CRÔNICAS

Em Coari, uma faxineira chamada Francisco

Em: 07 de Janeiro de 2007 Visualizações: 12802
Em Coari, uma faxineira chamada Francisco
A Prefeitura de Coari paga religiosamente, todo mês, a aposentadoria de uma faxineira apelidada de Chicão. É isso mesmo! Você não leu errado, leitor (a)! Pode soletrar: ce-agá-i-CHI, ce-a-o-til-lhão-CÃO, CHI-CÃO. O Tribunal de Contas do Estado (TCE), em edital publicado no Diário Oficial de 29 de dezembro, deu prazo de trinta dias para Chicão, que é do sexo masculino, esclarecer sua estranha situação de faxineira aposentada.
 
Pesquisando daqui e dali, descobriu-se na folha dos servidores inativos o nome completo do Chicão. Trata-se de Francisco Mendes da Silva, a faxineira fantasma. Esse é o mesmo nome do secretário municipal de Limpeza Pública de Manaus em 2004, na administração Luiz Alberto Carijó de Gosztonyi. A Secretaria de Controle Externo do TCE abriu processo nº  3266/2005 para saber que diabo está acontecendo.
 
O Diário do Amazonas, que publicou a notícia, não encontrou o ex-secretário para que ele explique se efetivamente se aposentou como faxineira. A Prefeitura de Coari, através da secretária de Relações Institucionais, Aleomar Santos, jura que se trata de uma confusão. Mas o TCE quer investigar.
 
Acorda, Coari
 
Equívoco ou mutreta? Em Coari, tudo é possível, inclusive urubu voar de costas. Pouca gente sabe, mas a brava e indômita cidade de Coari quase foi bombardeada pelos russos em 1961. Naquela ocasião, podia ter desaparecido do mapa, para gáudio e júbilo dos moradores invejosos de Tefé e Manacapuru que, dessa forma, lhe roubariam o título de “Pérola do Solimões”.  Mas isso eu conto mais adiante, se houver tempo e espaço.  
 
Agora, a pergunta que se impõe é: por que um homem se aposenta como faxineira? Se a vaga era feminina, se ia mesmo trapacear, por que não trocou de nome para Francisca Mendes, evitando assim qualquer suspeita? Temia ser confundido com a genitora de um ex-governador? Tinha consciência, como a que eu tenho, de que mãe, mesmo do adversário mais ferrenho, merece respeito?
 
Sei lá. As respostas devem ser dadas pelo TCE. No entanto, o que surpreende, é que se aposente uma faxineira, justamente no momento em que Coari mais precisava dela para limpar as sujeiras do prefeito Adail Pinheiro (PPS) flagrado, às vésperas das últimas eleições, no aeroporto de Tefé, com uma mala preta contendo R$ 212 mil, na companhia do vereador Ari Moutinho (PMDB) e do vice-prefeito Rodrigo Alves (PP).
 
Adail, prefeito pela segunda vez, foi acusado de ter se apropriado indevidamente de mais de R$ 40 milhões oriundos justamente das contribuições previdenciárias dos servidores municipais, recolhidos entre 2001 e 2004, de acordo com processo remetido à Justiça Federal do Amazonas. A notícia foi reproduzida pelo intrépido jornal eletrônico “Acorda, Coari”, leitura obrigatória para quem quer conhecer a cidade.
 
O papaizinho aqui conhece Coari muito bem, pois lá morou durante quatro anos, internado no seminário redentorista. Estava lá em 1961. Nesse ano, os americanos treinados pela CIA, com apoio da força aérea dos Estados Unidos, invadiram Cuba desembarcando na Baía dos Porcos. Levaram porrada dos cubanos. Mas o ataque serviu de pretexto para a União Soviética instalar mísseis nucleares na ilha de Fidel.
 
O bombardeio
 
Na cidade de Coari não se falava de outra coisa. Os padres redentoristas, responsáveis pela Paróquia de Sant´Ana e pelo seminário, eram todos norte-americanos e faziam sermões nos quais esbravejavam contra o comunismo. Foi aí que se espalhou a notícia de que Coari seria bombardeada pelos russos. Conto como foi.
  
A rotina do seminário nos obrigava a acordar diariamente às cinco da madrugada. Tínhamos meia hora para tomar banho e escovar os dentes. Às 5h30 subíamos para a capela. O padre diretor discorria sobre um tema e nos deixava meditando, em silêncio, durante quinze minutos. Depois, assistíamos missa e descíamos para tomar café.
 
Um belo dia, no meio da crise de Cuba, o padre Francis Hirsch, o father director, entrou na capela aos prantos, na hora da meditação. Contou que barcos de guerra russos, fortemente armados, estavam subindo o rio Solimões e iam bombardear Coari. A resistência estava sendo organizada pelo prefeito Alexandre Montoril, um dentista honrado. O padre-diretor nos deu, então, duas opções:
 
- Ou ficar em Coari com os padres americanos, defendendo a sagrada eucaristia, ou arrumar as malas e fugir ao encontro da família, em Manaus.
 
Todos nós entramos em pânico. Tínhamos pouco tempo para decidir. Confesso que fiquei indeciso, mudando de opinião a cada segundo. Havia momentos em que minha resposta era ficar em Coari, enfrentar os russos e me tornar um mártir da Eucaristia, como São Tarcisio, morto pelos centuriões romanos com a hóstia consagrada dentro de sua mão fechada, não deixando que fosse profanada. São Ribamar, virgem e mártir. Sinceramente, o martírio, até que eu encarava. Mas meu Deus, não era possivel morrer sem pecar. Eu queria, pelo menos, cometer um pecadinho. Depois, Ribamar não é nome de santo, mas de porteiro de motel.
 
