CRÔNICAS

Carta fechada ao senador Amazonino

Em: 31 de Março de 1992 Visualizações: 14056
Carta fechada ao senador Amazonino

Excelentíssimo Senhor Senador da República

Amazonino Armando Mendes

Senador,
Li com muita atenção a sua "Carta Aberta ao Povo do Amazonas", publicada na semana passada pelo Diário do Amazonas (24/03/92), denunciando os seus adversários como corruptos. Pensei: "Puxa vida! O destinatário da carta - o povo - só vai poder dar uma resposta coletiva em outubro, nas urnas". Para o senhor não esperar tanto, decidi antecipar individualmente a resposta, já que estou incluído entre os destinatários, como parte integrante do povo que sou.

Embora minha carta seja fechada, vou logo abrindo o jogo. O meu objetivo é muito simples: quero colaborar, sem ironia, oferecendo-lhe voluntariamente uma assessoria técnica. Sei que o senhor deve estar desconfiado, mas lhe asseguro que o gesto é sincero, ainda que interesseiro, eu confesso.

Me explico: queiramos ou não, o senhor representa a mim e ao meu Estado no Senado Federal. E aqui prá nós - que ninguém nos ouça - eu morro de vergonha quando o senhor abre a boca. Os meus colegas na universidade me gozam e sacaneiam. Fico humilhado. Então, tenho interesse pessoal em oferecer-lhe algumas sugestões e críticas que, talvez, possam melhorar sua atuação, deixando-me menos envergonhado.

Como jornalista e professor universitário, o dever de ofício me levou a estudar uma disciplina denominada Análise do Discurso. Esta ciência, desenvolvida na França, criou técnicas apropriadas para interpretar qualquer produção da linguagem, descobrir o sentido oculto naquilo que as pessoas falam ou escrevem e avaliar a eficácia de uma mensagem determinada. Pode ser um sermão, um panfleto, uma exposição, um programa, uma carta aberta, até mesmo um bate-papo no bar do Armando - tudo isso é discurso.

Ainda que mal lhe pergunte, senador, o senhor já pensou se a sua Carta Aberta teve alguma eficácia? Se alguém acreditou naquilo que o senhor escreveu? Minha contribuição é, justamente, tentar refletir sobre esta questão. Afinal, o senhor mandou imprimir dois milhões de cópias, lançando-as de um avião sobre a cidade de Manaus, como as bombas na segunda guerra mundial.

Venha. Olhe. Leia comigo aqui o artigo do Pierre Bourdieu, intitulado Le Langage autorisé. Notes sur les conditions sociales de l'efficacité du discours rituel. O quê? O senhor não entendeu? Não importa, eu traduzo e ainda simplifico.

O Bourdieu (pronuncia-se Burdiê, senador!) afirma que um discurso - como a sua Carta Aberta por exemplo - só é "autorizado" e consequentemente eficaz se for reconhecido como tal. E para que haja este reconhecimento são necessárias três condições: 1) a legitimidade de quem fala; 2) a legitimidade da situação e 3) a legitimidade da forma. Se faltar uma dessas condições, o discurso não é legítimo. Vamos analisar se o seu discurso se enquadra nesses critérios.

Ora, quem fala!

Em primeiro lugar, "o discurso deve ser pronunciado por pessoa legitimada para fazê-lo". Isto significa que quem fala ou escreve deve ter autoridade para tanto. A Preta, minha irmã, é professora na Escola de 1º grau Nossa Senhora Aparecida. Tudo aquilo que ela fala na sala de aula, quando ensina matemática, é antecipadamente legitimado, porque ela é possuidora de um saber, tem um diploma e ocupa um lugar na instituição. As crianças acreditam nela e os pais referendam.

Se o senhor pegar uma malária, senador, o senhor vai procurar o seu cupincha Ronaldo Tiradentes, o monoglota? Claro que não. O senhor vai correndinho consultar o doutor Marcus Barros, apesar das posições políticas antagônicas, porque ele é médico (e dos bons), tem autorização para exercer a profissão e autoridade para dar diagnósticos. Como diz o Foucault (pronuncia-se Fucô, senador, por incrível que pareça!) a fala médica não pode vir de qualquer um. Seu valor, sua eficácia, seus próprios poderes terapêuticos e, de forma geral, sua existência como fala médica não são dissociáveis do personagem legalmente definido que tem o direito de articulá-la. Me fiz entender?

Pois bem, a pergunta que se impõe é esta: o senhor tem autoridade para fazer denúncias sobre corrupção, como o fez em sua Carta Aberta, salpicando lama para todos os lados? Alguém, menos avisado, pode achar que sim, alegando que o senador é escolado na matéria, da mesma forma que a Preta manja de pedagogia e o Marcus Barros de doenças tropicais. Mas eu afirmo que não.

