CRÔNICAS

Maria Flor, vô Hideraldo e a História

Em: 21 de Julho de 2024 Visualizações: 8648
Maria Flor, vô Hideraldo e a História

No hay nada más vivo que un recuerdo (García Lorca. 1898-1936)

Niterói, 20 de julho de 2024

Querida Maria Flor,

Teu avô nos disse adeus. Neste sábado (20), às 18h00, foi celebrada a missa de 7º dia na igreja Nossa Senhora de Lourdes, no Parque Dez, em Manaus. Moro muito longe e não pude ir para me despedir dele e te conhecer pessoalmente. No entanto, graças à internet, podemos fofocar. Vamos trocar figurinhas: vou te lembrar o que ele aprontou antes de ser avô e tu me contas o que a neta aprendeu com ele nos seis anos de vida compartilhada. Combinado? Então, vamos lá.   

Conheci teu avô, em 1983, na sala de aula do velho ICHL. Eu acabara de chegar da Europa, lá vasculhei arquivos em busca de documentos sobre a Amazônia orientado pelo historiador Ruggiero Romano. Fui dar aulas justamente de História da Amazônia no recém criado Curso de História para a primeira turma que havia ingressado na UFAM, em 1981, que tinha apenas quatro alunos. Na hora “H”, surgiu mais um, que não estava inscrito. Era um magricela simpático e risonho. Adivinha quem era? Seu nome começa com a letra “H” de História.  

- Professor, o tema me interessa, posso assistir suas aulas como ouvinte?

A participação dele foi integral, não faltou sequer uma aula. No semestre seguinte, dei a mesma disciplina para a segunda turma, que tinha outros alunos, incluindo teu vô, desta vez com o nome oficialmente na lista de chamada. Ele trancou o curso de filosofia no 7º período para se dedicar com exclusividade à História. Confesso que sua presença ali me obrigou a novas leituras para acrescentar algumas novidades e não repetir as mesmas aulas. Sua nota final foi dez, porque não existe nota mil na universidade.

A militância

Quando chegou a vez da terceira turma - menina, tu não vais acreditar - eis que surge aquele que iria ser teu avô, pedindo para assistir outra vez História da Amazônia como ouvinte. Ele já conhecia de trás pra frente o conteúdo e a bibliografia. Impus uma condição: “Fica, mas vai me ajudar como se fosse estágio-docência”. Ele ficou. E ajudou. Muito. Pergunta do Balkar e da Luísa que eles te contam.

Fizemos amizade. O braço esquerdo e a perna direita do teu vô ligeiramente afetados por uma poliomielite contraída aos 6 meses, não o impediu, já adulto, de atuar no movimento estudantil, na luta pela qualidade do ensino, contra a desigualdade social, por um Brasil sem fome. Estava em todas. A pessoa doce que você conheceu virava fera diante da injustiça. Te mando foto em frente ao Bar Acadêmico, quando celebramos a vitória nas eleições diretas para reitor. Mas já que estamos fofocando, vale a pena falar da vida familiar.

Registrei aqui no meu blog, em setembro de 2006, o falecimento da tua bisa Amazonina, fiel leitora do Taquiprati. Não lembro bem do teu bisavô que – olha só a coincidência - era meu xará. Se tirasse o sobrenome do seu José Ribamar da Costa e ele ficasse de frente, eu podia aparecer como o pai. Quem não gostaria de ter um filho assim? O casal Amazonina - Ribamar teve dez:  seis mulheres e quatro homens, um deles teu vô nascido no beco São José, bairro de Educandos, indo morar depois perto da feira da Panair.

- Acho que por ter nascido neste bairro boêmio e popular, o Hideraldo só gostava de ouvir música em alto e bom som. Passar por esse mundo discretamente nunca foi uma opção pra ele, já que a alegria precisa ser compartilhada – me disse Deusa, tua avó. Educandos era pra ele o que o bairro de Aparecida é pra mim: o “o” do borogodó presente em todas as sílabas do coração. Embora fiéis a nosso berço, ambos mudamos para o Parque Dez.  Sua casa era perto da minha.

O acadêmico

Sempre dava carona pro teu avô quando ele era estudante. A gente saía do campus e ia jogando conversa fora durante o trajeto. Criamos um grupo de estudos com alunos, todos unidos na amizade e na paixão pela História da Amazônia, com a esperança de que assim contribuiríamos para melhorar a vida dos amazonenses. Produzimos coletivamente vários artigos, algumas traduções e dois livros. Vais estudar mais tarde em um deles adotado pelas escolas de Manaus: A Amazônia Colonial (1616-1798), que tem coautoria do teu avô. Avisa coleguinhas e professora: - Esse é meu vô.

