CRÔNICAS

O quati e os índios no Arsenal da Marinha

Em: 26 de Maio de 2019 Visualizações: 24333
O quati e os índios no Arsenal da Marinha

"Quatipuru, me empresta teu sono para eu fazer meu filho dormir”

Canção de ninar em Nheengatu – Rio Negro (AM) - 1873

O quati de focinho preto, ainda bebê, foi doado à corveta francesa Uranie atracada no porto do Rio de Janeiro. Essa passou a ser sua nova casa. Com medo, o bichinho vivia se escondendo, mas pouco a pouco começou a circular livremente pelo tombadilho, saltitando de proa à popa. Bagunceiro, rolava pelos punhos das redes como uma bola, fazia piruetas no mastro, caçava ratos no porão, abria malas com seu nariz comprido e brincava com o cachorro do navio, mordiscando suas orelhas. Ao meio-dia, o enfermeiro de bordo, que dele se encarinhou, chamava-o com um assovio e ele subia em seu ombro para comer. Era a alegria do barco.

A história do quati é contada pelo capitão de mar-e-guerra Louis de Freycinet, geógrafo francês, comandante da expedição científica, que deu a volta ao mundo, de 1817 a 1820, levando 120 homens, com o objetivo de estudar o magnetismo terrestre e coletar amostras de vegetais, minerais e animais para museus franceses. Ele deixou 31 volumes manuscritos sobre o que viu, nove dos quais já editados. Em dois deles, relata o histórico da viagem, incluindo duas passagens pelo Rio, quando ladrões roubaram do barco três cronômetros, dinheiro, documentos e malas. O Rio já era o Rio. Dos avós de Sérgio Cabral e Eduardo Cunha.

Os dois tomos citados com 1.500 páginas de texto, mapas e gravuras podem ser consultados na biblioteca do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Lá o autor narra a permanência do navio por mais de quatro meses na capital do país e descreve o perfil da população indígena, cujas aldeias foram visitadas por integrantes da Expedição. São enumeradas as vilas e paróquias das seis comarcas da então Província do Rio, localizando pelo menos 20 aldeamentos que existiam em 1818, com dados sobre os seus moradores indígenas. E qual a situação deles? É aqui que entra o quati que, por ser cabeludo, foi batizado pelos marinheiros com o nome de César.

Dai a César

Arborícola, de hábitos noturnos, César se adaptou às novas condições. Trocou a noite pelo dia. Em vez de vadiar na noite sobre árvores, dormia em beliche nos camarotes. Costumava assistir ao jogo de baralho dos tripulantes, quando aprendeu a beber vinho francês. Metia seu focinho nas canecas e chupava doses do “rouge qui tache”. Gostou. Viciou. Tomava porres homéricos. Virou alcoólatra. Mas a César, o que é de César. Sua trajetória nos oferece uma metáfora que explica as categorias pré-darwinianas usadas para classificar os indígenas, baseadas nas “Considerações sobre os diversos métodos a seguir na observação dos povos selvagens” (1800) de Joseph Degérando.

A partir daí, Louis de Freycinet fez uma analogia entre a conduta dos animais e as experiências humanas. Para ele, as diferenças entre o homem e outros animais são de grau e não de espécie. Assim, o quati atravessa as três categorias em que ele divide os índios: “selvagens”, “semicivilizados” e “civilizados”. O quati, que era selvagem e arredio, torna-se “semicivilizado” e depois “humaniza-se”, já batizado com nome cristão, quando adota usos, costumes e vícios da tripulação, com a qual aprende a conviver. Cada uma das categorias foi definida por Freycinet.

Os “índios selvagens” vivem nus em aldeias no meio da floresta. São “preguiçosos, com tendência inata a fugir do trabalho”, mas também “vivos e corajosos, tanto na caça quanto na guerra”. Cultivam “costumes bárbaros como a abominável poligamia” – escreve com uma pitadinha de inveja o autor, cuja esposa Rose entrou clandestinamente na corveta e o acompanhou em toda a volta ao mundo. Enquadravam-se nessa categoria “entre 1.500 a 2.000 índios Puri da boca do rio Paraibuna, a oeste do rio Pomba e nos limítrofes do Espirito Santo e Minas”, além dos Coroado que viviam em território próximo a Cantagallo.    

