CRÔNICAS

Nazim Hikmet: a vida é alegre, ma non troppo

Em: 05 de Novembro de 2017 Visualizações: 24184
Nazim Hikmet: a vida é alegre, ma non troppo

Hé dis donc, Taranta Babu! Hé dis donc, que c'est beau de vivre!

Nom de dieu, que c'est beau de vivre! (Nazim Hikmet -1901-1963).

- Diga lá, Taranta Babu! Diga lá! Como é bom viver! Meu Deus do céu, como é bom viver! A vida é uma coisa tão bela, tão alegre, mas há momentos estranhos, como agora, em que os bandidos dão as cartas e a vida fica tão sangrenta e desumana, tão insuportável, que dá vontade de desistir dela. O que fazer?

Parece até o Brasil de hoje. Mas foi escrito pelo poeta turco Nazim Hikmet, em 1935, num cenário tão “esquisito” como esse que vivemos, no qual a vida duvida da própria beleza. O nazismo, o fascismo e o racismo assolavam a Europa e conquistavam adeptos em outros países, incluindo o Brasil, onde a ditadura Vargas prendia, torturava, arrebentava. A indústria bélica fazia mais de 40 milhões de mortos na Segunda Guerra. Logo o macarthismo iria ferir de morte a democracia norteamericana. Havia retrocesso generalizado nas liberdades, a censura golpeava as artes, o cinema, o museu, a escola, o sindicato, com a cumplicidade da grande mídia.

Esse filme a gente está vendo agora outra vez. O triunfo do obscurantismo e da escrotidão, hoje, atualizam as palavras de Nazim Hikmet, que viveu duas guerras mundiais. Preso político durante quinze anos, foi torturado, fez greve de fome e, logo ele que amava tanto a vida, tentou o suicídio na prisão em um momento de dor insuportável. Foi condenado à morte e libertado graças a uma campanha internacional. Exilou-se sem o direito de rever a mulher e o filho proibidos de deixar a Turquia. É o poeta turco de maior expressão internacional, mas ainda pouco conhecido aqui, onde seu nome não é badalado nos suplementos literários. Et pour cause...

Ivan Ivanovitch

A nossa geração das passeatas contra a ditadura teve a sorte de conhecê-lo porque, nessa época, circulava clandestinamente entre os militantes uma edição em espanhol do livro Existió realmente Ivan Ivanovich? - peça de teatro em três atos, escrita por ele no seu exílio de Moscou, em 1955, na qual criticava o regime stalinista. Éramos poucos os que sabíamos quem era Nazim Hikmet. Ainda somos.

- Ele era um homem alto, louro, aquilino, de olhos azuis, muito simpático. Mantinha sempre um tom risonho e jovial nas suas conversas – escreveu seu amigo, o poeta cubano Nicolás Guillén em suas memórias.

Nazim passou a parte mais significativa de sua vida na prisão, condenado em dois processos.  O primeiro quando seus livros de poesia foram encontrados com vinte alunos da Academia Militar que adoravam literatura. Por isso, foi acusado de incitação à indisciplina e à rebelião, com pena de 15 anos de prisão. O segundo porque cadetes da Marinha foram também surpreendidos lendo os livros do poeta. Aqui a condenação foi de 28 anos. A poesia dele dentro dos quartéis fazia mais "estragos" que uma bomba, porque fazia pensar. 

Quando ganhou, em novembro de 1950, o Prêmio da Paz, conferido pela II Conferencia do Congresso Mundial da Paz, quem recebeu a honraria em seu nome foi Pablo Neruda que, no discurso, contou como Nazim Hikmet reagia à violência. Encarcerado por um tempo em um barco da Marinha turca, foi colocado dentro de uma latrina cheia de excremento e triunfou sobre a cloaca nauseabunda, cantando. Cantou sem parar em voz alta todas as canções de amor que conhecia, seus poemas e cantigas populares, até de lá ser retirado, rouco e cambaleante..   

Depois de fugir da Turquia, já no exílio, tentou por todos os meios trazer de lá sua mulher e filho, sem sucesso. Neruda conta que ela procurou o general, ministro do Interior, que lhe disse:

- Nunca sairás da Turquia. Nem tu, nem teu filho. Teu marido vai sofrer até morrer por causa disso. Logo depois tu seguirás seus passos. A criança ficará, então, sob a nossa guarda para que lhe ensinemos a odiar seu pai.   

