CRÔNICAS

O XAROPE DA VOVÓ

Em: 22 de Julho de 1988 Visualizações: 2176
O XAROPE DA VOVÓ

.Para Lizoca, com amor

Era uma vez um menino. Ele era muito bonzinho. O nome dele era Juninho. Ele tinha uma avó, de olhinho verde-verde. Todos os sábados, a avó, militante na Pastoral da Catequese, ensinava catecismo para um montão de crianças na igreja de Aparecida, em Manaus.

Aos seis anos, Juninho se preparava para a primeira comunhão. No catecismo, a avó abriu a cabeça dele (e dos outros) e meteu lá dentro Deus com hóstia e tudo.

- Quem é Deus?

- Deus é um espírito perfeitíssimo, eterno, criador do céu e da terra – respondia Juninho na ponta da língua, colocando tudo em maiúscula, porque Deus é maiúsculo.

Inteligente, Juninho ficou intrigado:

- Vó, Deus criou também Manaus?

- Ele criou tudo, meu filho, até Manaus e o bairro de Aparecida, onde você nasceu.

- Então, por que Manaus é tão fedorenta, calorenta e cheia de lixo?

A vó, politizada às pampas, não era besta de atribuir a Deus a criação de um monstrengo.

- Ah, quando Deus criou Manaus e os indígenas aqui moravam, o lugar era lindo-lindo, cheio de árvores, de ar puro, de igarapés com águas cristalinas, que a gente podia até beber. Mas os prefeitos destruíram tudo só para ganhar dinheiro. Uns sem-vergonha!

A terra do Juninho tinha uma praga de prefeitos. Prefeito em Manaus era uma doença altamente contagiosa, uma epidemia. Num só dia chegou a ter três: o prefeito, o mais-que-prefeito e o imprefeito, todos eles condicionais, sem indicativo para o futuro, mas querendo no imperativo um mandato infinito.  Uma inflação de tanto prefeito arrasa qualquer Hiroshima. Tinha “O Meu prefeito”, “o Teu”, o “Deles”, só não tinha “o Nosso”. Por isso, a cidade estava bombardeada.

Papai do Céu

O Juninho mudou de Aparecida e foi morar na Cohab-Am do Parque Dez, um planeta sem esgoto, sem praças, sem árvores, sem calçada pra passear, sem parquinho de diversões, sem lugar para brincar.

A vó de Juninho continuava morando no Planeta Aparecida, da mesma galáxia. Aparecida também não tinha nada, só esgoto. Mas o esgoto, do tempo do finado Puta Merda e do guaraná de rolha, vivia tão arrebentado, que a bosta aflorava a céu aberto, dando a denominação apropriada para uma de suas vielas: Beco da Bosta. A diversão dos moleques era identificar quem era – entre os moradores – o autor ou autora dos toletes que boiavam na rua.

Quando Juninho completou 14 anos, já galalau, viajou de férias para o Rio de Janeiro. Ficou na casa do tio, em Niterói. O Rio tinha bandido, tinha miséria, tinha favela, mas tinha em muitos bairros calçada pra passear, esgoto, praças, árvores, lugar para brincar e teatros com muitas peças apresentadas dentro deles. Era um planeta “abençoado por Deus e bonito por natureza,aaaaa”. Aí o menino quis ficar no Rio, onde “em fevereiro tem carna, tem carnaval”, e o tio tinha “um fusca e um violão”.

A avó do Juninho, que era mesmo quem mandava na gaiola (não adianta fingir, Dile, todo mundo sabe) decidiu do alto de suas tamancas:

- Eu não sou sua mãe, não tenho nada com isso (era assim que dava suas ordens sem apelação), mas eu acho que você pode ficar. Você fica aí no Rio. (Pausa. Esperem que a vovó está pensando). No entanto, tome cuidado com seu tio. Seu tio é um homem bom, mas infelizmente ele ainda é “aquilo” (Ela não falava a palavra “ateu” nem que a vaca tossisse para não se contaminar).

A vó preocupada com seu filho – o tio do Juninho – dizia: “Eu só morro depois de abrir a cabeça dele e meter Deus lá dentro outra vez”. Ela deu instruções precisas para salvar o neto.

- Não esqueça, Juninho, todos os domingos, missa e comunhão. De noite, antes de deitar, reze sempre pro seu Anjo da guarda:

“Santo Anjo do Senhor, meu zeloso guardador, já que a ti me confiou a piedade divina, sempre me rege, guarde, governe, ilumine e guie, amém”

E antes de cada refeição, peça a benção de Papai do Céu, em voz alta, pro seu tio ouvir, rezando a oração que eu te ensinei:

- Abençoai-nos Senhor, e a este dom que de Vossa bondade vamos receber, nós vos pedimos, por Jesus Cristo Nosso Senhor, Amém.

Ah, e no final do almoço e do jantar, para ter uma boa digestão:

- Nós vos damos graça, por todos os benefícios, oh Deus onipotente, que viveis e reinais por todos os séculos e séculos, Amém.

Garrafada

Dito e feito. O Juninho acrescentava no final de cada oração:

- Jesuscristinho, toma conta da vovó.

Ai dEle que não cuidasse, haveria greve na aula de catecismo.

