CRÔNICAS

O baú da tia Eulália: a tia que ficou pra titia

Em: 12 de Março de 2002 Visualizações: 11263
O baú da tia Eulália: a tia que ficou pra titia

 

Depois da morte da titia, a Preta foi arrumar o quarto da finada e lá encontrou o misterioso baú amarelo, de metal, trancado com um cadeado. ao lado de um vaso de flores de plástico.  A chave, ninguém sabia aonde estava. Normalmente, ficava sempre pendurada num cordão de ouro em volta do pescoço da titia, ao lado da medalha de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Ela não tirava nem para tomar banho. A Teca, que havia ajudado o pessoal da Funerária Almir Neves a vestir a defunta, jurava que a chave fora enterrada com ela. "Eu vi" - ela disse, contando que na hora de fechar o caixão, o mondrongo que a titia tinha nas costas - uma corcunda acentuada - não deixava a tampa baixar completamente e aí os agentes deram um soco seco no peito dela, os ossos estalaram - crec! crec! - e se acomodaram e foi então que a Teca viu a chave balançando, como num último aceno antes de sua viagem para a eternidade.

Com esta notícia, o jeito foi arrombar o baú para descobrir o inventário e o testamento. De dentro dele, cheirando à naftalina, emergiu uma pasta grossa de plástico azul, contendo envelopes grandes, cada um deles com uma palavra escrita sobre uma etiqueta branca: SAÚDE, RELIGIÃO, FAMÍLIA, TRABALHO, DIVERSOS. Dentro de cada um, um monte de papéis, arrumados em ordem cronológica. A titia era organizada e havia classificado e arquivado a documentação de acordo com sua natureza e procedência. 

No primeiro envelope - o mais volumoso - havia muitas receitas médicas; várias bulas de Heparema; alguns eletrocardiogramas; radiografias dentárias e do pulmão; resultados de exames de sangue, urina e fezes; um recorte antigo do Jornal do Comércio com a propaganda do Elixir de Inhame Goulart - depure seu sangue e fortaleça seu organismo - e sedutoras promessas de aumentar o apetite e deixar o rosto sem espinhas; um exemplar do Almanaque Capivarol, com anúncios impressos do Regulador Xavier - o remédio de confiança da mulher e do Menagol: - Senhora, se a natureza falha, Menagol regula. A titia havia passado sua adolescência tomando 'porres' homéricos desses remédios, alternando ora um, ora outro, às vezes misturando as doses deles, o que acabou por desregulá-la toda. 

O mundo da titia cabia inteirinho dentro de um baú. Nos demais envelopes, outras relíquias de uma vida prosaica. Certificado da primeira comunhão; retratos de São Vicente de Paula e da Beata Maria de Matias; orações; santinhos do Sagrado Coração de Jesus, sangrando; um escapulário; uma fita azul e outra vermelha, do Apostolado da Oração; letras de hinos religiosos, entre os quais o das Filhas de Maria:

- A Fita azuuuuul, será nossa bandeeeeeira, viemos nosso amor te consagrar, somos filhas devotas de Mariiiiia".

Havia, além disso, fotos antigas, uma delas no convento: a titia com hábito de freira e aquele chapelão de três bicos, ao lado da mamãe, do tio Eduardo, da tia Dedé e da prima Consuelo, a única com idade para competir com as tias. Outra foto da vovó Filó, trajando vestido preto de bolinhas brancas, tirada na Praça da Matriz, por algum lambe-lambe, tendo ao fundo um bonde, diante do Pavilhão Universal.

Os demais papéis estavam relacionados à vida - digamos assim - funcional da titia. O certificado de conclusão do curso de datilografia, concedido pela Escola São José e assinado pela diretora Carmela Faraco; o diploma de professora primária conferido pela Escola Normal Preciosissimo Sangue e referendado pelo velho Instituto de Educação do Amazonas (IEA),  uma declaração de que ela freqüentou um curso de auxiliar de enfermagem; um caderno fino com os nomes de alunas do curso de corte e costura; o cartão do IPASEA; contra-cheques do pagamento da aposentadoria de professora; extratos de uma pequena poupança na Caixa Econômica de 150 cruzeiros e outras pequenas bobagens, além de uma nota de hum cruzeiro com o Marquês de Tamandaré. Nenhum título de propriedade. Do ponto de vista também do capitalismo, a titia morrera virgem. 

