CRÔNICAS

Qual universidade se salvará das bombas?

Em: 12 de Novembro de 2016 Visualizações: 14049
Qual universidade se salvará das bombas?

"I'd like to tell my story, before I turn into gold."

(Leonard Cohen - A bunch of lonesome heroes)

Cerca de 190 universidades brasileiras foram ocupadas em protesto contra a Proposta de Emenda Constitucional (PEC 55) que congela os gastos públicos por vinte anos. A Universidade Federal do Pará (UFPA), tomada pelos alunos desde o dia 7, abriu excepcionalmente suas portas para um megaevento - o 5º  Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA) realizado em Belém de 09 a 11 de novembro.

O 5º CIELLA contou com mais de 1.100 pesquisadores do Brasil e do exterior e acolheu quase 800 trabalhos, centrando seu foco no tema "Universidades, Amazonidades, Alteridades". Apresento aqui síntese da minha fala na mesa de abertura compartilhada com o linguista Masayoshi Shibatani, professor da Rice University de Houston, Texas.

O planeta bombardeado

Comecei citando o reitor da Universidade de Würzburg, na Alemanha, Theodor Berchen, que abriu o IX Congresso Internacional de Universidades, na Finlândia, em 1990, afirmando que a universidade vive uma tensão permanente entre, de um lado, o compromisso com as culturas nas quais estão imersas - que são particulares e, de outro, com a ciência - que aspira a universalidade. Segundo ele, o conhecimento universal só pode ser construído se houver diálogo de saberes.

Para destacar a importância da universidade, o autor imagina que se bombas destruírem o planeta, mas sobrar uma universidade, "a partir dela podemos reconstruir o mundo", porque no cérebro de seus membros e nos livros de suas bibliotecas estão grande parte do saber que dispõe a humanidade.

Confesso que sinto calafrios ao me perguntar: - E se a instituição poupada for uma universidade amazônica? Os nossos cursos, currículos, bibliotecas, laboratórios e pesquisas nos permitiriam reconstruir a Amazônia com suas experiências milenares? Em que medida as nossas universidades reconhecem o saber tradicional e promovem a interlocução com o acadêmico? Qual o lugar que reservam para as línguas e para os conhecimentos que nelas circulam?  

Dentro da Amazônia funcionam hoje diversas universidades públicas e algumas privadas, mas até que ponto a Amazônia está dentro delas?  Podemos avaliar essa questão a partir de um olhar histórico sobre a primeira de todas - a Universidade Livre de Manáos - criada no apogeu da economia da borracha, em janeiro de 1909.  

Essa universidade nasceu por inspiração do tenente-coronel da Guarda Nacional, Joaquim Eulálio Chaves, que transformou a recém-criada Escola Militar Prática do Amazonas em Escola Universitária Livre de Manáos, logo renomeada como Universidade de Manáos, com a abertura de novos cursos de Odontologia, Farmácia, Obstetrícia, Ciências Jurídicas e Sociais, Letras, Agronomia e Agrimensura, que começaram a funcionar em março de 1910. Em 1914, numa Manaus com 50 mil habitantes, já faziam parte dela 605 alunos de 12 estados do Brasil e 254 professores.

Universidades na Amazônia

Desta forma, o Amazonas reivindica ter sido o primeiro estado do Brasil com universidade, seguido do Paraná (1912) e Rio de Janeiro (1920). Este título de mais antiga do Brasil foi incorporado pela atual Universidade Federal do Amazonas (UFAM) - uma espécie de Universidade de Bolonha dos Trópicos, com ou sem ironia, de acordo com o gosto do leitor.  E isto porque quando foi criada, em 1962, com o nome de Universidade do Amazonas, incorporou o Curso de Direito, o único que sobreviveu.Considerando que entre a morte de uma e a fundação da outra escoaram quase 40 anos, as más línguas juram que a universidade é uma espécie de viúva Porcina: foi, sem nunca ter sido.

A Universidade de Manáos não chegou à maioridade. Com a crise da produção da borracha agonizou até morrer, em 1926, aos 17 anos. Mas se a UFAM se intitula  a herdeira da primeira universidade, resta saber qual o conteúdo dessa herança, qual o modelo de universidade que herdou, quais os conhecimentos que a instituição fez circular na área de Química e de Botânica, por exemplo, tão vitais para a economia da borracha.