Viva a vida

A resposta antecipada que ele deu está em um poema à sua mulher, em outubro de 1945, no qual afirma o compromisso com a beleza da vida: “Nós dois sabemos, minha amada, / que nos ensinaram / a ter fome e frio / a morrer de cansaço / e a viver separados. / Nós não fomos obrigados ainda a matar / e nem chegou ainda a hora de morrer. / Nós dois sabemos, minha amada / que nós podemos ensinar os outros / a combater por nosso povo / a amar cada dia um pouco mais / cada dia um pouco melhor...”

A obra luminosa de Nazim Hikmet continua inspirando o mundo, apostando na vida, mesmo “nesses tempos em que é tão difícil a ternura”, como escreveu sobre ele o poeta basco Blas de Otero. Nazim sabia que a vida podia ser bem melhor e lutou para que assim fosse, mas isso não o impediu de dizer, como Gonzaguinha, que a vida é bonita, é bonita e é bonita.

Desistir da vida? Professores, servidores da UERJ e o funcionalismo público do Rio estão sem receber seus salários há três meses num contexto em que a ministra de Direitos Humanos Luislinda Valois, que não se pronunciou sobre as leis de Temer permissivas em relação ao trabalho escravo, requer salário mensal de R$ 61 mil, “porque não é escrava para trabalhar de graça”.

O espetáculo obsceno encenado nacionalmente por representantes dos três poderes é chocante e brutal. O presidente é acusado - com provas robustas - de chefiar uma quadrilha, da qual fazem parte seus ministros. Deputados e senadores chantagistas, muitos deles envolvidos com corrupção, boicotam qualquer investigação. O Judiciário tergiversa. Todos eles com discursos indigentes, verdadeiras bofetadas em nossa inteligência. É a ditadura do lumpensinato. Não esboçamos qualquer reação. Adoecemos impotentes, deprimidos, alguns desistindo da alegria da vida.

Quando a vida está ameaçada, nesses tempos de Trump e Temer, ler Nazim Hikmet não é só um bálsamo, é uma necessidade. Ele enfrenta a morte.

A Morte

Um dos tópicos mais universais que assombra o homem de qualquer cultura, época ou crença, a morte, recebe esse tratamento poético. No seu último poema - “Meu enterro” -  escrito em abril de 1963, em Moscou, o poeta tem a coragem de brincar com sua própria morte:e:

Meu enterro sairá de nosso pátio? / Como vai descer do terceiro andar?

O caixão não cabe no elevador / E as escadas são demasiado estreitas.

Quando o caixão finalmente entra no carro funerário, que o transporta, o poeta se despede: 

A janela de nossa cozinha me seguirá com a mirada

Nosso balcão me acompanhará com a roupa no varal.

Não podeis imaginar como fui feliz neste pátio.

Vizinhos meus, a todos desejo uma longa vida.

Já no conto “A Nuvenzinha Apaixonada”, as flores que morriam por falta de água são salvas porque a Nuvem faz chover sobre o jardim. A menininha jardineira fica alegre pelas flores, mas triste com o desaparecimento da Nuvem. O coelho, seu amigo, a consola, de uma forma quase messiânica:

- Quem ama, não morre. Quem morre para que os outros vivam, nunca desaparece. Renasce cada vez que é lembrado. Fica vivo na memória. 

O júbilo com que celebra a vida se transforma em reverência à morte, quando tem esse sentido amoroso.

P.S. Compartilho com alguns raros leitores a trajetória de alguém que amou a vida. Agradeço ao titiriteiro Euclides Coelho de Souza o livro do Ivan Ivanovitch que há muito tempo me presenteou. Agora, décadas depois, seu filho André me brinda com a versão em francês da Nuvenzinha Apaixonada. ricamente ilustrado.  A Editora da UnB programou a publicação de poemas traduzidos por Marco Syrayama Pinto e John Milton, mas não me foi possível verificar se a edição existe.

Nazim Hikmet: Le Nuage Amoureux. Paris, Gallimard. 2013. Nazim Hikmet: Existió realmente Ivan Ivanovitch? Buenos Aires. Ariadna. 1957

Numa versão livre do francês, deixo abaixo “Viver”, do livro Cartas a Taranta Babu (1935) - longo poema narrativo sobre a invasão da Etiópia pelas tropas de Mussolini, no qual um jovem etíope escreve à sua mulher.

VIVER

Diga lá, Taranta Babu.

Diga lá! Como é bom viver!!!