Fez parte dos projetos do grupo uma viagem de barco a Coari – território dos Juma, onde o padre Samuel Fritz criou no séc. XVII um povoado. Lá buscamos a documentação nos arquivos cartoriais e da Prelazia com apoio logístico do CRUTAC – Centro Rural Universitário de Treinamento e Ação Comunitária da UFAM. Maria Flor, nem te conto, menina. Depois de um dia cansativo, à noite, num barzinho com música ao vivo, Hideraldo dançou com colegas e com as professoras Edinea e Regina. Você já viu teu vô dançar? Levava jeito.

O dançarino, filho do seu Ribamar, se graduou e entrou na vaga de docente que deixei na UFAM, em 1987, quando fiz concurso para a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Ou seja, ninguém sentiu minha falta. Logo ele obteve os diplomas de mestre (1995) e de doutor (2002) pela PUC/SP. Pesquisou a Amazônia: os viajantes, os povos indígenas, as lutas sociais, a saúde e a doença no século XIX. Adorava dar aulas. Publicou livro e artigos, orientou pesquisas, participou de bancas, como informa Gerson Albuquerque no texto postado logo abaixo.

Sua vida acadêmica cresceu, quando deu sorte de casar com tua avó Deusa, historiadora, com quem viveu 37 anos. Ela foi a interlocutora sensível e inteligente, que pesquisou jornais operários amazonenses, documentos do Arquivo Público e da Associação Comercial e relatos de governadores do Estado para escrever, “do ponto de vista do soldado raso e não do comandante”, sua dissertação sobre os trabalhadores urbanos em Manaus no auge da borracha.

O avô

Aí nasceu tua mãe, Ana Christina, e alguns anos depois teu tio Guilherme. Mas quem ensinou o Hideraldo a ser avô foi você, que já sabe ler e escrever e foi alfabetizada na Escola Cueiras, que tem esse nome por causa de uma árvore de cuia, na qual a professora já subiu algumas vezes para te contar histórias. Agora é tua vez de contar o que viveu com ele. Te passo a palavra. É com você, Maria Flor.

 

Carta que Maria Flor um dia escreverá

Manaus, 20 de julho de 2024

Prezado José Ribamar

Vou falar do meu vô, primeiramente quando ele era ainda garoto, porque ele mesmo me contou suas travessuras, que eu ouvi. Depois conto o que vi, vivi e convivi.

Minha bisa Amazonina sempre estimulou a independência do filho, mas devido as sequelas da poliomielite recomendava que ele evitasse brincadeiras arriscadas. O conselho entrou por um ouvido e saiu pelo outro. Intrépido, ele apostava corrida de bicicleta com os amigos, saindo da rua Vista Alegre rumo à Colônia Oliveira Machado, passando pelo aeroporto de Ponta Pelada e voando de volta para o Educandos.

Numa dessas, depois de um tratamento dentário muito caro de canal, ele desceu em sua bike pela Baixa da Égua. Sabe aquela ladeira desafiadora? Pois é. Desceu por ela em disparada para vencer a corrida, caiu de cara no asfalto e quebrou os dentes.

Outra vez foi comprar pão na padaria do português, seu Garganta, que era seu padrinho e perdeu o troco. Ele ficou chateado com a repreensão da bisa e se escondeu no Amarelinho, a família toda atrás, ele só apareceu na hora do almoço, porque sentiu fome.

Tem muitas histórias como essa, mas vou falar agora dele como avô carinhoso, paciente, engraçado, que me fazia rir, me acompanhava nos banhos de igarapés, brincava comigo, festejava o natal e os aniversários, me contava histórias, me levava à escola, eu gostava de ir pra escola com uma “cabeça de onça” que ele me deu.  Te mando fotos, uma delas da festa da escavação da piscina feita para mim.

O adeus

Não sei se te falei, Ribamar – posso te chamar de Babá? – um dia fiquei com dormência, queimação e fraqueza nas pernas, peguei uma tal de síndrome de Guillain Barré, e parei de andar. O vô ficou desesperado, deixou todos os seus afazeres para cuidar de mim. Acompanhou de perto todo o tratamento e as sessões de fisioterapia.

