ocasião já trazia embutida crítica ao atual secretário nacional da Cultura, Mário Frias. Ele declarou nunca ter ouvido falar na arquiteta Lina Bo Bardi, homenageada na Bienal e passou batido pela Oca Red – uma instalação reveladora do ato de morar dos povos indígenas do Xingu.   

Dona Elisa também desconhecia Lina Bo Bardi e a arte indígena. Tudo bem, não podemos cobrar tais saberes a uma dona de casa ou a alguns eventuais leitores, que nunca desempenharam cargo comissionado no âmbito da cultura, mas é inadmissível que o representante do Brasil nesse campo ignore Lina Bo Bardi, cidadã ítalo-brasileira, criadora de dezenas de projetos reconhecidos no mundo inteiro, entre outros o Museu de Arte de São Paulo (MASP) e o SESC-Pompeia. A situação se agrava com a postagem de foto nas redes sociais do ignorante e truculento Mário Frias ao lado de seus assessores, portando metralhadoras para puxar o saco daquele que o nomeou para o posto. Para eles, cultura é isso.

Embora até 1997 ninguém houvesse mostrado arte indígena à dona Elisa, ela tirou lições da Exposição do Palácio Rio Negro, o que não fez Mário Frias na Bienal de Veneza, conforme se verá a seguir.

Futuros do passado

“Como viveremos juntos?” Esse foi o tema da Bienal aberta no dia 22 de maio em três espaços de Veneza, com participantes de 46 países, cada um mostrando diferentes formas de ocupar o mundo, que não se limitam à construção de edifícios e demais monstrengos. Seu curador, o arquiteto libanês Hashim Sarkis, está convencido de que outra forma de morar é possível na cidade do futuro, que nasce da partilha de espaços comuns.

- “A arquitetura pode ajudar a transformar a sociedade” – declarou ele na abertura da Bienal, quando defendeu uma arquitetura menos monumental e pediu aos participantes propostas que evidenciassem as causas dos conflitos e das desigualdades sociais em cada país.

O Brasil atendeu ao apelo e criou nas duas salas do seu pavilhão espaços denominados “Futuros do Passado” e “Futuros do presente” para discutir as metrópoles contemporâneas e as questões urbanas, incluindo a falta de moradia. Destacou as utopias em território brasileiro, desde a Terra Sem Males dos Guarani até os dias atuais. Ocupou o Pavilhão Central com a Oca Red - uma videoinstalação do cineasta Takumã Kuikuro em parceria com o designer Gringo Cardia, para mostrar como o modo de vida indígena contribui na reflexão sobre o futuro da nossa maneira de viver e de ser.

- “Esta instalação é muito importante para falar da nossa realidade, para mostrar como nós vivemos na aldeia, como preservamos e lutamos pelo meio ambiente, que está sendo atacado por fazendeiros e por esse governo do Brasil” - disse Takumã Kuikuro. Seu parceiro Gringo Cardia concorda:

- “Como arquiteto, vejo que a gente aprende com os povos da floresta essa relação de equilíbrio entre o coletivo e o entorno, o ambiente. Essa é a grande questão do século XXI: fazer a reconexão do homem, da sua casa, com o sagrado, que é a natureza em volta dele”. 

Essa é também a preocupação da Associação Indígena Kuikuro do Alto Xingu (AIKAX), cujos membros eleitos trabalham de comum acordo com lideranças tradicionais, anciãos e membros da comunidade, centrando o foco na aldeia Iptase. O projeto de documentação da Casa Xinguana inclui estudos etnolinguísticos e programas de educação local coordenados pela linguista Bruna Franchetto, além de documentação dos modos de vida contemporâneos registrados em vídeo pelo antropólogo Carlos Fausto.  