Durante todo o primeiro semestre de 1988, Juninho viveu em Niterói, tudo nos conformes. No final de cada mês, escrevia uma cartinha para a vovó, mandando cópia do boletim do Colégio Salesiano. Um olhinho verde da vovó – aquele que não enxergava bem – olhava as notas de Matemática. O outro olho – o bom – espiava as notas de Religião. Ela estava contente.

No final do mês de junho, a danada da gripe deu um soco no Juninho e jogou o menino na cama. Chama médico, receita daqui exame dali nada adiantava. Nem a infalível homeopatia do tio Orlando, médico de Respeito, que curava tudo. Aí o menino gritou:

- Eu quero o xarope da vovó. Só fico bom com o xarope da vovó.

A vovó fazia umas garrafadas, que eram uma bomba. A receita é meio secreta, mas tinha: mel-de-abelha, cravo, mangarataia, malvaísco e outras ervas, além de dez gotinhas de cachaça, que ninguém é ferro. Ela explicava a função de cada ingrediente:

- O mel cola o catarro no peito, o cravinho dá-lhe uma cutucada, a mangarataia puxa tudo isso pra fora e as ervas dão um colorido bonito, tornando líquido o catarro pastoso.

- E a cachaça, vovó?

- É apenas uma homenagem ao finado Barbosa, chegado em umas e outras, mas ajuda muito a matar o vírus da gripe.  

Pobre Catiôla

Telefones interurbanos. A vovó avisa que mandou a garrafada pra Niterói “sob os especiais cuidados do sr. Guedes”, um competente funcionário da LBA-Amazonas, que viajava a serviço. Quem era esse senhor Guedes? Nada mais, nada menos, do que o Catiôla do Beco da Indústria, ex-aluno de catecismo da vovó (turma de 1961), que nunca conseguiu compreender os mistérios da Santíssima Trindade, mas foi aprovado assim mesmo para a primeira comunhão, só porque era filho da comadre da vovó. Ele não podia recusar dizendo,  sob o risco de ex-comunhão:

- Não, eu não levo sua garrafa.

Teve que levar. Com a pressão do avião – pum! – a rolha da garrafa pulou, caindo dentro da cueca do sr. Guedes. Quando o Guedes-Catiôla abriu a mala, o terno cinza claro que ele ia usar para encontrar o diretor-geral da LBA, estava todo emelecado de uma goma esverdeada. A vovó não aprendia mesmo: anos antes enviou para seu filho em Paris um vidro de tucupi, que explodiu na mala de um padre redentorista americano, perfumou o avião e todo o aeroporto Charles De Gaulle, com o fiscal da alfândega atônito:

- Qu'est-ce que c'est ça?

Diante do acidente, Juninho esperneou:

- Eu quero ir pra Manaus tomar o xarope da vovó.

O tio argumentou:

- A gente telefona e manda buscar outra garrafa.

O menino abriu o jogo:

- Eu quero ir a Manaus pra vovó passar “sebo de Holanda” e massagear o meu peito e a minha costa.

 Não tinha outra saída. O menino, com um futuro promissor, que um dia podia até – quem sabe? – ser aquilo, tinha de voltar para o planeta dos muitos-prefeitos e seus respectivos becos. Felizmente, a vovó estava pagando as prestações da passagem aérea de ida e volta e a viagem estava garantida.

Saudades da vovó

Porém, ai porém, há um caso diferente, uma agência da Viação Aérea Sem Pressa informou que o menino não podia viajar. A passagem de ida e volta, vendida no dia 2 de dezembro de 1987, tinha validade de um ano, mas era uma tal de tarifa combinada para um voo noturno, que não existia mais.

- Infelizmente a Base-Rio não pode honrar os compromissos da Base-Manaus e bibibi e bobobó. Compreendemos o seu problema, acreditamos que o xarope é mesmo milagroso, que a vovó é gente fina, mas lesco-lesco coisa e lousa, Pererê pão duro. Esse era o papo dos gerentes da empresa: uma xaropada. Que vaselinas!

Depois de muito ir e vir, muito trique-trique, puxa-encolhe, papo e enrolação, depois de muita ameaça (“vou procurar o meu advogado” trovejou o tio pobretão, que não tinha chongas de advogado), sobretudo depois de muita oração da vovó e, finalmente, depois de uma promessa do tio a um gerente que tossia (“Mando buscar pro senhor o xarope da vovó”), a empresa acabou cedendo.

No dia 10 de julho – Ufa! – O Juninho voltou para o planeta dos muitos-prefeitos, carregando na mala essa crônica enxaropada e, dentro do peito, um coração apertadinho de saudades da vovó: o verdadeiro nome do xarope.

Agora, quem está gripado é o papaizinho aqui, que acaba de batucar essas mal traçadas linhas numa Olivetti. Seriozinho, maninha, a gente está com gripe e com uma vontade danada de berrar com todos os pulmões desmunhecantes:

- Eu também quero o xarope da vovó.

P.S. – Um recado: Regina, avisa ao Geraldo Sá Peixoto, que vai viajar ao Rio, que ele deve recusar a encomenda. Se a vovó pedir – e ela sempre pede, e se ela convencer – ela sempre convence, diz a ele que pelo amor do Anti-Aquilo, ele não coloque a garrafa dentro da mala. Ela explode, coração.

 

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1 Comentário(s)

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Armando Barrella comentou:
29/03/2024
José Bessa não sabia que José Amaro Jr. Chorava pelo charope da vovó
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