Quando meu vô foi internado no hospital, pedi da mamãe uma foto dele e montei um oratório com um abajur astronauta que replica o sistema solar no teto, um terço, duas velas e uma escultura de Nossa Senhora em madeira balsa feita pelos indígenas de São Francisco do Bujaru, em Iranduba. Minha mãe e eu rezávamos todas as noites pela saúde do “Bom Velhinho”, assim eu chamava meu vô. Era a hora de ele ir embora, mas a reza deixava a gente mais serena e confortada.

No velório, levei de casa flores do nosso Bougainville e uma Nossa Senhora de crochê, feita por minha prima Isadora, que foram sepultadas com ele. Fui ao enterro no Cemitério Recanto da Paz, em Iranduba, vestida com uma camisa do Bom Velhinho para ele permanecer mais um pouco comigo, no meu corpo.

A médica disse que foram várias as causas da morte: choque refratário, coagulopatia grave, hipertensão arterial sistêmica, distúrbio e sepse de foco abdominal. Não entendo nada disso. Para mim, ele não morreu. Se eu conhecesse esse poeta Garcia Lorca, diria que concordo com ele: “Não há nada mais vivo que uma memória”.

É isso aí. Meu vô está vivo na minha lembrança, porque não vou esquecer nunca o convívio com ele. Dizem que quando a gente mexe no baú das lembranças, as lembranças acabam mexendo com a gente. Estou muito mexida. Agora volto ao estúdio com você, José Ribamar.

Considerações finais

Obrigado pelas informações ao Bom Dia, Manaus, Maria Flor. Lembrando aos nossos assinantes que quando faleceu o jesuíta Bartomeu Meliá, amigo querido, comentei com a antropóloga Marta Azevedo que era como se um pedacinho de cada um de nós tivesse sido sepultado com ele. Ela respondeu com a sabedoria dos guarani com quem viveu muitos anos:

- Estou saindo do enterro com a sensação inversa. É como se Meliá tivesse se distribuído para todos ñandé, para todos nós, e ele deixa uma parte dele comigo.

É isso. Levamos conosco uma parte do Bom Velhinho. De qualquer forma, peço às pessoas queridas que estão vivas, que se cuidem e morram depois de mim. Por favor. Cada vez tenho mais dificuldades de lidar com a morte de quem amo e admiro. Dessa vez fui salvo por Maria Flor – a Boa Netinha e pela serenidade da avó.  Sem elas, eu não saberia o que escrever.

Referências:

1.Francisca Deusa Sena da Costa. Quando viver ameaça a ordem urbana: Trabalhadores urbanos em Manaus 1890-1915. Dissertação de Mestrado orientada por Heloísa Faria Cruz. São Paulo. PUC. 1997

2. Hideraldo Lima da Costa. Cultura, trabalho e luta social na Amazônia: discurso dos viajantes, século XIX.   Manaus. Editora Valer. 2013. 202 p.

3. José Ribamar Bessa: A história vista de baixo (24/11/1995). https://www.taquiprati.com.br/cronica/444-a-historia-vista-de-baixo

4. __________. As flores de Maio em Manaus (02/05/1995). https://www.taquiprati.com.br/cronica/509-as-flores-de-maio-em-manaus

5. __________. Geraldo Sá Peixoto: navegar nas águas do Rio Negro. (27/05/2018). https://www.taquiprati.com.br/cronica/1397-geraldo-sa-peixoto-navegar-nas-aguas-do-rio-negro

 

O ADEUS DE MEU AMIGO HIDERALDO

Gerson R. Albuquerque

Rio Branco - Acre, 16 de julho de 2024.  

Na manhã do último domingo, em um emblemático 14 de julho, faleceu meu amigo/irmão/camarada Hideraldo Lima da Costa, historiador manauara de grande capacidade de reflexão intelectual e contagiante sensibilidade humana. Um dos caras mais incríveis que conheci e com quem tive a honra e a alegria de conviver os melhores anos de minha formação acadêmica.

Conheci o Hideraldo no ano de 1992, quando fazíamos a seleção para o curso de mestrado na PUC – São Paulo, na rua Monte Alegre, em Perdizes. Após alguns poucos minutos de conversa já nos tratávamos como velhos amigos de infância e quando terminamos a entrevista da fase final da seleção, com a certeza de que estávamos aprovados, fomos ao Primeiro Ato, um bar que ficava na rua Bartira, próximo ao TUCA, enchemos a cara e partimos cada um pro seu canto.

