CRÔNICAS

Na posse do Jabuti, cantando em tom maior

Em: 01 de Janeiro de 2023 Visualizações: 3482
Na posse do Jabuti, cantando em tom maior

“Vai ter que amar a liberdade / Só vai cantar em tom maior

Vai ter a felicidade de ver um Brasil melhor”

 (Martinho da Vila. Tom Maior. 1968)

Rei morto, rei posto. Chega, enfim, o dia tão esperado em que o Jabuti toma posse como “Cuidador da Floresta”, com a realização de um festival de cantoria dos pássaros que foram silenciados no reinado da Onça, agora destronada. Apoiada pelo Grupo Sentinelas de Igarapé, a Onça se fingiu de morta para envenenar a festa. Essa é a história que vai aqui contada. Foi assim.

Inconformada com sua derrota, a Onça Biroliro acampou seus seguidores à beira do Igarapé da Caserna, que ficou infestado de jacarés e piranhas com os dentes engatilhados, poraquês de dois metros que torturavam com choque elétrico e o pequeno candiru que – dizem – invade a uretra humana.

A Onça sanguinária bolou o plano do silêncio para dar o golpe. Ordenou à Raposa Biro-Lira:

- Avise à floresta inteira que eu fui esfaqueada e morri. Convide todos bichos para o funeral. Vou me fingir de morta aqui na beira do igarapé, talkey? Quando o Jabuti-Piranga da Selva chegar perto, dou um bote e o estraçalho. Enquanto isso, os amigos da Onça acampados no igarapé, depois de tocarem o terror, me entronizam outra vez como "Rei da Floresta".

Dito e feito. Se colar, colou.

O velório

- A Onça morreu! A Onça morreu! Estão todos convidados para as exéquias. No velório tem bolacha, cachaça, cafezinho e muita regalia secreta – gritava a Raposa Biro-Lira, com um megafone na mão, arreganhando os dentes.  

Os animais, que se aproximavam do falso cadáver, lubrificavam os olhos com lágrimas de crocodilo. Destoando, o Pato vinha cantando alegremente “kuen kuen”, mas Paca, Tatu, Cotia não. Atrás deles, Cavalo, Burro e Jumento, que não era o grande malandro da praça. Macaco, Gato Maracajá. Anta, Jararaca, Sucuriju e outras cobras desfilavam no meio do gado que mugia. Junto a eles Coelho, Porco, Bode e a dócil Ovelha.

Na fila dos pêsames, Lobo-Guará, Sapo, Marreco de Maringá, Caititu, Tamanduá, Bicho Preguiça e insetos: Formiga, Besouro, Vespa e a Dona Baratinha com fita no cabelo e dinheiro na caixinha 2. Vieram bichos de outras florestas: Leão, Urso, Elefante, Girafa, Hipopótamo, Rinoceronte, Canguru e Zebra.

A Onça, nem seu Souza. Com a respiração presa, as canelas esticadas e o olho de peixe de geladeira, esperava imóvel a chegada do Jabuti, que na verdade era um Cágado de sorte. Astuto, cheio de artimanhas, o sofrimento lhe deu sabedoria. Ele olhou de longe.

- Pode se aproximar, compadre – disse a Raposa.

Desconfiado, o Jabuti preferiu manter a distância:  

- Ela está morta?

- Mortinha da silva – mentiu a Raposa Biro-Lira.

- Ela já peidou e arrotou? – perguntou o Jabuti em alta voz.

- E precisa?  - retrucou a Raposa.

- Claro. Meu avô morreu na semana passada e a Coruja só assinou o atestado de óbito depois que ele deu três peidos e três arrotos.

A Onça Biroliro ouviu tudo e, com a inteligência, a delicadeza e o recato que a caracterizam, trovejou e eructou três vezes com grande estrondo.

- Morto não arrota, nem bufa – sentenciou o Jabuti, que se picou. Na verdade, “deu às de vila-diogo”, conhecedor que era da vida misteriosa das expressões usadas na beira do rio Tejo. Saiu dali para subir a rampa. Se o golpe colasse, colava. Não colou. A Onça, que se gabava de ser imbrochável, brochou.

A festança

Vai daí que, desmontado o golpe, a Onça mal-amada fugiu com sua familícia para “Me Ame”, na terra florida, onde foi lavar seu sujo tcherembó no Blue Lagoon, com despesas de viagem e hospedagem pagas pela bicharada. Decepcionada por não haver ninguém para recebê-la no cercadinho, lamentou:

- “As aves que gorjeiam aqui em ‘Me Ame’, não gorjeiam como lá na Floresta”.

