CRÔNICAS

Se fumar é um prazer, tou fumado

Em: 15 de Dezembro de 1992 Visualizações: 11316
Se fumar é um prazer, tou fumado

- Tou fumado!

A jornalista Leila Leong estava preparando um texto sobre fumantes e pediu, via fax, o meu depoimento pessoal, mas não tive tempo de responder envolvido com aulas e aulas. A matéria foi feita, bem feita, e publicada. Só agora, em dívida com a Leila, tento responder.  O estilo “Confissões” não faz meu gênero, talvez por uma questão mesmo de pudor. Preferia escrever sobre o deputado Átila Lins que quer legalizar os cassinos, demonstrando dessa forma que representa o povo do Amazonas. Mas até mesmo o PFL (vixe vixe) merece uma trégua, com uma semana de descanso. Vamos lá.

A ideia de fumar entrou na minha cabeça junto com o materialismo histórico e dialético, o Império Gupta e Maomé. O responsável pela proeza foi Manoel Octávio, professor de História no Colégio Estadual na década de 60. Ele já entrava na sala com um cigarro nos lábios. Fazia a chamada, expelindo fumaça pela boca, em pequenos rolos. Durante a aula, consumia vários cigarros Holywood sem filtro. Ou seria Continental? Não importa. Ele dava uns tapinhas sobre a carteira antes de acender com isqueiro de chama escandalosa.

Depois de uma tragada profunda, começava a falar e na medida em que discorria sobre a paixão de Maomé pela viúva Kadidja e pela jovem Aicha “esplendorosamente bela na explosão de seus 14 anos”, lançava jatos de fumaça pelo nariz e pela boca, que saíam em pequenos círculos, junto com suas sábias palavras, faziam evoluções pela sala e desapareciam pela janela em direção à praça da Polícia. Eu olhava fascinado. Achava o máximo. Queria ser como Manoel Octávio, fumar como Manoel Octávio e, de preferência, dar uns amassos na jovem Aicha ou na Kadidja como Maomé.

Manoel Octávio Rodrigues de Souza era um professor porreta. Hipnotizava a turma toda com seu verbo inflamado. Sempre alinhado, cada aula vinha com um terno de cor diferente, rigorosamente engomado. Inteligente. Responsável. Inesquecível. Um modelo a seguir. Eu queria conhecer a História como ele, a História como a ciência do homem no tempo, que identifica estruturas, mas especialmente a micro-história, com o cotidiano, pessoas de carne e osso, fofocas. A História tinha de vir acompanhada de baforadas.

Acontece que meu pai, um fumante inveterado, cortou o meu barato literalmente?

- Filho meu, antes dos 18 anos, não coloca cigarro na boca.

O primeiro cigarro

Ah, é? Tudo bem. Considerei como um convite a médio prazo. Esperei dois anos e meio com aquela ideia fixa. Na véspera do meu aniversário, comprei uma carteira de Astória, sem filtro, aquela amarelinha. No dia seguinte, acintosamente, fumei o meu primeiro cigarro. Mas – oh, desilusão! – não conseguia soltar a fumaça em rolinhos e, ao mesmo tempo, falar, porque não sabia tragar. Durante algum tempo, fumei sem tragar. Guardava a fumaça na boca por algum tempo para não dar bandeira e soltava tudo de uma vez só.

Meses depois, já cursava jornalismo no Rio de Janeiro e havia mudado de Astória para Continental, também sem filtro. Um dia, caminhando pela Franklyn Roosevelt com um primo, o doutor Ruy Bessa Martins, em frente ao Consulado Americano, ele ficou escandalizado:

- Rapaz, você não sabe tragar. Tá perdendo o melhor do tabaco.

Tenho essa dívida eterna com o Rachimbau. Ele me ensinou a tragar. A primeira tragada foi maravilhosa, deu barato, uma tontura gostosa, um amolecimento nas pernas e uma sensação de que o tabaco havia penetrado no corpo inteiro. O prédio do Consulado parecia um navio balançando com as ondas do mar.

Há 27 anos, com uma breve interrupção, bombeio diariamente para os meus pulmões uma quantidade nada desprezível de nicotina. Fumei muitas marcas, algumas já desaparecidas como o“Capri”, o "Minister". No Chile, fumei “Dexter”. No Peru, uma marca denominada “Inca”, tabaco negro e adocicado que vinha numa carteira amarela e azul, com o perfil de um inca, se a memória não me falha. Cheguei até a tragar aquela porcaria mentolada, o “Consul”, mas abandonei correndinho porque, segundo intrigas da oposição, era brochante.