No ano seguinte, em março de 1993, estávamos sentados um ao lado do outro para assistir às desconcertantes aulas de Déa Fenelón, Yara Khoury, Maria de Lourdes Mônaco Janotti e, especialmente, Maria Antonieta Antonacci, que viria a ser a nossa orientadora até terminar o doutorado e nosso farol nos anos seguintes. Ele foi morar no bairro Pinheiros e eu fiquei em Perdizes. Juntos fomos a todos os lugares possíveis, aprendendo a sobreviver em São Paulo: seus bares, seus sebos, seus cinemas, suas casas de shows, seus museus, suas livrarias, seus mercados, suas linhas de metrô, seu frio, enfim, a sedução dessa megalópole que nos encantava.

Nas aulas ele se destacava pela incrível capacidade de apreender as questões colocadas em discussão e fazia com que todas as leituras parecessem simples. Tinha sempre um comentário inteligente, sensível e atencioso para fazer. Por seu intermédio, li Edmund Wilson, Richard Sennet, Margareth Rago e Neide Gondim. Ele comentava os escritos de Raphael Samuel, Raymond Williams, Le Goff, Marc Bloch, Lucien Febvre, Georges Duby, Fernand Braudel, Walter Benjamin, E. P. Thompson e Pierre Nora como se fossem íntimos companheiros de reflexões e estudos. Interpretava as narrativas dos intérpretes da Amazônia com perspicácia crítica e atenção aos mínimos detalhes.

Em um grupo de leitores dos estudos culturais ingleses, chamou a nossa atenção para os textos de Michel Foucault e afirmou que dava pra dialogar com ele e Walter Benjamin de modo afinado. Nunca dizia um não para o que quer que fosse e estava sempre disposto a uma caminhada solidária, percorrendo a cidade e descobrindo sebos e lojas de móveis usados em estado adequado e por um bom preço para montarmos nossos escritórios de trabalho doméstico.

Dava sonoras gargalhadas de suas próprias mancadas e fazia galhofa com nossa colonheirice de amazônicos perdidos na cidade grande. Hideraldo foi o primeiro a defender a dissertação e quando decidimos concorrer a uma vaga para o doutorado ele se mudou – com a Deusa e a Ana Christina – para o apartamento em que eu residia – com Ana Regina, Juliana e Pedro – para ler de modo generoso e solidário a versão final de meu texto, corrigindo, criticando e ajustando passagens inteiras de “Seringueiros, caçadores e agricultores: trabalhadores do rio Muru” como se tivesse feito a pesquisa de campo ao meu lado.

No dia de minha defesa, fechamos o Krystal Chopps, na Cardoso de Almeida e eu tive que carregá-lo aos tombos e risadas até chegar no condomínio da Itapecuru, 792, onde morávamos. Lembro que retornamos para nossas casas – ele pra Manaus e eu pra Rio Branco – logo após a conclusão dos créditos do doutorado e, em 1996, fomos para a Espanha – Madri, Santiago de Compostela, Salamanca e Barcelona – participar de um congresso com Antonieta Antonacci e outros colegas.

Certa noite, após as apresentações de nossas ponencias na Universidad de Salamanca, na companhia de colegas brasileiros, colombianos e franceses percorremos bares, praças, becos e ruelas da cidade em uma das noites mais inesquecíveis de nossas vidas: até hoje sinto o aroma daquela madrugada.

Ao longo desses últimos anos nos encontramos diversas vezes na cidade de Manaus e, em certa ocasião, tive a alegria de levá-lo pra conhecer minha avó Odília Albuquerque que residia no bairro Petrópolis. No ano de 2009, tivemos a felicidade de contar com sua significativa participação em uma das mais impactantes edições do congresso Linguagens e Identidades Amazônicas, realizado no campus da Universidade Federal do Acre. E a última vez que nos encontramos foi no ano de 2019, quando estivemos em sua agradável casa, recebendo o carinho e a atenção hospitaleira de um Hideraldo camarada, gentil, alegre e brincalhão.

 Eu poderia ficar horas e horas falando das muitas aventuras e desventuras vividas desde nosso encontro na cidade de São Paulo, mas vou encerrar essa pequena homenagem falando de um texto escrito por Hideraldo que marcou de modo incisivo a minha trajetória acadêmica. Trata-se de Cultura, Trabalho e Luta Social na Amazônia: discurso dos viajantes – século 19, sua dissertação de mestrado, defendida no ano de 1993 e publicada em 2013 pela Editora Valer. Guardo até hoje um exemplar da versão que foi entregue para a banca, com uma dedicatória feita no calor do pós-defesa, e guardo também a edição do livro impresso, com outra gentil dedicatória do autor.