O envelope "Diversos" continha uma rara coleção de papel de bombom "Sonho de Valsa", celofane transparente, de cor vermelha e que era rara porque se tratava de bombom fabricado no Paraguai. Lá dentro havia ainda alguns recortes de jornais com convites para missa de sétimo dia e - inexplicavelmente - uma pedaço de cartolina com o desenho de uma piroca avantajada, a cabeça pintada de vermelho, gotejando, tendo embaixo a frase "Maria Eulália, pega na minha genitália", seguida de duas iniciais N.C. Confesso que fiquei intrigado: Quem é N.C.? Por que a titia guardou essa cartolina? E por que logo no item "Diversos" e não em "Saúde", onde talvez fosse mais lógico e mais apropriado? 

Mas o que sobressaiu mesmo, no meio de toda essa papelada, foi um envelope com o selo do Vaticano. A Preta abriu, deu uma olhadela e, enigmática, me passou: "Toma". Eram três folhas de papel ofício, uma datilografada com um texto em latim e duas manuscritas. Nessas duas, que antecediam cronologicamente à primeira, havia uma letra redonda, bem desenhada, que não deixava lugar a dúvidas sobre sua autoria. A titia aprendera a escrever, fazendo exercícios nos antigos cadernos de caligrafia, em cujas páginas copiara milhares de vezes frases como "Xerxes e Zulmira leem juntos". Qualquer grafólogo de beira de igarapé observaria, sem necessidade de maiores exames, que o "x" daquele papel era o mesmo "x" de Xerxes. Conferi. Era mesmo um requerimento da titia dirigido - imaginem só! - ao Papa. Comecei, então, a lê-lo em voz alta. 

À Sua Santidade, 

Papa Paulo VI

Santidade, 

Eulália Maria Queiroz Bessa, nome este adquirido na pia batismal, 58 anos, nascida no dia 18 de julho de 1919, residente e domiciliada no Convento da Casa da Criança, Rua Ramos Ferreira, nº 1343, na cidade de Manaus, Amazonas, Brasil, prostrada de joelhos ante Vossa Santidade, vem mui humildemente expor e requerer o que segue: 

1. Há mais de 42 anos, em cerimônia na igreja matriz de Nossa Senhora da Conceição, a requerente ouviu o bispo D. João da Mata chamar em alta voz: "Maria Eulália, em religião Irmã Ancila da Bendita Purificação". Vestida de noiva, de véu e grinalda, a requerente - noiva de Cristo - atendendo o chamado, subiu o altar com os olhos marejados de lágrimas e recebeu, das mãos do bispo, o hábito da Congregação das Irmãs de Caridade, oficialmente conhecida como Sociedade das Filhas de Caridade de São Vicente de Paula. Retirou-se por alguns minutos para o claustro para mudar o traje, retornando já vestida com o hábito de freira, quando então fez os primeiros votos - temporários - de noviça. 

2. A requerente, com o nome religioso de Irmã Ancila, deu provas de seu amor a Cristo e de respeito á Igreja Católica Apostólica Romana, enfrentando as duras provas do noviciado, sem receber visitas e sem falar com ninguém, sequer com sua própria mãe, durante um ano, rezando e meditando, ad majorem Dei gloriam, num sistema de recolhimento e enclausuramento absoluto. 

3. No final do noviciado, a requerente renovou as suas promessas temporárias por mais cinco anos, professando os votos de Pobreza, Castidade e Obediência. Ao longo desse período, a requerente reafirmou seu noivado com Cristo e seu compromisso com a Ordem das Irmãs de Caridade. 