Meu Deus do céu, como é bom viver!!!

 

Pensa, Taranta-Babu:

O coração

A cabeça

e o braço do homem,

perfuraram as entranhas da terra,

criaram deuses de aço com bocas de fogo,

que podem aniquilar o planeta

com um simples piscar de olhos.

A árvore que dá granadas uma vez por ano

Pode dar mil vezes mais.

 

O nosso mundo é tão grande, tão belo,

tão vasto e tão espaçoso, que

todos nós podemos cada noite,

deitar-nos à beira-mar

sobre as areias douradas

de um litoral ao outro, 

para cantar as águas estreladas.

 

Como é bom viver, Taranta-Babu.

Como é bom viver,

lendo o mundo como se fosse um livro,

sentindo-o como um canto de amor,

maravilhando-se como uma criança.

 

Viver!

Viver o dia à dia

E entrelaçar os dias todos

Como se fia um tecido de seda.

Viver como se canta em harmonia

Uma canção de alegria.

 

Viver...

E no entanto, que negócio estranho, Taranta-Babu

Que história mais esquisita

De ver que essa coisa tão bela

Que essa coisa tão alegre

Se tornou hoje terrivelmente nojenta.

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19 Comentário(s)

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Olinda Evangelista comentou:
13/12/2020
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JOAO BOSCO FARIAS BEZERRA comentou:
25/12/2017
PO BABA MUITO BOA ESSA NAO CONHECIA O POETA B ESSE CARA ERA O CARA
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Ana Inez Coelho (vi FB) comentou:
25/12/2017
Que belo texto José Bessa! Me fez recordar uma emocionante produção de meus pais!
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José Bessa (Taquiprati) comentou:
25/12/2017
Oi Ana, obrigado por escrever, foi mesmo o Euclides e a Adair que me apresentaram pela primeira a Nuvenzinha apaixonada.
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Sonia Rocha comentou:
10/11/2017
Maravilhoso texto. Que maravilha conseguir expressar tanto com tão poucas palavras e tão suaves. Parabéns e Obrigada!
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Raimundo Nonato de Araujo Souza comentou:
06/11/2017
Genial, Babá, este teu texto. Bravo!!!
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Nefer Hass (VIA fb) comentou:
06/11/2017
Que lindo, emocionante e esperançoso texto! Mas tenho receio de uma luz no fim do tunel ser somente o trem... enquanto isso, vamos vivendo.
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Nelson Peixoto comentou:
06/11/2017
Incrivelmente lindo e esperançoso! E ao te ler, José Bessa como se ressoasse o Evangelho das Bem Aventuranças, mas numa tradução mais autêntica da felicidade que não é o conformismo irônico, mas que todos os humilhados, pobres, sedentos de justiça, feitores da paz e perseguidos continuem em marcha na esperança sem negar que a vida é bela e chamada a plenitude da paixão e seu reverso na memória ressuscitada!
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Gisela Sorini (via FB) comentou:
05/11/2017
Fiquei interessada na obra do poeta. Agradeço as dicas da Betty Mindlin, que vão me ajudar a buscar mais informações.
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Elisa comentou:
05/11/2017
Oi mano. Linda crônica!!!! Estava precisando ler algo nesse nível! Obrigada!Beijos
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Betty Mindlin comentou:
05/11/2017
Querido Bessa, que bom você escrever sobre Nazim Hikmet! Há uns quarenta anos que o leio e admiro. Eu não conhecia esse livro infantil. Li um livro dele que deve se chamar Quarenta dias, história de um fugitivo político que se esconde em uma caverna, mas como foi mordido por um cão hidrófobo, sabe que se sair para as injeções será morto, caso contrário tem quarenta dias de vida, o tempo da doença se manifestar. Tenho um LP de uma cantora argentina, Dinah Rot, que também canta cantigas sefaradis, lendo poemas dele e musicando alguns. Ela deve ter fugido da Argentina durante a ditadura, pois comprei um CD de recriações sefaradis dela feito em Paris, belíssimo. Viva você, viva essa chama que sobrevive! Beijo, saudade da Betty
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Amarildo Freitas (via FB) comentou:
05/11/2017
Rapaz, eu nunca tinha ouvido falar desse cara. Ele devia ser ensinado nas nossas escolas.
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Malu Alves Ferreira (via FB) comentou:
05/11/2017