As linhas dessa obra de fôlego, tecida no curto espaço de dois anos e meio, abriram meus olhos não apenas para uma região marcada pelo fascínio, pela conquista, pelo etnocídio e pelo mito do desenvolvimento que sustenta a destruição da vida, mas pelo fato de que os viajantes naturalistas do oitocentos foram sujeitos de seu tempo com tamanha proximidade com os poderes instituídos no território brasileiro ao ponto de seus discursos e suas conclusões serem incorporadas pelas elites dominantes como a verdade sobre a Amazônia.

Nesse estudo, o que Hideraldo fez não foi apenas lançar nossos olhares para as comunidades humanas excluídas e adjetivadas como indolentes e preguiçosas, mas nos fazer apreender que a realidade sobre a região, essa realidade que transborda nos livros de história e nas peças publicitárias de governantes incompetentes e autoritários não passa de narrativas etnocêntricas que foram instituídas como a verdade sobre os pluriversos amazônicos, sendo transformadas em instrumento de dominação e de permanente exploração e violência sobre o “mundo natural” e, principalmente, sobre as populações indígenas e não-indígenas no passado e no presente.

Ao saber de sua morte o chão desabou sob meus pés e lentamente fui desmontando em um rio lágrimas e de lembranças das nossas vivências compartilhadas, nossos sonhos, nossos receios, nossos reveses, nossas vitórias, nossas confraternizações. Em outubro de 2019, fiz várias críticas a esse amigo/irmão/camarada que acaba de desaparecer do mundo dos vivos, lamentando por seu distanciamento de inúmeras atividades acadêmicas e, de modo galhofeiro, o rotulando de novo “proprietário feudal”. Ele sorriu, zombou de minhas críticas e me respondeu com um carinhoso “porra! Me respeita seu filho da puta”, seguido de novas boas risadas.

Todos nós fazemos escolhas e todos nós acertamos e erramos, e acertamos e erramos de novo, e a vida é assim, me disse em seguida. Nada disso importa agora, pois o que fica é só a lembrança, essa paradoxal presença de uma ausência, essa ausência que nunca vai ser substituída, essa irreparável perda de um amigo que desaparece desse mundo e que nos deixa sentindo falta não só de seus acertos, mas também de seus erros, de suas idiossincrasias, de tudo o que lhe tornava instavelmente vivo e humano, dizendo sim para vida, sim para um mundo melhor.

É a lembrança de seu sorriso, de sua alegria, de sua lealdade, de seu companheirismo que seguirá em nossa companhia. A lembrança como parceira das boas histórias desse e sobre esse amigo que nos deixa órfãos de tudo o que ele era, de sua humanidade, de seu ser objetivo/subjetivo. A lembrança que nos capacita a criar histórias alimentadas pela imaginação, essa fonte inesgotável de fazer com que as pessoas existam mesmo quando desaparecem do mundo e, como disse o poeta Manuel de Barros, destampam a solidão e nos fazem mergulhar em seus muitos silêncios.

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52 Comentário(s)