No ano de fundação da Universidade de Manáos, o químico Fritz Hofmann criava a borracha sintética na Alemanha. Anos antes, 70 mil sementes da seringueira contrabandeadas passaram a ser cultivadas no Sudeste Asiático. Até então, o monopólio da produção se concentrava na Amazônia, que atendia quase 100% da demanda global. Dez anos depois, as plantações na Ásia já respondiam por 95% da demanda. A Universidade de Manáos não teve fôlego para enfrentar essa questão. Uma universidade amazônica que vivia da borracha e que não sabia plantar uma seringueira.

É interessante refletir sobre o tratamento dado pela instituição aos saberes populares que circulam nas narrativas orais, nos cantos e na poesia, assim como o lugar que atribui às línguas amazônicas e às taxonomias nelas produzidas, recolhidas por viajantes e naturalistas que percorreram a região no século XIX, entre outros os que foram enquadrados no grupo denominado de tupinólogos.

A Amazônia na universidade

Os tupinólogos do séc. XIX, entre eles Couto de Magalhães, Stradelli e o botânico Barbosa Rodrigues, já haviam articulado o conhecimento científico da época com os saberes tradicionais, estabelecendo um diálogo entre eles e colocando o saber moderno dentro das culturas amazônicas. O que aconteceu com essa produção e qual o tratamento dado a ela pela Universidade? Qual o lugar da Amazônia dentro dessa e de outras universidades posteriormente aqui criadas?

Os Archivos da Universidade de Manaós não registram sequer rastros dessa literatura sobre a Amazônia. Ensinava-se português, francês, inglês, italiano, alemão, latim e grego. Ficavam de fora do currículo o espanhol, que já era a língua dominante de países amazônicos, assim como o Nheengatu, que até a metade do século XIX era língua falada pela maioria dos amazonenses, a tal ponto que em 1861 o poeta Gonçalves Dias, que avaliou as escolas do Solimões e do Rio Negro, concluiu que não funcionavam porque a língua de instrução - o português - não era compreendida pelos alunos.

A exclusão dessas duas línguas pela Universidade indica uma vontade explícita para desvincular a Amazônia brasileira da Panamazônia e da Amazônia indígena, cujos saberes deviam ser apagados. O modelo a ser copiado era o europeu. mas de forma capenga. A Universidade de Manáos ignorou a gramática de Nheengatu elaborada por Couto de Magalhães três décadas antes de sua fundação e as narrativas por ele coletadas. Ficaram de fora também dos cursos de medicina e de farmácia os saberes acumulados sobre a flora amazônica coletados por Barbosa Rodrigues.

Na justificativa para criar a Faculdade de Medicina, os arquivos registram ataques aos "medicastros que por ahi fervilham em zoogléas", referendando os preconceitos contra os pajés e contra a fitoterapia por eles utilizada.

E hoje, o que existe de Amazônia dentro das nossas universidades? O que existe de Brasil? Esse é um bom tema para ser debatido pelos ocupantes das quase 190 universidades brasileiras.

P.S. Leonard Cohen, cantor e poeta canadense, que embalou a minha geração com música e poesia refinadas, nos deu seu último adeus. Em "You want it darker", ele se despede: "I'm out of the game", anunciando "I´m ready, my Lord".

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11 Comentário(s)