Longe de mim, senador, querer desconhecer as suas habilidades e competências no assunto em pauta. Mas o tipo de conhecimento é outro. O Marcus Barros tem autoridade porque estudou e pesquisou a malária, e não porque tenha contraído essa doença. Um diabético, pelo simples fato de ser diabético, não tem autoridade médica para formular um discurso e diagnosticar esta enfermidade nos outros. Da mesma forma que o fato de ser corrupto não confere a ninguém autoridade para falar da corrupção alheia. O senador Suplicy nunca roubou nem talheres de avião e, no entanto, é um especialista no assunto. Existe diferença entre corrupto e corruptólogo. Portanto, senador Amazonino, fica demonstrada a ausência de legitimidade do seu discurso, o que é suficiente para desqualificá-lo. No entanto, vamos examinar os outros dois critérios.

Quem ouve?

A segunda condição exige: "o discurso deve ser produzido em uma situação legítima, ou seja, diante de destinatários legítimos". Os poemas de Luís Bacellar são belos e são legítimos, nem por isso poderão ser recitados numa reunião do Conselhão da Suframa, porque o local e os destinatários não são adequados. Se assim for feito, o Alfredo Nascimento e os demais conselheiros irão confundir frauta de barro com fraudes de carro, comprometendo a sua legitimidade.

A situação da fala é importante para legitimá-la. O Silvio Santos pode dizer no seu programa de TV para um casal: "eu vos declaro marido e mulher", que o seu discurso não tem qualquer efeito legal. A mesma frase, pronunciada por um juiz em um tribunal ou por um padre numa igreja, deixa duas pessoas amarradas pelo resto de suas vidas.

Nesse item, senador, o senhor também perde a legitimidade. Se o senhor tem evidências de que seus adversários são corruptos, como afirma em sua carta, o destinatário adequado é a Polícia e o Poder Judiciário. O forum adequado é o tribunal. O senhor tem a obrigação de levar o dossiê ao ministro da Justiça, em vez de endereçar o seu discurso a essa entidade abstrata que o senhor chama de "povo". O "povo", senador, infelizmente não tem o poder de colocar os corruptos na cadeia. Sua carta Aberta não foi endereçada aos legítimos destinatários. Portanto, a situação do seu discurso não é legítima. Sobra apenas a terceira condição.

A forma, Deus meu!

A terceira condição requer: "um discurso deve ser enunciado sob formas legítimas". Ora, o senhor não está conversando com suas negas num bar. Está escrevendo de um lugar formal. Sua Carta Aberta, senador, está repleta de irregularidades gramaticais e de erros elementares de concordância, constituindo-se num atentado à norma padrão da língua portuguesa denominada impropriamente de "norma culta". Tudo bem, o texto é autêntico, porque de saída, percebe-se que foi o senhor mesmo que o escreveu e não um assessor, considerando a "corrupção da linguagem".  Mas autenticidade aqui não significa legitimidade. Ela não é legítima, porque o discurso aparece truncado, não existe um encadeamento lógico e as suas - digamos assim - conclusões, não se derivam das premissas. Um desastre!

Poderia desmontar frase por frase do seu discurso, mas não tenho espaço nem saco para tanto. Citarei apenas alguns exemplos. O senhor esqueceu que o seu interlocutor era o povo e no meio da sua carta, sem avisar, dirige-se ao dono do jornal A Crítica, escrevendo: "Essa molecagem sua vai ser repetida, pois sei que não tens outro remédio". Pelo amor de Deus, senador!. Seria o mesmo que eu lhe dissesse: "Taqui pra tu" em vez de "Taqui pra ti". Isso não lhe fere os ouvidos, hein? Os meus estouraram. Gramaticalmente chamamos a isso de incoerência. Vamos e venhamos. O senhor é um senador da República e devia zelar pela língua portuguesa!

"Sinto-me bem, porque sei da missão histórica que me acomete..." escreveu o senhor. Pois eu, no seu lugar, me sentiria muito mal. Acometer é atacar, assaltar, insultar, chocar-se violentamente. É usado também no sentido de manifestar-se de repente. A gente é acometido por uma doença, mas não por uma missão histórica. A não ser que para o senhor não haja diferença entre uma e outra ou que o senhor esteja assaltando a história.

O senhor compromete a compreensão do texto, quando não encadeia um só raciocínio lógico. Sua carta avisa ao dono deste jornal: "O dinheiro, para si, estaria acima da verdade ou de quaisquer outros valores morais. Em síntese, és um trânsfuga". Socorro, mãezinha! O que é que tem a ver a conclusão com as premissas que lhe antecedem? Nada. Absolutamente nada. Ou o senador não está girando bem da bola, ou não sabe o que significa trânsfuga, ou as duas coisas juntas.