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Alessandra dos Santos Marques comentou:
06/08/2024
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Luís Pucu comentou:
04/08/2024
Lendo-te e comendo a história que nunca some..
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Aurora Cano comentou:
02/08/2024
Maria, Flor do avô Hideraldo e a História, Esse é o titulo.
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Anne Marie Milon Oliveira comentou:
27/07/2024
Você não pode imaginar minha emoção ao ler a historia de Hildebrando, amigo Bessa, um belo relato do que você viveu naquele momento de sua vida e que compartilhei na minha modesta parte.
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Ana Claudia Lima e Alves comentou:
24/07/2024
Bessa, querido, Você escreveu uma emocionante, poética e linda homenagem ao Hideraldo, sua neta Flor e toda sua gente muito amada, família, amigos. E ao seu trabalho na História, tão importante. Ele teve seus altos e baixos , como todos nós, mas adorei ver suas fotografias, sempre sorrindo, alegre, parecia sempre de bem com a vida. E muito feliz com sua neta Maria Flor, e ela com ele. É um privilégio ter convivido com uma pessoa assim, que vai seguir vivendo em você e em todos que o conheceram e privaram com ele...
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Rodrigo comentou:
24/07/2024
Linda crônica escrita com o coração e com uma sensibilidade í.mpar! Grandes histórias, vivências e obras que jamais serão esquecidas. Aproveito para enviar meus sentimentos para toda a família do senhor Hideraldo nesse momento de imensa tristeza e dor. Um abraço querido professor
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Leyla Martins Leong comentou:
24/07/2024
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Raicele Monteiro comentou:
24/07/2024
De uma delicadeza e sensibilidade profundas...
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Vilani Fernandes comentou:
24/07/2024
Que lindo!!! Ela sempre terá memórias da história de seu avô!!!
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Salete Gama comentou:
24/07/2024
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Diana Sá Peixoto Pinheiro comentou:
24/07/2024
Hideraldo um querido,! Parabéns mestre José Bessa, brilhante como sempre.
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Amélia Regina comentou:
24/07/2024
Linda crônica, porque linda foi a passagem do nosso amigo por aqui. Saudade!
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Astrid Lima (via FB) comentou:
24/07/2024
Crônica sensível, delicada, emocionante Ribamar. Não lembro do Hideraldo mas tenho certeza de que cruzamos na vida, porque éramos um organismo único naquela Manaus que sabem as Deusas onde está. E, você sabe, um dia te pedi a mesma coisa, que mais ou mesmo quer dizer: não ouse deixar de ser eterno.
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Llyr de Llyr comentou:
22/07/2024
Que bonito! Maria Flor levando memória e história, uma em cada mão, e vai por este tapete-sementeira que voce generosamente estendeu a ela. Salve o gesto da boa palavra!
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Andrea Sales comentou:
22/07/2024
Lindas memórias, Bessa! Meus sentimentos pela perda e corroboro com a ideia de que ele deixou um pedaço dele em cada pessoa que o conheceu. Se pararmos um pouco mais pra refletir, este é o verdadeiro sentido da vida...deixar uma marca de nós em quem pudermos deixar pois este é o tempo do traço (-) aquele que estará na lápide dividindo a data da chegada com a data da partida. Uma vez ouvi isso e guardei...o que faremos neste período do traço (-)? Gratidão por mais esta linda crônica!
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Vera Ni comentou:
22/07/2024
Não conheci o Hideraldo mas os textos do José Bessa sempre mexem com meu eu caboca, me emocionando e fazendo eu viajar por nossa Manaus. Educandos e a baixa da égua me lembra as primeiras idas ao cinema ainda criança de 5, 6 anos; Aparecida, o bairro mais próximo do centro, onde eu ia à novena e à casa de uma colega/amiga que morava no beco da indústria e da qual me perdi; Iranduba de passeios de barco. Obgda Bessa por me marcar e me emocionar com essa amizade e perda dela. Aliás acho que amizades como feitas em Manaus onde era daquela convivência de um entrar na casa do outro, abrir tampa de panelas para ver se era melhor comer na casa do amigo ou na sua, não existe em lugar nenhum. Meus sentimentos!
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Marcos Montysuma comentou:
22/07/2024
Riba meu amigo, que poesia esse seu texto sobre o amigo que partiu, Hideraldo. Seu diálogo com Maria Flor é uma canção de ninar recheada com guloseimas de memória e cantos de pássaros que só existem na nossa Amazônia. É um misto de história com memória e espasmos de cantoria que só os amigos cúmplices utópicos de uma luta são capazes de fazer. De lá de onde ele está deve estar sorrindo agradecido pelo texto de acalanto para sua neta amada, que lhe chega como uma homenagem do amigo do peito.