Efetivamente, “a bandeira de ‘Me Ame’ nunca será verde-amarela”, constataram os amigos da onça, abandonados, que não puderam segui-la e ficaram a ver navios e emas no lago Paranoá.

O Jabuti, já com a faixa de “Cuidador da Floresta”, organizou uma festança do arromba no chamado Festival do Futuro. Foram montados dois palcos à beira do lago, cada um com o nome de passarinhas sem asa: ‘Mingal’ e ‘Trinado do Fim do Mundo’, que costumavam “cantar como um passarinho / de manhã cedinho / lá no galho do arvoredo / na beira do rio”.  

Posto que uma andorinha sozinha não faz verão, o Jabuti a todo mundo deu psiu psiu, psiu e convidou mais de 60 pássaros para cantarem a alegria. O Sabiá que andava pelo mundo e que tanto já voou, atendeu ao psiu psiu psiu e veio aliviar a nossa dor. Lá na gaiola, fez um buraquinho, voou, voou, voou, fugiu do terreiro e foi cantar no abacateiro, assim como o Tico-tico no fubá.

De repente, a mata inteira ficou muda para ouvir o canto de ébano do Uirapuru, seresteiro cantador do meu sertão, que dialogava com o sagrado. Sua canção subiu ao céu em sentida melodia, em forma de oração. Ouviu-se o canto melodioso da negra Graúna, a voz flauteada do Bicudo, o sotaque nordestino do Curió, a vocalização do Azulão, o trinado do Canário-do-mato e o gorjeio baixinho do Cricrió e do Corrupião de plumagem laranja.

Pingando mel

“Amanhã vai ser outro dia”, “Futuro Ancestral” e “Outra vez Cantar” são três dos dez shows da cerimônia oficial na Esplanada do Bosque. Muitas Jabutizinhas, Tartaruguinhas, Tracajazinhos e Cágadozinhos se divertirão no Espaço Curumim, organizado para celebrarem, elas também, a esperança e a alegria, ouvindo o Martim Pescador cantar para as quelônias grávidas:

- Está em você / O que o amor gerou / Ele vai nascer / e há de ser sem dor / Ah! Eu hei de ver / Você ninar e ele dormir / fazê-lo andar / Falar, cantar sorrir. / E então quando ele crescer / Vai ser um quelônio de bem / Vou ensiná-lo a viver / Onde ninguém é de ninguém / Vai ter que amar a liberdade / Só vai cantar em Tom Maior / Vai ter a felicidade de / ver uma Floresta melhor.

Depois que o Jabuti subir a rampa pela terceira vez, pratos típicos da culinária da Floresta, sem agrotóxicos, poderão ser saboreados na feira gastronômica montada para o evento.

A boca do Bem-te-vi, que “pinga mel”, anunciará um novo tempo, do amor e não do ódio, do livro e não da arma, da vacina e não da cloroquina, de Deus ao lado de todos e não “above all”. Agora, empossado o Jabuti, quem quiser falar com Deus, não precisará mais subir em goiabeira. Basta “ficar a sós, apagar a luz, calar a voz, encontrar a paz, folgar os nós dos sapatos, da gravata, dos desejos, dos receios” como cantou Giló.

Foi assim que a floresta se salvou da destruição total. Não vai ser fácil pro Jabuti reconstruir tudo o que foi destruído na Floresta e fazer com que nossas várzeas fiquem com mais flores, nossos bosques com mais vida e nossa vida com mais amores. Mas só pelo fato de nos ter livrado da Onça sanguinária, já lhe somos eternamente gratos.

Acabou, porra!

P.S. Recriação a partir da literatura oral indígena em Nheengatu recolhida por Couto de Magalhães no Pará em 1875. O referido é verdade e dou fé, eu, o La Fontaine de igarapé, “passarim sem asa, eu sou tudo e nada, sou um sonhador” como quer Paulinho Pedra Azul em sua Cantiga de Tropeiro.

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17 Comentário(s)