Por isso, no momento seguinte, suando frio, recuava, achando que não era justo morrer tão jovem, com apenas treze anos de idade, sem ter saboreado a vida. Queria ser santo sim, mas meu modelo de santidade era Santo Agostinho, boêmio, festeiro, mulherengo e pecador, que se converteu já velho, depois de haver pintado os canecos, e se tornou santo, graças às orações de sua mãe, Mônica, que também virou santa. Assim, até eu!
 
Ajoelhado à minha direita, o meu melhor amigo, Geraldo Cocó, indagava com a voz trêmula:
 
- A gente fica e morre, ou a gente vai embora e vive?
 
Cachimbinho, um paraense de Óbidos, encagaçado, chorava copiosamente:
 
- Não quero morrer.
 
Quinze minutos depois, que duraram uma eternidade, o padre Francis retornou dizendo:
 
- Não tem barco russo. Inventei essa história só para testar a fé de vocês.
 
Pequepei em pensamento, mandando o padre Francis pra PQP.
 
Pérola do Solimões
 
A história do quase-bombardeio de Coari quase entra no hino oficial da cidade, com música do padre Antônio e letra de dona Higina, a poeta de Trocari. Dona Higina nunca falava, declamava. Não dava bom dia, desejava alvíssaras. Um dia, visitando a biblioteca do seminário, perguntou assim como quem não quer nada:
 
- Oh, é aqui que vindes sorver, qual sagazes abelhas, o mel da inteligência?
 
Se ela era assim, coloquialmente, imaginem escrevendo o hino da cidade. A letra descreve o coariense como “gente forte e viril, sentinela da liberdade”, proclama que Coari é a pérola do Solimões e exalta, no estribilho:
 
- Oh Coari, oh Coari, nossa cidade em flor / São teus campos perfumados, são tuas praias um esplendor / Oh Coari, Oh Coari, não tens rival / nesse rio coloooooooossal.
 
Muito tempo depois, o músico e compositor amazonense Julio Hatchwell, que deve ser aparentado com o Busecão, fez uma bela marcha rimando Coari com porvir, cantada por ele em um programa local de televisão. Nessa época, dona Maria Higina Cartucho Mendes da Silva, viúva do coronel Antonio Mendes da Silva, já era falecida. Morreu em 19 de janeiro de 1979 em Belo Horizonte, na Clínica Geriátrica "Associação Paulo de Tarso".
 
No carnaval de 2007, a Escola de Samba ´A Grande Família´ leva para a avenida o samba-enredo “Coari, a cara de um Brasil que Cabral não viu”, cantado por Kleber Paiva, um dos compositores da escola. Aí, então, saberemos se Adail rima com Montoril e se Cabral recebeu aposentadoria como se fosse a princesa Leopoldina. A faxineira Francisco deve sair de abre-alas, varrendo a avenida. É o samba do caboco-doido.

 

 
VISTA PANORÂMICA DE COARI  
 
P.S. – Segundo o Diário Oficial de 08/11/2006, o defensor público João Leonel de Brito Feitoza foi designado para atuar todas as tardes no PAC Compensa. Um leitor pergunta se legalmente é possível acumular essa função com a de presidente da Câmara. Vou me informar e volto ao assunto.

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4 Comentário(s)

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Archipo Góes (via FB) comentou:
10/01/2018
Na época, e não somente naqueles tempo, o secretário de administração "emprenhava" a folha de pagamento com funcionários fantasmas e com parceria de um funcionário do Banco do Brasil, faziam decretos falsos, contas salário falsa, com os dados de funcionários que já haviam deixado a cidade, e assim, foi encontrado 30 médicos que já moravam fora de Coari e ainda estavam na folha de pagamento da prefeitura. Muita gente caiu na malha fina da receita federal sem saber o porquê.
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Francisco Gurgel (via FB) comentou:
10/01/2018
Égua, Professor! Me chamo Francisco, estudei todo o primário no FLB, minha mãe foi zeladora, mas desconheço esta aposentadoria fanta(?). Talvez o conterrâneo Archipo Góes possa ajudar a desvendar os segredos do xará Chicão. Este excepcional relato, do quase bombardeio a Coari, merece ser conhecido pelos meus primos, padres Redentoristas, "caboquinhos" de Coari, Francisco Sebastiao e André Andrade.
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Nelson Peixoto (via FB) comentou:
15/04/2016
Você José Bessa ampliou minha compreensão mais humana acerca da Maria Higina. Em minhas andanças pelo Trocaris via a admiração do povo, mas a tinha como uma boa gerente de castanhais que certamente dominava e explorava o trabalho dos colocados. Na verdade, minha atuação era mais nos castanhais da bacia do lago e rios a dentro. Minha luta junto aos castanheiros era para poderem plantar bens de raiz, não depender unicamente do barracão, ter condições de ir para a cidade comprando gasolina para seus rabetas e outros. Tenho histórias bonitas de resistência aos patrões, mas conheci e entrevistei um capataz, não lembro bem se trabalhou com a Maria Higina que pela floração das castanheiras sabia fazer o cálculo dos hectolitros no fim da safra. E aí. Castanheiro.... podia ser que estivesse vendendo ou escondendo castanha para alcancar um preço melhor por tirar da boca da cobra, como diziam.
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João Bosco Seabra da Silva (FB) comentou:
15/04/2016
é muita história pra se contar... assim é que é bom
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