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Dodora Bessa Farias comentou:
22/07/2024
: Cada vez que leio esse "tipo" de crônica, mais gosto de histórias das relações em família!!! Essa está genial!!! Alem de respirar AMOR, transita em outras dimensões!!!
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Clélia Bessa comentou:
22/07/2024
Que beleza de texto. E de amizade .
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Flavinha Respeita comentou:
22/07/2024
Coisa linda, tio! Sinto muito pela ida do seu amigo, mas que bela homenagem
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Leticia Luna Freire comentou:
22/07/2024
Que delicadeza de texto, Bessa. Uma bela lembrança para a Maria Flor guardar do seu avô.
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Ana Abrahim comentou:
22/07/2024
Caro amigo, Bessa, que maravilhosa homenagem ao Hideraldo! A memória nos traz a todos histórias pra contar e lembrar dessa pessoa firme e doce que conheci ainda estudante da UFAM, trazido pelo saudoso Geraldo Pinheiro, ao IPHAN, do qual eu era a superintendente regional. Esses estudantes da primeira turma de História viriam produzir uma pesquisa sobre os fundamentos da formação do espaço urbano de Manaus, que ainda não havia sido pesquisado pelos idos de 1987-88. Eu, arquiteta, muito aprendi sobre com aqueles jovens historiadores, e com Hideraldo em particular, em outras pesquisas para entender a área e o monumento do Paço da Liberdade, hoje Museu da Cidade de Manaus.
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Marcos Paulo Mendes Araújo comentou:
22/07/2024
Sem palavras. Maravilhosa e justa homenagem. Bom poder saber mais sobre a vida do professor Hideraldo. Obrigado!
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João Bina comentou:
22/07/2024
Grato! Muito delicado e belo texto/homenagem. Salve Bessa! Parabéns pelo aniversário. Abração
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Mailsa Passos comentou:
22/07/2024
Muito emocionada com esse seu texto. Que talento você tem para narrar a vida belamente em todas as suas dimensões. Toda a minha admiração querido José Bessa!
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Guiomar Carvalho comentou:
22/07/2024
Belíssima crônica em homenagem ao Hideraldo. Hideraldo foi meu colega de turma de história na UFAM.
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Mauro Souza comentou:
22/07/2024
Linda, tio Babá. Linda! ????
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Ana Paula Silva comentou:
21/07/2024
Pode parecer estranho, mas que crônica linda, emocionante. Até a gente que não o conhecia pessoalmente chora. Que tristeza!!
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Ivone Andrade comentou:
21/07/2024
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Ana Paula Freire Artaxo comentou:
21/07/2024
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Magela De Andrade Ranciaro comentou:
21/07/2024
Magela De Andrade Ranciaro Meu Jesusinho, quanta emoção nesta tarde de domingo… um sol escaldante tanto quanto o meu coração ficou absolutamente aquecido; os olhos vermelhos por não suportarem a quentura das lágrimas que, seguindo-se à leitura da Carta, insistiram rolar e rolar. Por fim, uma serenidade em meio à quietude por ter tido o privilégio da terna AMIZADE com o Hideraldo, principalmente quando de forma tão solidária contávamos com todo o apoio dele no momento em que estudávamos na PUC/SP: eu, fazia o mestrado; ele, Berna, entre outros, faziam doutorado. Desse tempo em diante, mais que um amigo, ganhei um IRMÃO. A Deus, querido IRMÃOZINHO
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Leny Cristina comentou:
21/07/2024
De arrepiar essa crônica! De fato é uma " ausência presente".
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Sandra Maria da Costa Albuquerque comentou:
21/07/2024
Linda homenagem ao meu querido irmão HIDERALDO,. Fazendo essa leitura voltei a nossa infância, juventude e alguns momentos compartilhados quando cada um foi viver sua vida mas nunca nos distanciamos sempre nos reunindo em aniversários de família e em outros momentos. Meu irmão querido vai viver sempre em nosso coração como aquele ser que sempre quis ajudar o próximo , sempre presente em todos os momentos. Obrigada pela linda homenagem.
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Elisandra comentou:
21/07/2024
Singelo olhar íntegro e amoroso
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Valter Xeu comentou:
21/07/2024
Publicado no Blog PATRIA LATINA - https://patrialatina.com.br/maria-flor-vo-hideraldo-e-a-historia/
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Marilza De Melo Foucher comentou:
21/07/2024
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Marilene Corrêa comentou:
21/07/2024
Muito bom...emociona a reunião de detalhes que compõem a qualidade do ser humano que foi o Hideraldo
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Selda Valle comentou:
21/07/2024
Tocante. Não conhecia parte da vida do Hideraldo mas a parte que convivi com ele como colega sempre foi prazerosa, solidária. Hideraldo, gentil, acolhedor, bom de conversa. Mais um que se vai, né, Bessa?