Memórias da Amazônia

Quem está vagando e andando para tais questões é o titular da Secretaria de Cultura, Mario Frias, ao contrário de dona Elisa que em algum dia de abril de 1997 visitou a exposição “Memórias da Amazônia: Expressões de Identidades e Afirmação Étnica”, no Centro Cultural Palácio Rio Negro, em Manaus, em cujo jardins os Tukano e os Waimiri-Atroari construíram duas malocas, nas quais artistas de várias etnias ensinavam a fazer artesanato e pintura. Quem entrou nessas duas "catedrais" entendeu porque o premiado Severiano Porto confessou haver aprendido arquitetura com os índios na busca de soluções para habitar modernamente o espaço amazônico.

Entrei nas duas malocas com dona Elisa, percorrendo em seguida as salas do Palácio onde estavam expostas cerca de 300 peças artísticas confeccionadas pelos índios e coletadas entre 1783 e 1792 pelo cientista luso-baiano Alexandre Rodrigues Ferreira, em sua viagem filosófica, e  trazidas pela Universidade de Coimbra para a exposição do Museu Amazônico da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).

Uma confidência: dona Elisa, igual que a maioria dos amazonenses, herdou a discriminação aos índios, nunca manifestada diante deste seu filho, talvez para não me ofender, talvez por saber que levaria o troco. Ela ouviu muitos discursos boçais sobre a “selvageria” e a “preguiça” dos povos originários, semelhantes à recente fala do general Mourão ou ao enunciado nesta quarta-feira (24) na audiência pública da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, durante a discussão sobre o garimpo em território Yanomami responsável por muitas mortes. Parlamentares bolsonaristas, entre eles o Coronel Tadeu (PSL-SP vixe vixe), trataram os índios como “vagabundos”.

Por isso, a primeira vitrine impactou dona Elisa, com a mostra de cuias: umas pintadas com ramos de flores coloridas, outras ornamentadas com árvores, pássaros, frutas e figuras humanas, ainda outra decorada com um coração alado que vertia sangue, perfurado por duas flechas. Seus olhos azuis de nordestina contemplavam maravilhados bilhas, tigelas e jarras de cerâmica com motivos decorativos coloridos, vasos de argila branca com alças, cachimbo cinzelado com motivos florais, maracá pintado com faixa dourada em espiral, prancheta para aspirar paricá com cabo esculpido na forma de pescoço de um réptil, trombetas, figuras zoomorfas de cerâmica.

Nossos antepassados

Na medida em que prosseguia a visita, aumentava o deslumbramento: vasos carenados, colares com cilindro de quartzo, lança-chocalho de madeira vermelha ovalada, clavas, máscaras de entrecasca representando animais diversos da floresta, tangas de missangas, zarabatanas, sem contar a arte plumária: coifas e toucas revestidas com penas de papagaio, faixas emplumadas com penas vermelhas e amarelas de arara, pulseiras com pingentes. Todas as peças eram extraordinariamente belas. Diante de uma das últimas – uma trombeta transversal Munduruku talhada em madeira vermelha, ao lado de uma flauta sagrada dos Tukano - dona Elisa, já sem fôlego, expressou uma dúvida atroz que revelava seu pensamento:

- José (ela só me chamava assim em momentos delicados), você tem certeza que essas peças foram produzidas pelos índios?

A resposta foi dada na hora pelo historiador Geraldo Sá Peixoto Pinheiro, então diretor do Museu Amazônico, que nos acompanhava:

- Se a senhora quiser posso lhe mostrar a documentação comprobatória.

No final da visita, seu comentário mostrou que havia aprendido a lição:

- “Meu filho, eu não sabia que os nossos antepassados eram capazes de produzir tanta beleza”.

Foi a primeira vez, em seus 80 anos de vida, que a ouvi se referir aos índios como seus “antepassados”. As peças confeccionadas por diferentes povos da Amazônia provocaram nela um sentimento de orgulho pela revelação de um passado compartilhado de refinamento, que até então desconhecia. Operaram um milagre na consciência da sua identidade regional.