O final da carta chega a ser hilariante. Relacionar suspensório e gravata com corrupção, como o senhor fez, eqüivale exatamente a elaborar o seguinte raciocínio: "O Ronaldo Tiradentes é radialista sem diploma, por isso sua mulher atropelou e matou o Max Mone". O que tem a ver o cós com a calça?

A confusão do institucional com o pessoal é gritante, embaralhando o raciocínio: "Não preciso provar. Todo mundo sabe disso..." Ou então, dirigindo-se ao dono do jornal A Crítica: "Jamais te dei confiança de usar sequer a lei de imprensa. O quê que é isso, senador! Como se o uso da lei de imprensa fosse uma questão de confiança pessoal e não do exercício da cidadania. Na realidade, senador, o senhor não pode usar a lei de imprensa porque simplesmente não sabe escrever.

Olhe senador, não fique zangado comigo não, mas a confusão mental é tão grande que compromete a compreensão do seu discurso. Senador, o povo, destinatário de sua carta, se a leu, não a entendeu. Isso eu posso lhe assegurar. Sei que o Ronaldo Tiradentes e o Omar Aziz vão puxasacalmente lhe dizer que ela está "porreta", mas não vá na deles não, que eles não entendem chongas de análise do discurso. Vá por mim.

O senhor confunde ainda a esfera do público com a do privado, quando escreve sobre "os meus votos", "o meu Amazonas", o que pode ser perigoso se generalizado para "os meus cofres públicos". Mais adiante o senhor escreve, referindo-se a Umberto Calderaro: "Enfrentas um homem". Isso já é babaquice elevada ao quadrado.

O último elo na cadeia do discurso é o interlocutor. O senhor termina sua carta apelando: "Recomendo, pois, ao povo, que não gaste o seu dinheiro sofrido comprando o teu pasquim". A eficácia do seu discurso, senador, pode ser medida pelo número de pessoas que atenderam ao seu apelo. Quantas pessoas deixaram de comprar o jornal A Crítica? Nenhuma. Nem o senhor, que neste momento está lendo minha carta.

Senador, dizem os entendidos que o que interessa em uma carta como a sua não é o que o senhor diz a respeito de si mesmo ou dos outros, mas aquilo que o senhor emite e revela pelo modo de se expressar. A maneira de dizer está enraizada na maneira de ser. E através de sua carta ficamos sabemos muito mais sobre o seu autor: o seu conceito de lei de imprensa, de cidadania, de jogo político, de tratamento da coisa pública, da sua relação com os eleitores.

O senhor foi reprovados nos três itens do Bordieu. A sua carta, com 1.015 palavras e dois milhões de cópias, não tem nenhuma legitimidade. Assaltante da história, o seu discurso tem a mesma credibilidade que têm as palavras do Cândido Alegria, o personagem da novela "Pedra sobre Pedra, quando lamenta hipocritamente a morte de seu compadre Benvindo.

Se quiser responder, escreva para José R. Bessa Freire, Caixa Postal nº 105094. Cep 24.231. Atenciosamente. Amos. Atos. Obros
 

 

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6 Comentário(s)

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claudio comentou:
08/11/2011
Ola caro Ribamar sou leitor assiduo do seu site, preciso de uma força sua, participo aqui por manaus de diversos foruns e discursões em manaus, brigo muito com os Caça Cargos e admiradores de Amazonino Big Black, gostari de saber se vc tem uma lista enumerando os ilicitos de amazonino, para que eu possa discutir e dialogar com bases e aguçando a curta memória do povo, desde ja agradeço sua atenção e aguardo resposta.
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Daniel Victor comentou:
08/11/2011
Parabéns senhor Taqui pra ti pela coragem, sinceridade e competência. Um grande abraço, Daniel Victor.
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yoacgmkvzrv comentou:
08/12/2010
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seljypzzc comentou:
05/12/2010
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João comentou:
04/03/2010
Professor Rimabar, o Sr. é um grande escritor e conhecedor do Amazonas. És digno de ser um Amazônida de verdade.
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Daniel Moura Jaques comentou:
04/03/2010
Professor Ribamar, estava lendo sua crônica Carta Fechada ao Senador Amazonino de 31/03/1992, e percebi que o senhor,talentosamente, de uma aula de discurso ao então senador Amazonino Mendes (vixe,vixe) já naquele tempo. Adorei ler essa crônica de muitos anos passados, pois sou leitor de suas crônicas do seu blog e no jornal Diário do Amazonas. Tenho orgulho de saber que o senhor é amazonsense como eu. Parabéns pela sua dignidade. Abraços!
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