4. Finalmente, cinco anos depois, a requerente fez o juramento e professou os votos perpétuos, tornando-se definitivamente uma das esposas de Cristo, num compromisso in aeternum, simbolizado pela aliança que traz permanentemente no dedo. 

5. Durante mais de 40 anos, a requerente foi obediente, casta e pobre, cumprindo fielmente os votos professados. Exerceu o seu magistério em colégios, asilos, hospitais e creches mantidos pela Ordem das Irmãs de Caridade, em suas três províncias brasileiras. Cuidou dos enfermos. Vestiu os nus. Deu pousada aos peregrinos. Deu de comer a quem tinha fome e de beber a quem tinha sede. Acolheu as criancinhas, seguindo o preceito evangélico, "porque delas é o Reino dos Céus". 

6. Na sua vida como Irmã de Caridade, a requerente, sem uma queixa ou gemido, suportou sacrifícios e, às vezes, até mesmo humilhações, porque a madre superiora, nos últimos anos, a perseguia impiedosamente. É verdade, Santidade! A requerente não gosta de fofocas, nem de delações, mas é preciso que o céu ouça esse clamor: a Madre Consolata dos Anjos foi muito espora e dificilmente irá para o céu, quando morrer. Anote esse nome, Santidade: Madre Consolata dos Anjos, mais conhecida no convento como "A Diaba Roxa".

7. Antes de entrar para a vida monástica, a requerente prestou concurso para professora, sendo aprovada. Durante anos e anos, a requerente teve direito a um salário pago pelo Estado do Amazonas, mas nunca viu a cor desse dinheiro. Devido ao voto de Pobreza, o salário da requerente era mensalmente incorporado ao patrimônio da Sociedade das Filhas de Caridade de São Vicente de Paula, que nunca lhe repassou um centavo.

8. Nos últimos anos, devido à idade, a requerente, já aposentada, vem sofrendo 36 tipos de doenças, entre os quais bico de papagaio, reumatismo, escoliose, artrite, princípio de gota, lumbago, ciática, pressão alta, diabete, hérnia de disco e taquicardia. Apesar disso, a requerente continua sendo obrigada pela Madre Consolata dos Anjos a realizar trabalhos pesados como limpar a privada do convento, lavar louça, esfregar e encerar o chão, cozinhar, passar ferro e tantos outros, altamente prejudiciais à saúde.

9. Para fazer o controle médico e os exames periódicos de saúde, a requerente tem sido obrigada a ir de ônibus, porque a Madre Consolata dos Anjos não lhe dá dinheiro para usar outra forma de transporte. Vossa Santidade não faz idéia do que é andar de ônibus em Manaus. Equivale a entrar no inferno. Enquanto isso, a madre superiora só se desloca de táxi, ela que nada aportou para as finanças do convento.

10. Vendo o Calvário enfrentado pela requerente, sem um Simão Cirineu para ajuda-la a carregar sua cruz, um sobrinho jornalista considerou que a requerente poderia viver muito bem fora do convento, por conta própria, com sua aposentadoria e sugeriu-lhe que solicitasse de Vossa Santidade dispensa dos votos perpétuos para dedicar-se à Igreja apenas como leiga, o que agora é feito através do presente requerimento.

Diante do exposto, a signatária requer conceda Vossa Santidade a dispensa dos votos, para que ela possa retomar o seu nome leigo de Maria Eulália, e desta forma reconstruir sua vida fora da Ordem Religiosa, mas dentro dos preceitos da Santa Madre Igreja.Nestes termos
P. Deferimento