Os “índios semicivilizados”, na definição de Freycinet, eram aqueles que, batizados com nomes cristãos, conservam, no entanto, a maior parte de suas “inclinações primitivas”, incluindo a língua, e “um acentuado amor pela independência”. Neste caso estavam os Puri, Coroado e Coropó dos aldeamentos em São Fidelis, Itaocara e Pádua.

Já os “índios civilizados” eram os que, convertidos aos cristianismo e estabelecidos em aldeamentos fixos, só falavam português, se submeteram ao colonizador e passaram a usar roupa, como os “remanescentes Tupinambá, Guarulho e Goitacá” que no início do século XIX habitavam as aldeias de São Lourenço (Niterói), São Barnabé (Itaboraí), Mangaratiba, São Francisco Xavier (Itaguaí), São Pedro (Cabo Frio), Santo Antônio de Guarulhos (Campos), Aldeia Velha e Sacra Família de Ipuca (Casimiro de Abreu). A “civilização” equivale à extinção – lamenta Freycinet, ao constatar o genocídio.

Remar contra a maré

Numa noite enluarada, em setembro de 1820, a corveta zarpou da baía de Guanabara, “qual cisne branco em noite de lua”, mas deixou para a posteridade os relatos da Expedição, não traduzidos ao português e ainda pouco explorados pela historiografia sobre o Rio de Janeiro.

Lembrei da história do quati e da expedição Freycinet durante a arguição da tese de Silene Ribeiro nesta segunda (20), sobre o recrutamento e o regime de trabalho de índios remeiros no Arsenal da Marinha do Rio, quando mencionei os dois tomos Historique du Voyage de Freycinet. Ele registra dados que podem ser cruzados com os documentos de arquivos que ela soube tão bem explorar, especialmente aqueles do Serviço de Documentação Geral da Marinha, que dão conta do trabalho dos índios.

O Arsenal da Marinha, criado em 1763, se tornou uma pequena cidade dentro do Rio. Lá dentro se desenvolvia um conjunto de atividades produtivas, através de um complexo de oficinas de tanoaria, ferraria, calafetagem e casa de breu, que davam suporte ao reparo, manutenção e construção naval. Além disso, tinha como atribuições fiscalizar os barcos que, para fugir dos impostos, aportavam, alguns deles, em ancoradouros clandestinos. Devia ainda impedir o roubo de cargas do armazém da alfândega e oferecer apoio logístico com o fornecimento de água potável em pipas d’água. 

Essas atividades exigiam o serviço permanente de remadores nas embarcações do Arsenal, que era feito quase exclusivamente por dezenas de índios, que dominavam esse saber ancestral e as técnicas de navegação. Para verificar quem eram eles e qual era o sistema de trabalho, Silene escarafunchou documentos nos arquivos. Teve de tirar leite de pedra. As fontes estão dispersas, os nomes dos indígenas raramente aparecem nos ofícios, houve um apagamento deliberado. “Não foi possível encontrar na documentação as vozes indígenas” – escreveu ela, que cita o historiador Carlo Ginzburg, um dos pais da micro-história:

- “Se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas - sinais e indícios - que permitem decifrá-la”. 

Foi o que ela fez. Usou fragmentos biográficos de alguns índios e adotou uma escala de análise reduzida como estratégia para dialogar com diferentes aspectos da realidade. Produziu uma tese relevante para a história indígena. Conseguiu trazer à luz as condições de insalubridade, os salários baixos atrasados em até nove meses, as precárias condições de moradia com índios acampados no Campo de Santana, as deserções e a resistência dos índios ao trabalho compulsório, o que é confirmado por relatos de viajantes.

Sifilização ocidental

O médico e cirurgião da Expedição Freycinet, J. Paul Gaimard, observou pessoalmente a alimentação putrefata, indigesta, de péssima qualidade dos escravos e índios e o regime infernal de trabalho a que eram submetidos, responsáveis por doenças como varíola, erisipela, lepra, úlcera, sífilis, tuberculose, disenteria, hidropisia, tétano, coqueluche, alcoolismo e tantas outras. Ele conclui que isso explica a redução demográfica da população indígena e o consequente extermínio de línguas, narrativas, cantos.

E o César? Ah, três meses depois o nosso quati morreu bêbado debaixo da roda do leme, ao que tudo indica com cirrose hepática. Seu corpo foi lançado ao mar em singela cerimônia. Dessa forma, a metáfora de Freycinet se completa com o alcoolismo representando a contribuição da “sifilização ocidental”.