Daí em diante, em suas aulas de catecismo aos sábados, na igreja de Aparecida, dona Elisa abriu espaço para dizer às crianças quem são os índios, vistos agora com outros olhos, como se ela parafraseasse o discurso do presidente do México, Lopes Mateo, na inauguração do Museu Nacional de Antropologia:

- O povo brasileiro levanta este monumento em homenagem às admiráveis culturas que floresceram na era pré-colombiana em regiões que são agora território da República. Diante do testemunho daquelas culturas, o Brasil de hoje rende tributo ao Brasil indígena, em cujo exemplo reconhece características de sua originalidade nacional.

Essa é a lição que Frias e quem o nomeou jamais aprenderão, porque não são dignos de ver nem de entender. Mas o protagonismo inédito da arte indígena contemporânea na 34ª edição da Bienal de São Paulo “Faz escuro, mas eu canto”, que termina no domingo (5), comprova – como sinalizou Jaider Esbell - que “a gente veio para ficar e que não somos modismo”.

Efetivamente, no evento de arte mais importante do Brasil, participam nove artistas indígenas. Além disso, mais de trinta deles exibiram sua produção na mostra paralela “Moquém Surari: Arte Indígena Contemporânea” no Museu de Arte de São Paulo (MASP)  e estão presentes ainda na Pinacoteca, no  Museu Brasileiro da Escultura e da Ecologia (MuBE) e na Plataforma TePI – Teatro e os Povos Indígenas – idealizada ´por Ailton Krenak.

P.S. Num episódio ocorrido em julho 1981, narrado em outra crônica (ver link abaixo) visitamos com dona Elisa o Museu Hermitage na então cidade de Leningrado, hoje São Petersburgo, cujo acervo tem mais de 3 milhões de peças. Na exposição aberta ao público havia objetos da arte popular russa conhecida como Khokhloma – pintura decorativa em pratos de madeira, taças, jarras, colheres de pau e diferentes utensílios de cozinha com ornamentação floral: folhas douradas, ramos, flores, frutas, grama. As lojas turísticas vendiam mostras dessas peças. De lá, dona Elisa trouxe uma colher. Quando ela viu as cuias das índias de Santarém da coleção Alexandre Rodrigues Ferreira, estabeleceu a comparação com a  Khokhloma, cujo nome ela e eu havíamos esquecido e que depois recuperei nas anotações que fiz em um caderno. (http://www.taquiprati.com.br/cronica/1333-memoria-olfativa-em-busca-do-sabonete-gessy)

 

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15 Comentário(s)