Bessa , nem sei como te agradecer e por isso envio só esse “muito obrigada”, sencillo como as coisas simples por vc ter me apresentado esse poeta turco, Nazim e por tua belíssima crônica .
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Roberto Ervino Zwetsch comentou:
05/11/2017
Bessa, amigo maior, que beleza de crônica. Que lindo e oportuno conhecer algo desse poeta/profeta Nazim Hikmet! Ele agora faz parte de nossa memória viva. Sem dúvida alguma, necessitamos que sua poesia seja traduzida para que possamos lê-la nos quartos, nas salas de aula, nos aeroportos, nas estações rodoviárias, nas praças, nos intervalos das passeatas, nos comícios das grandes manifestações. Mas por puro amor ao país, também enviá-la - clandestinamente - às academias de polícia, aos quarteis da PM, do Exército, da marinha, da Aeronáutica e mesmo aos morros do rio, lugar de tanta poesia e samba. Quem sabe a poesia encontre verdadeiros brasileiros/as e esses/as se juntem a nós para refazer e reinventar este país. Ah, como faz falta nesta hora a poesia de Hikmet, de Drummond, de Neruda, da Cecília, de Clarice, a teologia do cotidiano de Rubem Alves, o humor de MIllôr, a utopia de um país sem fome de Betinho, a força pacífica dos rabisco do Henfil e o sonho da defesa da Amazônia de Chico Mendes, do pacifismo das minorias abraâmicas de Dom Helder, e dos nossos amigos queridos da causa indígena e negra (menciono só por justiça nosso querido Vicente Cañas!). Abraço. Roberto E. Zwetsch - Faculdades EST - S. Leopoldo, RS.
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Paulo Figueiredo comentou:
05/11/2017
Como sempre, um texto primoroso e belo. Ave poeta Nazim Hikmet, nas pradarias da imortalidade.
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José Seráfico comentou:
04/11/2017
Meu caro Babá, bombas, ordens unidas, ladroagem sob mil formas, - nada disso desmente a beleza da vida, como a cantou Gonzaguinha. E como o proclamou Nazim Hickmet. Por isso, ler os poemas dele passam a ser meu mais próximo objetivo. Sempre lembrando nosso Thiago, um cantante, mesmo quando faz escuro. Fraternalmente, meu abraço.
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Marilza De Melo Foucher (via FB) comentou:
04/11/2017
Ontem quando fiz um skype com meu mano camarada Babá, eu tive o imenso prazer en avant première do conteudo da cronica do Taqui Pra ti. Descobri com o Bessa o grande poeta Nazim Hikmer. Na segunda feira irei comprar seu livro para ler para minha neta. Fiquei tão emocionada e empolgada com a narração de Bessa que passei a noite sonhando com uma nuvem que virava minha amiga e me levava para bem longe...A nuvem me deixava no local maravilhoso, era uma tribo indigena chamada tupanos. Havia uma bela floresta, muitas árvores cheias de orquídeas...foi um sonho demorado...Eu e me acordei quando um curumim me joga na cabeça uma bela orquídea amarelo e vermelha. O sonho acabou e eu queria continuar sonhando. Depois não consegui mais dormir pensando no pesadelo que virou o Brasil. Por sorte temos o Bessa para levantar a moral com esta crônica que começa e termina com poesia. Meu mano camarada hoje fui pesquisar sobre os poemas de Nazim e encontrei este que te peço que leia para Aninha. Le Globe Offrons le globe aux enfants, au moins pour une journée. Donnons-le leur afin qu'ils en jouent comme d'un ballon multicolore Pour qu'ils jouent en chantant parmi les étoiles. Offrons le globe aux enfants, Donnons-le leur comme une énorme pomme Comme une boule de pain toute chaude, Qu'une journée au moins ils puissent manger à leur faim. Offrons le globe aux enfants, Qu'une journée au moins le globe apprenne la camaraderie, Les enfants prendront de nos mains le globe, Ils y planteront des arbres immortels.
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Carmen Junqueira comentou:
04/11/2017
Lindíssimas as palavras desse homem apaixonado pela vida. Acima de tudo, apesar de tudo é preciso se encantar com a vida. Adorei!
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Ana Silva comentou:
04/11/2017
Bravo!!! Maravilha de texto!! Esses corruptos podem tentar nos tirar a alegria da vida, mas não vamos deixar. Viver, com a felicidade de poder ouvir a voz de quem amamos e encher o coração de alegria. Obrigada por me apresentar o poeta.
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