Manaus, 23 de março de 1977

Irmã Ancila da Bendita Purificação

A resposta ao requerimento só veio um ano e meio depois, escrita em latim, e era justamente a folha datilografada encontrada pela Preta dentro do envelope retirado do baú. Ocorre que o processo da Irmã Ancila da Bendita Purificação tramitou pelas várias secretarias do Vaticano e quando estava na mesa do Papa Paulo VI, ele morreu, antes de tomar uma decisão. Foi, portanto, o seu sucessor, João Paulo I, eleito em agosto de 1978, quem respondeu à titia. Trata-se de um documento raro, um dos poucos com a firma e o carimbo do Papa João Paulo I, nos seus 33 dias de pontificado. Ele assinou um dia antes de morrer. O documento tornou-se mais raro ainda, porque é o único no mundo onde a firma do papa foi reconhecida em Manaus. A titia levou a carta ao Cartório Almeida, na avenida Eduardo Ribeiro, e o tabelião não hesitou em colocar a mãozinha vermelha apontando para a assinatura do Papa: "Reco. O referido é verdade e dou fé".

Eis a íntegra do texto papal, que usa metáforas e se expressa sempre por meio de parábolas. Para a compreensão do leitor, hoje, fizemos uma tradução livre, que vai em negrito ao lado da frase original.

 

Vaticano, 27 Kalandae September Anno Christi 1978 (Vaticano, 27/09/78) 

Soror Ancila Purificatio Benedictae (Irmã Ancila da Bendita Purificação) 

Dilecta et pulchra filia mi (Minha bela e querida filha) 

Dominus vobiscum. (O Senhor esteja contigo) 

Ab imo pectore, epistolam tuam legi (Li o seu requerimento, com todo o carinho de meu coração). Si prudenter agas, domna vites - (Se você agir com prudência, evitará prejuízos). Ad praesens ova eras pulla sunt meliora (Não troque o certo pelo duvidoso). Arcus nimis intensus rumpitur (Se esticar muito a corda, ela quebra). Ora et labora, filia mia, quia absque sudore et labore nullum opus perfectum est. (Reza e trabalha, minha filha, porque sem suor e trabalho nenhuma obra é perfeita). Nec plus ultra (Não ultrapasse esse limite.) Sollicitudo tua stultitiae est et piget stultitiae tuae (O teu requerimento é muito leviano e tua insensatez me incomoda). Parendum est legibus (É necessário obedecer as leis). Peccare facile est, mores emendare dificillimum (Pecar é fácil, o dificil é mudar de procedimento). Si tu et frater tuus peccavéritis, iúdices vos castigabunt. (Se tu e teu irmão pecam, sereis castigados). Feminae robustae prudentia, procellae violentiam superat (A sabedoria da mulher forte vence a violência da tempestade).Ipso facto, subito in claustrum intra. (Volta pro convento imediatamente) Roma locuta, finita. (Roma falou, está falado)

Johannes Paulus I, Pontifex Maximus (João Paulo I, Sumo Pontífice)

Qualquer seminarista ou sacristão, conhecendo um pouco o latim de missa, ou qualquer advogado de porta de xadrez acostumado a petições com data vênia, oscamborum a quatrorum e hic culum cotiae sibilare diria a titia que o papa indeferiu seu requerimento. No entanto, como ela não entendia latim, pediu ao professor Agenorum, responsável pela disciplina no Colégio Estadual do Amazonas, que o traduzisse. Não sabemos se por sacanagem ou ignorância, o professor Agenorum escreveu na parte inferior da página: "O papa deferiu a petição".

Aí, aconteceu uma coisa estarrecedora, que fez com que a titia vivesse em pecado, sem saber, durante mais de quinze anos. Com base nessa interpretação, ela deixou definitivamente o convento das freiras no dia seguinte, 28 de setembro de 1978, no exato momento em que o papa falecia. Viveu na casa de uma sobrinha, com sua aposentadoria, rompendo com os votos de pobreza, sem ter sido para isso liberada. Morreu em 1993, em situação de pecado, por não cumprir os votos de obediência, contrariando as ordens do próprio papa. O único voto que cumpriu foi o de castidade, ainda que o desenho na folha de cartolina, com as iniciais N.C. possam revelar detalhes picantes de sua vida privada. Leia os próximos capítulos com revelações sensacionais de outros sobrinhos e sobrinhas.

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