CRÔNICAS

Neve em Manaus, presépio em Belém

Em: 25 de Dezembro de 1985 Visualizações: 12500
Neve em Manaus, presépio em Belém
A única coisa que falta para comemorarmos o Natal em Manaus, comme il faut, é a neve. Pensando resolver esse angustiante problema, algumas famílias amazonenses – todas elas devotas de Santa Etelvina – cobrem pinheiros de plástico com algodão. Ainda que louvável, trata-se de uma solução individual, privada, como construir uma fossa particular no quintal de sua casa. A saída tem de ser coletiva, pública, como edificar uma rede de esgoto. Reivindicando neve para todos, decidimos elaborar um projeto, intitulado “A Neve é Nossa”, que oferecemos gratuitamente à Prefeitura.
O projeto é de uma simplicidade franciscana. Os seus ingredientes são: uma gigantesca máquina trituradora de isopor, 30 mil tomadas elétricas, 30 mil ventiladores, várias toneladas de isopor e, finalmente, aquilo que na falta de um termo sociologicamente mais preciso podemos chamar de povo. Muito povo.
Como funcionará? A Prefeitura coloca no cruzamento da Eduardo Ribeiro com a Sete de Setembro a trituradora de isopor. Convoca toda a população de Manaus a comparecer ao local, munida de ventiladores. Recolhe todos os pedaços de isopor atirados no lixo do comércio da Zona Franca e joga tudo dentro da trituradora: embalagens de aparelhos de som, de TV e outros presentes natalinos. Trinta mil tomadas elétricas serão instaladas pela Eletronorte. Enquanto o isopor triturado vai saindo da máquina, os ventiladores serão ligados de baixo para cima e os céus de Manaus se cobrirão de flocos de neve, que cairão docemente sobre a cidade.
Quem não for proprietário de um ventilador, não será marginalizado e nem discriminado por causa disso. A Prefeitura de Manaus permitirá que tais pessoas usem os seus próprios pulmões, soprando, num gesto participativo que unirá cada vez mais povo e governo e consolidará os laços de fraternidade.
Resultado: pelo menos o centro de Manaus vai ficar com o asfalto branquinho-branquinho e com os telhados cobertos de neve, como nos filmes que a gente vê na tela da gente, onde agora o que pinta, pinta-de-quente, mas antes pintava-de-novo. As crianças podem até fingir que estão brincando com bolas e com bonecos de neve e os adultos podem vestir roupas de inverno.
Penso ser desnecessário enumerar todos os benefícios que o projeto trará para nossa cidade. Mencionarei apenas três deles:
1º - a nossa neve manauara não derrete e por ser um produto muito mais durável que o europeu pode ser exportado para o resto do mundo;
2º - a Prefeitura não precisará pagar os garis para ajuntar o lixo de isopor;
3º - a criação de milhares de novos empregos nas plantações de árvores de isopor que serão enfileiradas na área do igarapé de Manaus, com recursos do FINAM e da SUDAM, para abastecer de neve futuros natais.
A ideia – eu sei – pode parecer um pouco absurda para aqueles que não são capazes de sonhar. No entanto, ela é menos estranha do que parece. Por que não podemos enfiar neve no natal manauara se já meteram o peru, nozes, figos, passas, vinho e outros produtos europeus na ceia-de-natal amazonense?
O Presépio
Aqui, pelo menos uma pergunta séria se impõe: afinal, qual é o significado histórico do natal para nós, da Amazônia?
A comemoração dessa festa religiosa em nossa terra é muito recente. Durante séculos e séculos, os povos amazônicos viveram muito bem sem o natal, inclusive porque nem sabiam o que era isso. A primeira vez que observaram os festejos, de longe, foi justamente no natal de 1615, quando os portugueses entraram pela primeira vez, pra valer, na região e, comemorando a festa religiosa, resolveram usar o nome de presépio para batizar a nova terra. Presépio foi o nome dado à fortaleza, denominada Forte do Presépio de Santa Maria de Belém, fundada em 1616, que deu origem à atual capital do Pará.
Na Amazônia, portanto, quem nasceu no presépio naquele natal de 1615 não foi o menino Jesus, mas o Poder Militar Colonial Português. Na Amazônia, o presépio não foi a humilde manjedoura, a lapinha, onde nasceu o filho de um pobre carpinteiro. Aqui, o presépio era um forte militar, onde nasceram e cresceram as tropas de guerra e de resgate, responsáveis pela escravização e pela matança de milhares e milhares de índios, num processo considerado pelos pesquisadores de Berkeley como “a maior catástrofe demográfica da história da humanidade”.
Que imagem poderiam ter de Cristo e do Natal os povos que viviam na Amazônia, quando o catolicismo guerreiro da época aliava ao nome do Presépio um instrumento de dominação e de opressão? Quem era Cristo e quem era Herodes? Quem perseguia e quem era perseguido? Quem era inocente e quem tinha as mãos manchadas de sangue?
Nesses três últimos séculos, as coisas não mudaram muito. A comemoração do nascimento de Cristo em Manaus – agora sem a presença das simpáticas pastorinhas, dos autos de natal do Luso e do maior Cão do Luso da história do Amazonas, o João Bosco Araújo – continua tendo um caráter alienado, simbolizado não apenas pelos signos superficiais e externos de algodão, do isopor, do pinheiro de plástico, dos figos, de perus e bacanaços, mas pela recuperação que o Poder fez da festa religiosa, com a conivência de certos setores da própria Igreja.
No Pará, por exemplo, neste momento o governador Jader Barbalho está distribuindo 400 mil brinquedos para as crianças pobres, num comportamento assistencialista e demagógico, enquanto a sua polícia estadual é enviada para baixar o cacete nos pais dessas mesmas crianças que buscam um metro quadrado de chão para morar e que são tratados como invasores em sua própria terra.
Se Cristo renascesse hoje, na Amazônia, onde estaria agora? Nos braços de uma daquelas mães que enfrentaram a Polícia em frente ao Conjunto Ayapuá? Quem seria Herodes, hoje, em Manaus? Será que Jesus encontraria pelo menos uma manjedoura? Sobraria para Maria, pelo menos, uma fralda do tal “Projeto Mãe-Amiga”?

 

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5 Comentário(s)

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Paulo Bezerra comentou:
09/11/2014
Como faço já alguns anos quando se aproxima o natal, venho aqui reler essa crônica como se quisesse decorá-la, talvez, por medo de esquecer a sua belíssima mensagem. Um abraço, mestre.
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emztgdik comentou:
08/12/2010
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eubxdgbgvqd comentou:
04/12/2010
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RAISA comentou:
21/06/2010
EU QUERO VER PONTA NEGRA
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Ivonete Souza Santana comentou:
17/05/2010
Temos esse jornal de 1985 falando sobre o presépio , do seu Jose Cosme Santana , que tinha 20 anos de Historia uma vez foi mandada uma manchete sobre ele 31/12/1985 . Estavamos olhando fotos antigas sobre ele e achamos um jornal sobre essa edição .
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