Um primo de César, o acutipuru, é celebrado em uma canção de ninar em nheengatu recolhida pelo cônego Bernardino de Souza, em 1873, no Rio Negro (AM). Conhecido nos igarapés como “cutia enfeitada”, passa a noite na balada e dorme o dia inteiro. Ficou com fama de dorminhoco. As mães pedem emprestado seu sono para ninar suas crias:

- Acutipuru ipurú nerupecê, cimitanga-miri uquerê uaruma.

Quem também precisou pedir emprestado o sono do César foi o enfermeiro de bordo da corveta Uranie, que deve ter sofrido de insônia algumas noites, esperando seu quatipuru atender o assovio dele. 

P.S. Silene Orlando Ribeiro. Exímios remadores do Arsenal da Marinha: recrutamento indígena no Rio de Janeiro (1763-1820). Tese de Doutorado. Pós-Graduação em História. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. 2019. Banca: Vânia Moreira (orientadora), Álvaro Nascimento (UFRRJ), Juciene Apolinário (UFCG), Marco Morel (Uerj) e José R. Bessa (Unirio/Uerj).

FREYCINET, Louis Claude Desaulces de: Voyage autour du monde fait par ordre du Roi. Chez Pillet Aîné Imprimeur-Libraire. Paris. 9 tomos. 1825. (Tomos I e II - Historique du Voyage).

FREIRE, José Bessa. Os viajantes e os índios do norte fluminense no século XIX. II Jornada de Trabalho. UENF, 1998, Campos. 1998. v. 1. p. 43-46.

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22 Comentário(s)

