CRÔNICAS

Clodovil, o analfabeto, entre oralidade e escrita

Em: 21 de Janeiro de 2007 Visualizações: 12460
Clodovil, o analfabeto, entre oralidade e escrita
O costureiro Clodovil Hernandez – Clô para os íntimos e Clodô para os críticos – tricotou e bordou na entrevista que deu à revista Flash, na semana passada, dizendo que o presidente Lula “não poderia ser nem sequer vereador, porque é um analfabeto”. Indignada, a deputada Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM) considerou essa declaração ofensiva aos analfabetos e acionou a Corregedoria da Câmara, exigindo uma retratação. Ela tem razão. Clodô, querendo ofender Lula, acabou insultando milhões de brasileiros.
 
Ninguém perderia tempo com o costureiro Clodovil (não pelo fato de ser costureiro, mas por ser Clodovil), se ele não tivesse sido eleito recentemente deputado federal pelo PTC (vixe, vixe!) de São Paulo. Na qualidade de parlamentar, ele vai costurar projetos e votar leis que eu, você, leitor (a), e todo o Brasil, seremos obrigados a obedecer. Já pensou? Olha só o perigo! Por isso, a bobagem que ele fala deve ser objeto de reflexão.
 
O deputado Clodô, na verdade, está debochando de mais de 33 milhões de brasileiros. Segundo dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), esse é o total de analfabetos funcionais que vivem atualmente no Brasil, isto é, pessoas com menos de quatro séries de estudo concluídas. A metade delas, mais precisamente 16 milhões de pessoas, é incapaz de desenhar no papel a letra “o”.
 
Ora, Clodovil sabe muito bem que o presidente Lula não está entre esses 33 milhões de brasileiros. Se o chama de analfabeto é porque está estendendo o campo semântico da palavra, que passa a ser sinônimo de ignorante, de quem não possui instrução escolarizada. É nesse sentido que a palavra é comumente empregada pela maioria das pessoas. Quando se quer ofender alguém, considerando-o burro, se grita: “analfabeto”.
 
Mas essa forma de tratamento é uma impropriedade, porque coloca no mesmo saco duas coisas que são diferentes: a escrita e o saber. Durante muito tempo, as pessoas que sabiam ler associaram erradamente escrita à sabedoria, e usaram sua condição quase racial de leitores para desprezar aqueles que não liam. Fizeram a gente acreditar que quem sabe ler é inteligente, quem não sabe é burro.
 
No entanto, a escrita é uma coisa e o saber é outra. A escrita é apenas uma fotografia do saber, mas não o saber em si. Todos os filósofos gregos, antes de Sócrates, eram grandes sábios, que não sabiam ler e escrever, porque a escrita ainda não havia sido inventada, mas Clodovil nem desconfia disso. Não suspeita que a sabedoria esteja dentro da cabeça das pessoas e não na escrita. A escrita é apenas uma das tantas formas de registrar e de colocar pra fora esses conhecimentos.
 
Nas sociedades indígenas, fortemente baseadas na oralidade, ninguém fica escrevendo para comunicar o que sabe. Lá, todos os saberes são transmitidos pela fala, da mesma forma que na Grécia antiga, na China, na Índia, na Pérsia, cujos filósofos e sábios não liam nem escreviam, mas transmitiram através da memória oral seus ensinamentos que até hoje circulam nas universidades.
 
A leitura, geralmente, proporciona prazer e conhecimento ao ser humano, mas é errado dizer que a leitura humaniza as pessoas, porque então se pode pensar, como Clodovil, que um indivíduo que não lê está distanciado da condição humana. Por outro lado, a leitura, dependendo do seu conteúdo, pode estimular preconceitos, fabricando gente estúpida e pedante. Ler, por si só, não torna um cidadão melhor ou mais sabido do que o outro. O ato de ler, por si só, não melhora ninguém.
 
Tenho um amigo guarani, da aldeia de Biguaçu, em Santa Catarina, que tem 96 anos. O nome dele é Alcindo. Não sabe ler, mas é um sábio, conhece todas  as plantas e ervas da mata atlântica,  e, além disso, é um homem sensível, justo e inteligente. Por outro lado, conheço muita anta com diploma de doutor, que vive uma vidinha de bosta, cheia de preconceitos e intolerância, de indignidade e falta de lógica.
 
Não podemos esquecer que Hitler, George Bush, Pinochet, Garrastazu Médici e tantos crápulas existentes na história da humanidade não eram analfabetos. Liam. Não adiantou nada. O que comprova que a leitura não faz ninguém melhor. Como qualquer ato humano, a leitura e a escrita estão marcadas pelo jeitão de cada um, por sua personalidade, interesse, temores, ressentimentos, sonhos.
 
Clodovil também diz que lê, constituindo-se numa prova viva de que a leitura fabrica antas ignorantes e desprezíveis. Suas declarações anteriores à Rádio Tupi contra os judeus fizeram com que fosse acusado de racismo pela Federação Israelita do Rio de Janeiro e que fosse interpelado judicialmente pela forma depreciativa com que se referiu aos negros.
 
Num belo livro editado no México, intitulado “O que lêem os que não lêem?”. Juan Domingo Argüelles lembra que as coisas criadas pelo homem, e entre elas o livro, só adquirem sentido, quando proporcionam bem estar e melhor qualidade de vida às pessoas, quando fazem com que se tornem mais gente: “Mais educação só pode nos ajudar se produz mais sabedoria”.
 
Clodovil finge que é educado, que é refinado, mas me pergunto seriamente de onde ele tirou essa idéia. Manifesta um ar de superioridade intelectual, que não resiste à menor análise. O que é que Clodô conhece dos saberes indígenas e africanos, de filosofia grega, de literatura brasileira, dos escritores franceses e russos, dos poetas alemães e de todos aqueles autores que se tornaram patrimônio da humanidade? Nada. O que escreveu Clodovil? Nada. Isso fica claro quando ele abre a boca, arrotando sua ignorância e seus preconceitos contra judeus, negros e analfabetos. .
 
Clodovil é sim um analfabeto de pai e mãe, no sentido que ele próprio dá à palavra analfabeto: burro e, além disso, babaca. Espero que a Vanessa consiga acertar o passo dele.

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