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Rosemary Oliveira comentou:
18/12/2022
Embora conheça a história da Lina Bo Bardi e tenha apreciado sua crônica no geral, discordo e achei maldoso e fora do contexto referir-se ao melhor presidente que o Brasil já teve de forma tão grotesca e desrespeitosa, citando o Mario Frias, que foi sincero ao dizer que não conhecia a arquiteta famosa.
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Taquiprati comentou:
18/12/2022
Rosemary, eu jamais criticaria o Lula de "forma tão grotesca e desrespeitosa". Admiro o Lula que foi, eu concordo com você, o melhor presidente que o Brasil já teve. ,
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Farney Tourinho De Souza Omágua Kambeba comentou:
02/12/2021
Professor José Bessa, parte da População Brasileira, possui a mesma atitude do titular da Pasta de Cultura. Fiquei Emocionado com o Relato sobre a Atitude da sua Mãe!
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Célia Maria comentou:
29/11/2021
Maravilha de texto!! Salve, Dona Elisa!!!
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Célia Maria Alves comentou:
29/11/2021
Oi Ribamar, você está sabendo da mostra que vai ser inaugurada agora em dezembro, antes do Natal, no Museu do Amanhã, no Rio? A Exposição "Fruturos Tempos Amazônicos" sobre a flora e a fauna da Amazônia vai exibir objetos de arte de diversos povos feitas por artistas indígenas (tem gente que chama artista, quando é indígena, de artesão, talvez por produzirem uma arte grandiosa, artesão aumentativo de arte, mistura de arte + tesão).
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Silvia comentou:
28/11/2021
Lindíssima crônica que mostra um outro modo de ver o mundo!
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Tânia Pacheco comentou:
28/11/2021
Publicado no blog COMBATE - RACISMO AMBIENTAL https://racismoambiental.net.br/2021/11/28/veneza-e-manaus-licoes-de-arte-indigena-por-jose-ribamar-bessa-freire/
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Loretta Emiri (via FB) comentou:
28/11/2021
Bessa, sua mãe me fez pensar à minha. Depois da estadia entre os Yanomami, voltando à Itália ela comprou um projector de slide e foi algumas vezes nas escolas.....
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urda alice alice klueger comentou:
28/11/2021
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Valter Xeu comentou:
27/11/2021
Publicado no blog PATRIA LATINA - http://patrialatina.com.br/veneza-e-manaus-licoes-de-arte-indigena/
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Rodrigo Martins Chagas comentou:
27/11/2021
Brilhante crônica professor! Com relação a esse cidadão que está na secretaria de cultura como outros desse governo nojento, covarde e arrogante, minha indignação, respeitem os povos originários seus coliformes fecais com pernas. Sabe professor, observo com orgulho cada conquista dos povos indígenas. Sonho para que algum cineasta elabore uma série ficcional de duas ou três temporadas (de pelo menos 5 episódios cada, poderia ter aventura,ação,mistério) inspirada em alguma lenda indígena de alguma etnia e coloque na Netflix para bombar no mundo inteiro, conseguiríamos expor esses artistas maravilhosos para vários países ao mesmo tempo, sei que isso acabará ocorrendo mais cedo ou mais tarde e estou ansioso para alguém ter logo essa ideia, seria maravilhoso Um abraço querido professor
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Jorge Novoa comentou:
27/11/2021
Bessa, muito legal seu artigo. Somente nossa arrogância pseudo civilizatória nos impede de admitir o quanto devemos aos povos originários e o quanto podemos aprender com eles. Obrigado. Um abraço
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Luiz Pucú comentou:
27/11/2021
José, tua mãe tinha razão você nasceu para nos encantar... AXÉ
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Ana Silva comentou:
27/11/2021
Nesse desgoverno, muitos ratos estão mostrando suas verdadeiras faces. Não esperamos muito desses canalhas!
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Celeste Corrëa comentou:
27/11/2021
Fantástica a 17. Mostra Internacional de Arquitetura da Bienal de Veneza! Ela é realmente uma vitrine da arte indígena e uma oportunidade extraordinária de desmistificar a visão etnocêntrica e preconceituosa sobre os povos indígenas. Mas para que essa desconstrução aconteça é preciso sensibilidade e também estar aberto para o conhecimento, como ocorreu com a D. Elisa, que, como a maioria dos amazonenses, herdou a discriminação aos índios, mas ficou extasiada com a arte deles na exposição do Palácio Rio Negro. Com pouca escolaridade, o seu preconceito, fruto da história do Brasil que ela aprendeu, ensinada a partir da visão do colonizador e reforçado pelos muitos discursos boçais que ela ouviu sobre os povos originários, ficaram marcados no seu imaginário. Mas, diferentemente do Secretário de Cultura Mário Frias, ela sabia admirar a beleza e estava aberta para o conhecimento. Aproveitava as chances de aprender e de se informar. E ao conhecer a belíssima arte indígena na exposição no Palácio Rio Negro, imediatamente se identificou e passou a ter orgulho dos antepassados.rs. O que não acontece com o Secretário de Cultura, Ex-Malhação, que tinha a obrigação, pelo cargo que ocupa, de ser minimamente informado, mas não consegue ver nem entender nada fora do discurso das armas propagado por esse governo do qual ele faz parte. Aí vai o recado para o ex- malhação: Faça como a D. Elisa, secretário. Aprenda a lição com a arte indígena! E responda: quem é o selvagem?
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