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Luiz Pucú comentou:
08/06/2019
Se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas - sinais e indícios - que permitem decifrá-la”. ACREDITO QUE ESSE É O TEU PAPEL NA HISTÓRIA E NA ESTÓRIA. DA TUA MISTUREBA VAI BROTANDO O TEMPO NO SEU DEVIDO LUGAR. OBRIGADO PELO TEU TEXTO PAIDÉGUA!
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Isabela Thiago de Mello comentou:
28/05/2019
Bessa, você e suas bancas de mestrado e doutorado são imprescindíveis! Saudade, professor, querido A história do quati no navio do geógrafo Freycinet que pesquisa as nações indígenas no Rio de Janeiro, mais uma vez nos faz constatar a barbárie da civilização. Os humanos de humanos não tem nada. Os hominídeos também são animais mamíferos que apesar de se acharem mais inteligentes porque aprenderam a dominar a natureza, e a construir ferramentas, igrejas e pirâmides, só que, ao invés de dividir o trabalho e a comida, os tais animais humanos, que não se acham animais - os humanos evoluíram escravizando e matando seu semelhante. O nosso animal mamífero que há em nós, é nosso verdadeiro humano. Viva o quati! Viva os Tupinambás!
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Cordelia Fourneau De Mello Mourão comentou:
27/05/2019
"Voces os franceses são nossos amigos desde sempre!" Foi assim que Daua Puri me cumprimentou quando eu pus pela primeira vez o pé na Aldeia Maracanã. Ao ler as narrações dos viajantes e a historia tão bem contada pelo querido prof. Bessa, entendo que meu amor para a natureza daqui, os bichinhos e os povos primeiros, vem de longe e posso seguir o fio da linha do tempo, tal o quati na sua corda !
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Magela Ranciaro comentou:
26/05/2019
Que história bonita. Lembrei de um trabalho da Berna em que ela colecionou algumas músicas de ninar de povos do Alto Rio Negro. Acho que esse arquivo está no IPHAN quando ela dirigiu o Instituto aqui no Amazonas. Não tenho muita informação a respeito, mas ela comentava muito sobre isso. Chega doeu, aqui, lendo isso
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[email protected] comentou:
26/05/2019
Boa noite professor Bessa! Que leitura deliciosa! Adorei a parte que o senhor falou que o Freycinet ficou com inveja da poligamia hahahahahah Destaco também a linda canção nheengatu do início da crônica, muito linda, Além disso ao ler a palavra Quati no título da crônica, lembrei do Recanto do Quati da querida Valéria do Proíndio, saudades dela. Um abraço querido professor.
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Emerson Costa (via FB) comentou:
26/05/2019
Muito interessante o texto. Deu vontade de ler a tese da Silene na íntegra. "Sifilização ocidental" foi pesado...
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Yvytu Força originária comentou:
26/05/2019
Como os brancos usaram da metáfora do quati César para classificar os povos indígenas. Embora a descrição dos brancos sobre nós seja de uma visão racista e discriminatória, é uma interessante fonte para o registro da presença indígena no Rio de Janeiro e do trabalho dos indígenas remeiros no Arsenal da Marinha.. https://www.facebook.com/permalink.php?id=1925812454214340&story_fbid=2018154948313423
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Serafim Corrêa comentou:
26/05/2019
Publicado no Blog do Sarafa - http://www.blogdosarafa.com.br/?p=34235
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Marcelo Chalreo comentou:
25/05/2019
Boa noite! Acabo de ler essa bela crônica e a referência à tese, ao tema abordado, é em certa parte coincidentemente com um livro que estou lendo nesse momento, Violência no Rio Antigo, que trata de prisões, castigos, punições etc, nos quais as naves da Marinha ( século XIX ) tiveram um papel importante com as presigangas e o ofício exercido pelos membros dessa Força. A propósito, há como se conseguir um acesso a essa tese ? Gostaria muito de ler.
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Luiz Di Paulanis (via FB) comentou:
25/05/2019
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Eliane Lima comentou:
25/05/2019
Maravilha tudo o que o senhor escreve
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Edmundo Pereira comentou:
25/05/2019
Faz tempo que não comento, mas está foi especialmente interessante (para mim), já que com o Freycinet veio o Arago, "desenhista" da expedição que, ao final, na segunda passagem pelo Rio, já de volta, negocia com a família real, coleções de "curiosidades" com o Museu Nacional (então Museu Real) todas da Oceania (dos mares do sul). Quando retomar esse tema, vou reccorer a esses materiais do Freycinet.
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Ana Silva comentou:
25/05/2019
Maravilha de texto, Bessa. O quati é uma excelente metáfora mesmo.
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Celeste Correa comentou:
25/05/2019
Mano, obrigada pela linda aula que essa tua crônica nos dá! Já repassei para vários amigos, pois muitos deles têm essa visão do " índio selvagem e preguiçoso" que a história mostrou para elesEu conheço pouco da história indígena, dos seus desafios enormes e da resistência para manter viva e sobreviver a tantos massacres. Mas sei que nunca foi fácil e as conquistas pelos seus direitos sempre foram difíceis, inclusive nos governos do PT de quem esperávamos mais, porque era uma das bandeiras do Partido. Porém não imaginava tantos prenúncios de retrocessos como o que esse governo tem sinalizado. Não estão nem dando tempo de tomar fôlego, olha...
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Renata Tupinamba (via WhatsApp) comentou:
25/05/2019
Texto muito rico. muito bom. Irmãos da minha avó chegaram trabalhar no arsenal. Parte materna. E meu pai avó dele era dessa aldeia em Itaboraí por parte paterna. Mas nunca tive referência desse parte da família por parte dele. Apenas da minha mãe mesmo. Pois fui criada por minha avó materna. Tenho alguns documentos que depois vou também pesquisar no arsenal
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Marco Morel comentou:
25/05/2019
Mais uma vez parabéns, Bessa, pela sensibilidade histórica e por divulgar um trabalho importante e original. Aproveito para divulgar aqui (já que espaços como este são preciosos) o livro que publiquei sobre história indígena, disponível para download gratuito. Abraços. https://drive.google.com/file/d/1GsaYM5RjvcpeP6_H27hDT6w3boaxKRdE/view?ths=true [Após abrir o link, clicar em “Fazer Download / Transferência” e depois em “ Transferir assim mesmo \ Download anyway”.]
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Silene Orlando Ribeiro comentou:
25/05/2019
Texto magnífico, professor José Bessa! Obrigada por seus ensinamentos.
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Joana D Arc Fernandes Ferraz comentou:
25/05/2019
Lindo texto. Uma parte da história do Rio de Janeiro que pouco ou nada conhecemos.
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Juciene Ricarte Cardoso comentou:
25/05/2019
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Marcelo Lemos comentou:
25/05/2019
Belo artigo Bessa. Fiquei interessado em ler a tese da moça. Fiz cruzamento entre os indios listados no documento da BN com os que levantei em diversas aldeias e pude comprovar que eram arregimentados à força de diversos locais para o Arsenal.
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Ivone Andrade comentou:
24/05/2019
Muito bom Babá. Só fiquei com dó do César, poxa!
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Arlete Schubert comentou:
24/05/2019
Obrigada! Que delicadeza de historia contada professor...Conta mais que a gente por aqui adora "ouvir"
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