
E isso porque a frase, de um lado, expressa a ideia de liberdade – o pássaro voando de galho em galho. Mas, de outro, sugere também fragilidade e abandono - o passarinho longe do ninho, desenraizado, perdido no mundo. A imagem de passarinhos nas avenidas de grandes cidades cortadas por um trânsito infernal, voando não de galho em galho, mas de fio elétrico em fio elétrico e fazendo seus ninhos nos postes de luz.
Liberdade e abandono: essa continua sendo a imagem daqueles Sateré-Mawé que migraram para Manaus, onde criaram duas aldeias urbanas: uma no Santos Dumont e outra no Tarumã. Nessas aldeias, eles renunciaram a algumas atividades e mantiveram outras. Não fazem roça, mas produzem artesanato, organizam festas, rituais e pajelanças, rezam, cantam, dançam, recebem seus parentes, transmitem sua literatura oral e, sobretudo, continuam falando a língua materna, no âmbito doméstico, enquanto usam o português para se comunicar com os de fora. Mas até quando isso poderá ser feito na selva de pedra e asfalto da cidade de Manaus?
Bilingüismo no asfalto
Esses índios urbanos, moradores da cidade, estão preocupados com o futuro. Diariamente, atravessam ruas, pegam ônibus, frequentam escola, compram comida, vendem sua força de trabalho e seu artesanato, veem televisão, escutam rádio – tudo isso prioritariamente em português. Por isso, pensando em preservar a língua materna, decidiram – por conta própria - contratar um professor bilingüe para dar aulas na língua do povo sateré-mawé. A coisa funcionou por algum tempo, mas não foi pra frente, porque não tinham mais como pagar o professor. Agora, os saterezinhos freqüentam uma ‘escola de branco’.
Como é que a escola pública de Manaus está tratando os seus alunos indígenas? A diferença é respeitada ou é ignorada? Sabemos muito pouco sobre essa questão, que agora vem sendo estudada pela Universidade Federal do Amazonas, através de um projeto orientado pela doutora Lucíola Cavalcante e desenvolvido por Maria do Céu Freire, mestranda em educação. Foi essa última que organizou, em outubro, reunião informal com líderes sateré-mawé, que reivindicaram professor bilíngüe e escola diferenciada, tal como está definido na Constituição de 1988.
Na hora em que os líderes indígenas - Moisés, Terezinha e Bonifácio – faziam suas reclamações, lá fora, na rua, passava um carro de som, gritando de forma estridente e agressiva o nome do candidato Amazonino Mendes, que disputava o cargo de prefeito de Manaus com Serafim Correia. Pensei: “Com o Negão Mendes, os índios estão fritos”. Então, prometi: - “Se o Serafim ganhar, no dia em que assumir a Prefeitura, nós vamos lá cobrar dele a contratação de um professor indígena”. O Serafim tomou posse ontem. Hoje, estamos aqui, tentando pagar a promessa feita aos Sateré-Mawé.
As aldeias urbanas

Esses 20 mil indígenas foram ignorados até hoje pelo poder público municipal e se tornaram invisíveis para o conjunto da população manauara. As pessoas desinformadas ainda acreditam que “lugar de índio é no mato”, e que se ele vem morar na cidade, então “deixa de ser índio”. Esse papo furado – segundo o antropólogo da Universidade de Brasília, Stephen G. Baines – “é fruto de preconceito humilhante, que congela o índio no tempo e no espaço, colocando-o em oposição à vida urbana e relegando-o ao atraso, à pobreza e à ignorância”.
O preconceito fica evidente, quando sabemos que nesse momento em que você lê esse artigo, línguas indígenas estão sendo faladas em diversos bairros de Manaus. Crianças brincam, sofrem, choram e riem em tukano, baniwa, nheengatu – que foram, aliás, consideradas línguas co-oficiais em São Gabriel da Cachoeira. Algumas mães adormecem seus filhos, embalando-os na rede com canções de ninar em uma língua indígena. Alguma avó conta para o seu neto, na periferia de Manaus, histórias sobre a origem da noite, dos bichos, do mundo. Esses fatos – por si sós – justificam uma ação da prefeitura para fortalecer essas línguas, que podem estar “anêmicas”, do ponto de vista demográfico, mas não estão necessariamente “moribundas”.
O direito de cantar

“Se as políticas de desenvolvimento – ou a falta delas – continuarem a determinar a rápida extinção das línguas amazônicas, é mais provável que fenômenos raros ou únicos, mas de importância crítica para a melhor compreensão da linguagem humana, desaparecerão sem sequer terem sido identificados”.
Manaus não pode ser o cemitério de línguas indígenas, nem o túmulo desse patrimônio cultural. Serafim, ao contrário de seus antecessores, não tem pinta de coveiro. A escolha do novo Secretário de Educação, José Dantas Cyrino, despertou esperanças de que é possível mudar. Ele tem a oportunidade única de realizar gestão inovadora e de formular uma política municipal de educação indígena. É preciso fazer um censo dos índios da cidade, criar as primeiras escolas urbanas diferenciadas e bilíngües do Brasil, dotá-las de um currículo intercultural, montar um pequeno quadro de professores indígenas urbanos e cuidar de sua formação. Se fizer isso, Manaus será referência para o resto do país.

P.S. – Lula vai receber da Assembléia Legislativa o título de “Cidadão do Amazonas”. É bom lembrar ao autor da proposta, deputado Sinésio Campos (PT), que entre “os relevantes serviços prestados pelo presidente Lula à nossa região”, não consta ainda a homologação da Reserva Indígena Raposa/Serra do Sol, em área contínua, que o presidente da República vem empurrando com a barriga há 731 dias em que governa. Essa, ele ainda está nos devendo.
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