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Célia Maria comentou:
21/07/2024
Comovente. Um pouco do amigo em cada um/a..
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Lisandra Ogg Gomes comentou:
21/07/2024
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Sirlene Bendazzoli (via FB) comentou:
21/07/2024
Texto tão lindo, tão triste mas também tão amoroso!
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Herman Marinho comentou:
21/07/2024
Tem letras, palavras, linhas q são duras no q precisa ser informado, difíceis de digerir e ao mesmo tempo necessárias, doces e apaziguadoras. Bela homenagem a um grande ser humano q parte deixando um LEGADO vivo na HISTÓRIA, vivo em nossa MEMÓRIA, como disse Lorca
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Sabrina da Costa Cruz comentou:
21/07/2024
Texto sensacional, muito emotivo.. eu como sobrinha, fico muito feliz com as demonstrações de carinho, admiração e respeito pela pessoa e profissional que ele foi. Tio Hideraldo estará sempre vivo nas nossas memórias, nas boas lembranças, com o sorriso largo, sua gargalhada, sua inteligência e sua generosidade.
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Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro comentou:
21/07/2024
Bessa, a leitura da tua crônica, assim como da homenagem do Gerson ao Hideraldo nos conforta, dessa perda sem sentido, de alguém que poderia e deveria brilhar entre nós por muito mais tempo. Escritas com o coração tua crônica ( e a do Gerson), fazem justiça à memória do Hideraldo, um amigo cordial, risonho e ético. Com ele partilhei muitas histórias, bem mais boas que más; Na graduação, mais que um amigo, foi um farol tanto para mim quanto para os colegas que com ele também tiveram a oportunidade de fazer disciplinas. Como colega de Departamento foi sempre destacado na proposição de mudanças e na defesa do Curso de História da nossa UFAM, que tanto deve à ele. Por vezes nos afastávamos, mas jamais deixamos de nos falar e de querer bem; com a porta sempre aberta para os encontros nos corredores, na cantina ou à porta das salas de aula, momentos em que sempre encontrávamos um tempinho para trocar informações, saber um do outro, lembrar velhas histórias ou contar uma piada nova. Era um camarada agregador e estava sempre sorrindo, e essa e a imagem que eu vou levar sempre dele. Como você disse, um pouco dele ficou em cada um de nós. Que esteja em paz, velho amigo.
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César Augusto Queiroz comentou:
21/07/2024
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Francisco Jorge comentou:
21/07/2024
Maravilha! Bessa, parabéns pela bela homenagem ao nosso Hideraldo.
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Gerson Albuquerque comentou:
21/07/2024
Oi, Bessa! Se eu conseguisse parar de chorar, te telefonaria, meu caro amigo, mas não consigo e te escrevo para agradecer pela generosidade e parabenizar pela bela e emocionante crônica. Abraços.
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Gleice Antonia. comentou:
21/07/2024
Que fotos lindas, Babá, e a crônica também! me faz pensar sobre os olhares diferenciados sobre uma mesma pessoa. Eu nunca vi o Hideraldo afoito, ou zangado, sempre sorridente e preferencialmente não conflitando com as pessoas de posicionamentos diferente, mas sem deixar de se posicionar. Enfim, pra mim seu falecimento é a perda de um amigo, um colega de estudos, de compartilhamento de um período importante da minha juventude. Depois de muitos anos, pois eu vivi fora de Manaus por mais de 20 anos e parte fora do Brasil, nos reencontrarmos foi uma alegria e a constatação de saber que muito de nossos pensamos/convicções sobre a realidade atual - atuação de governos, luta de classes, conjuntura de Manaus, crise da Educação, vinham de um passado comum que foi o curso de História da UFAM e a convivência e aprendizado com os mesmos mestres. Uma lástima perdê-lo ainda tão jovem. Parabéns por sua crônica. Abração!
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Arkbal Sá Peixoto comentou:
21/07/2024
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Aldenor Ferreira comentou:
21/07/2024
Emoção demais neste texto. Uma sincera e sofisticada dedicação de amor, bem como um registro para a eternidade. Parabéns, mestre.
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Ângela (FNCC) comentou:
21/07/2024
Éramos amigos, eu, ele e Deusa a esposa dele. Turma boa na juventude da Igreja Nossa Senhora do Perpétuo Socorro no Educandos. Gente boa demais. Uma vez ele organizou uma turma de férias para cursarmos História do Amazonas, o professor Auxiliomar nos reprovou e o Geraldo não estava para nos ajudar e Hideraldo resolveu tudo e formamos dentro do período certo. Sempre alegre e com humor ácido.
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Alba Pessoa comentou:
21/07/2024
Simplesmente sensacional. Impossível conter as lágrimas. Obrigada por mais uma crônica banhada de emoções
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