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Zezé Weiss comentou:
18/01/2023
Publicado na Revista Xapuri https://xapuri.info/wp-content/uploads/2022/12/Revista-Xapuri-Socioambiental-Janeiro-de-2023-Edicao-99.pdf
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Adeice Torreias comentou:
06/01/2023
Kkkk. Só tu mesmo mestre Bessa ????Ficaram a ver navios e emas no Paranoá rsrs. Mas aqui nessas bandas de floresta densa, com muito descampado e relva bonita , ainda tão esperando...Acredita-se que a onça vem beber água. Ela passa por aqui na volta de mi ame. Avisa esse jabuti tinga kkkk .
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Ana Silva comentou:
06/01/2023
Na mosca! Super, afinado, divertido e satírico. Grande Bessa!
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Isabella Thiago de Mello comentou:
03/01/2023
Se disséssemos que seu Jornalismo flerta com a Literatura estaríamos corretos. O poeta Thiago de Mello já declarou, emocionado, o poder literário da sua escrita na Apresentação do livro ESSA MANAUS QUE SE VAI, coletânea de crônicas suas. Porém esta, com a metáfora da vitória do JABUTI CUIDADOR DA FLORESTA, dos pássaros comemorando a vitória do Lula, entoando canções da música popular brasileira, realmente é um primor de imagens, sentimentos únicos, nesta virada da Democracia Brasileira. A onça pintada, verdadeira da mata, perdoa-nos a licença da lenda, da brincadeira. Na vida real a onça é linda, ameaçada de extinção e também protege a Mata. Neste instante estamos todos tocando os tambores, em festa.
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Araci Labiak comentou:
03/01/2023
A tartaruga, a Mãe Terra. Será o jabuti também, em tempos de inclusão natural!
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Marcia Paraquett comentou:
03/01/2023
Acabou, porra! Brigadão por essa crônica libertadora.
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Vera Lucia Teixeira Kauss comentou:
02/01/2023
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Mairise Souza comentou:
02/01/2023
José Bessa gratidão pelo excelente texto, você aqui disse tudo sobre a posse de Lula e Alckmin, ontem em Brasília! A subida da rampa com pessoas que representaram a nossa diversidade. Recomendo a leitura e divulgação.
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Rodrigo comentou:
01/01/2023
Francisco, Aline Sousa, Weslley Rocha, Murilo, Jucimara, Ian Baron e Flávio Pereira, Cacique Raoni e a cachorrinha Resistência! Que time , foi emocionante a posse do presidente Lula, uma festa linda com muita paz e alegria.O único presidente do país que foi eleito três vezes de forma democrática (e será eleito pela 4a vez para aumentar ainda mais o recorde)e será reeleito, não tenho dúvidas. Boa sorte presidente, estamos com você, o Brasil será feliz de novo! Um abraço querido professor! Feliz 2023 a todos!
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Ladislau Rodrigues comentou:
01/01/2023
O Jabuti subiu a rampa nos braços do povo, dos deserdados,
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Fernanda Cougo comentou:
01/01/2023
Eternamente gratos ao Jabuti! Viva a festa na floresta!!
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Luiz Pucú comentou:
01/01/2023
Professor...gargalhei paca e como bom tatu não sou amigo da onça. Abração
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Roberto Zwetsche comentou:
31/12/2022
Vamos cantar, dançar e encher nossos ambientes, territórios e comunidade com louvações, como dizem os nordestinos. Viva a DEMOCRACIA! ELA VENCEU O MEDO, O ÓDIO E O DESAMOR!
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Valter Xeu comentou:
31/12/2022
PUBLICADO EM PATRIA LATINA - https://patrialatina.com.br/na-posse-do-jabuti-cantando-em-tom-maior/
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JOSÉ da Silva SERÁFICO de Assis Carvalho comentou:
31/12/2022
Babá, querido amigo, sempre depois da tempestade vem a bonança. Quando ela chega e estamos dispostos a desfazer ilusões e fincar bem os pés à terra, enquanto a cabeça passeia pelo espaço, a bonança pode ser feita. Por isso, do tamanho do alívio e da alegria que esse ano trará e já se insinua nas dobras da escuridão, será nosso compromisso, seguidores do jabuti, o de ajudar a fazer pagar o mico pelos micos mistificadores. Para todos, você, sua família, seus amigos, os que você tem defendido mesmo sem os conhecer, FELIZ ANO NOVO!!!
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Marlene Silva comentou:
31/12/2022
Bom dia ! Vc falou tudo, esse jabuti é muito inteligente, retratou o momento que estamos vivendo. ???????? Eu conheço esse samba de Martinho da Vila.
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Celeste Correa comentou:
30/12/2022
Maravilha de crônica, mano! Ao ler o Taquiprati eu fiquei tão feliz que por um momento até esqueci as cenas da onça fugindo, cenas que me fizeram lembrar muito da novela " Vale Tudo" onde o vilão, o Reginaldo Faria, fugia do país com toda a grana. Sim, senti a impunidade pairando no ar. Mas logo depois pensei: essa onça maldita sugou tanta coisa dos habitantes da floresta, nesses quatro anos, que não dá para permitir que, agora longe da floresta, ela ainda roube a alegria, o entusiasmo e a esperança que paira no ar. O pesadelo acabou, porra! Hoje o momento é de MUITA celebração. Que soem os tambores dos animais originários que agora serão protagonistas de sua própria história. Amanhã será realmente outro dia.
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