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Francisco Carlos comentou:
13/11/2016
Bela crônica. Porém seria mais belo seria se esse bando de vagabundos ocupando universidades deixassem não só que ocorresse o congresso, mas que não atrapalhasse a vida de quem dar aulas e de quem quer estudar. Pela sua crônica entendi que Sr. quer dizer que a maioria das nossas universidades são uma bosta. Ocupadas por quem não quer estudar orientados por quem não quer dar aulas, elas viram bosta e meia. Lá pelos noventa, minha filha mais velha disse aqui em casa que não queria entrar na Ufam porque os professores faziam muitas greves. Ela queria ir pra Nilton Lins, Uninorte ou outra qualquer onde os professores davam aulas. Eu disse pra tirar o cavalinho da chuva, Se não fosse estudar numa universidade, eu não pagaria a particular. Hoje ela engenheira de computacão e funcionária concursada da Ufam. Tem outra que é bióloga e outra engenheira de producão (sem querer me gabar). Foi só Lula ladrão entrar no governo que as greves cessaram. e por isso elas puderam estudar. Agora, parece que a coisa vai ser pior que nos anos noventa. Alunos ocupantes e professores grevistas têm que saber que a universidade pública não deles, mas de toda a sociedade (diga-se contribuintes). Jubilem-se os ocupantes e cortem os salários dos grevistas.
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Anne Oliveira comentou:
14/11/2016
Não exite uma prova contra o Lula, o que não quer dizer que ele seja branco como neve. Mas o justiceiro do Paraná,em vez de se basear, como faria toda justiça séria e empenhada na verdade, em inquéritos sérios, feitos por uma polícia dotada de um serviço de inteligência competente, prefere declarar como \"verdade\" sua \"convicção\": o que dizem delatores, retidos presos até \"abrirem o bico\" é a verdade. Conforme o acertado, os delatores são depois liberados para uma \"prisão domiciliar\", suas ricas mansões com piscina e tudo. E a mídia fica liberada para publicar que \"Lula é o chefe mor da quadrilha autora do maior escândalo de corrupção da história do Brasil\" (pífio chefe mor que só possui, comprovadamente, um apartamento em São Bernardo do Campo quando tem executivo da Petrobrás que levou, comprovadamente também, 200 millhões. A delação premiada não passa de LEGALIZAÇÃO DA CORRUPÇÃO. O delator tem uma \"mercadoria\" para vender. Ela tem um comprador, ou melhor, uma compradora (a justiça) que o \"paga\" com a \"propina\" acertada entre as partes: o alívio da pena merecida. Infelizmente, isso não funciona para os pobres e negros que lotam as nossas prisões e que devem saber algo também. Não funciona para os 40 milhões de brasileiros que os governos Lula e Dilma (para os quais tenho também muitas e duras críticas).tiraram da miséria e que vão voltar a ela graças à PEC 241.
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Francisco Carlos comentou:
13/11/2016
Caro Zózimo: O que mais faco é questionar criticamente o noticiario da midia. Pena que não tenha tempo nem recursos para ver tudo. E tem também aquela mídia tipo Brasil247, Luis Nassif e outros que não acompanho por falta de estômago. Você diz que não há provas contra o Lula. Mas o que é que aquele faqueiro doado pela rainha da Inglaterra ao Presidente Médici estava fazendo entre as tralhas do Lula. Lula não conhecia o Bumlai, Lula não tem nenhum sítio, nenhum duplex. Ele deve ser apenas usufrutuário que nem o Cunha. Espero que ele tenha mesmo destino do Cunha. Bom! analisando criticamente, como você me sugere, só posso concluir que a crônica do Prof. Bessa está muito boa, como todas as demais. Obrigado por me contestar.
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Zózimo Cintra Arruda comentou:
13/11/2016
Caro Chico, você entendeu mal, eu não acho que o artigo está dizendo que a universidade é uma bosta. Quanto ao Lula NÃO EXISTE qualquer prova contra ele para chamá-lo de ladrão. Questione criticamente o noticiario da mídia, Chico.
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Susana Grillo comentou:
13/11/2016
Bessa, excelente reflexão sobre as bases epistêmicas das universidades amazônicas. As experiências com as Licenciaturas Interculturais e com a formação continuada nos Saberes Indígenas resta pouco divulgada e conhecida. Abraços,
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Aurelio Michiles (via FB) comentou:
13/11/2016
Muito ainda se tem a fazer para separar o joio do trigo naquilo que se refere a nossa historia - A Historia da Amazônia.
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Maria Das Graças De Carvalho Barreto (FB) comentou:
13/11/2016
E lembro de uma publicação muito badalada, que levou a autora a Academia Amazonense de Letras. Ela fazia essa filiação fantasiosa entre a Universidade de Manáos e a Universidade Federal do Amazonas!
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Josemar de Campos Maciel comentou:
13/11/2016
Obrigado, Professor! Um livro em poucas linhas!
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Ivânia Neves comentou:
12/11/2016
Muito obrigada, meu amigo, pela generosidade e sabedoria que deixas \"escorrer pelo chão\".
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Ana Stanislaw comentou:
12/11/2016
Texto oportuno e lindas reflexões. Seminário muito rico!!! Obrigada por compartilhar.
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