Na França, os cigarros mais baratos eram o “Gauloises” e o “Gitanes”, com tabaco preto importado do Paraguai. O primeiro é mais “molhado” e o segundo mais “seco”, ambos acomodados em carteiras azuis. Tabaco fortíssimo. Você dá uma puxada e – toiiiiiiiiiim – sente a porrada no peito, aquela sensação de que a coisa não é brincadeira, que o câncer está invadindo teus pulmões.

Parar de fumar

Ah, o medo do câncer para um hipocondríaco é maior do que o prazer proporcionado pelo tabaco. Um dia, passando pelo Largo da Carioca vejo uma pequena multidão concentrada em torno de uma exposição, engenhosamente bem montada, com dois camelôs vestidos de branco, a farda de médico, exibindo dentro de recipientes de vidro pedaços pretos e podres de pulmões de fumantes.

- Seu pulmão vai ficar assim se continuar fumando – berrava um deles, que me olhou e disse:

- O cavalheiro aí.

Não sei o que é, mas tenho cara fácil de presa para camelô. O cara me vendeu ali, na hora, um remédio, dois vidrinhos com um líquido para ser misturado e bochechado quando desse vontade de fumar. Fui para a Uerj e anunciei que ia abandonar o cigarro. Os colegas festejaram. Depois da primeira bochechada, a vontade não passou. Puxei um cigarro. Quando dei a primeira tragada, um gosto horroroso de podridão na boca, uma sensação horrível como ver o Amazonino falando na televisão.

Joguei os frascos no lixo. Queria deixar de fumar, mas com a consciência de que o gosto do tabaco é bom. Aquele líquido infecto pervertia tudo. Não dava. Até que comecei a sentir uma úlcera e o médico mandou cortar o cigarro.

- Não sou um rato. Sou um homem – eu disse.

Parei de fumar por mais de um ano. Como todo ex-fumante, eu declarava em alto e bom som que, “agora sim, sinto o sabor da comida, respiro melhor, acabou a tosse e o pigarro, posso respirar o ar puro, subir escadas sem resfolegar” e todo aquele papo que tem algo de furado. Na verdade, não senti qualquer diferença.

Voltei a fumar de uma forma bem safadinha, pedindo uma tragadinha aqui e ali. Depois, pedindo aos amigos que antes de jogar fora o cigarro, me deixassem dar a última tragada. Em seguida, filando cigarros isolados e até de estranhos.

- O negócio é não comprar. Enquanto não comprar, posso continuar resistindo.

Numa viagem de Manaus a Brasília, na área dos fumantes no avião, filei três cigarros de diferentes passageiros. A humilhação dificultava a retomada do vício. Já no desembarque, abordei um rapaz que fazia a limpeza:

- Não leva a mal, mas você pode me dar um cigarro?

Ele me deu. Mas sai dali e comprei logo um pacote, depois de 14 meses de jejum e abstinência do tabaco.

A retomada

Meu problema se resumia agora em encontrar a justificativa ideológica que fundamentasse a retomada do vício. Diante de todas as campanhas contra o cigarro, me defendi como pude. Recortei a notícia do jornal sobre  morte de Mao-Tse-Tung, que fumava quatro carteiras por dia e morreu com mais de 80 anos com pulmões e coração inteiraços. Era um estímulo.

Comecei também a colecionar reflexões favoráveis ao cigarro, desde o século XVII, como a reflexão de Molière na sua obra Don Juan:

- Diga o que diga Aristóteles e toda a filosofia, não existe nada comparável ao tabaco. Quem vive sem tabaco, não merece viver.

Infelizmente, os médicos não leram Molière. Cada vez que procuro um deles, a recomendação é sempre para parar de fumar.

Parei de ir ao médico. Continuo me envenenando diariamente. Para escrever essa crônica foram consumidos 19 cigarros, quase um maço. O cigarro é uma droga, é como o jornalismo, sei que me faz mal, mas tenho consciência do prazer que proporciona. Ainda bem que não exerço o mesmo fascínio do Manoel Octávio sobre os meus alunos. Nenhum deles fuma. E uma chegou a me dar um esporro em sala de aula.

P.S.1 - Átila Lins e Ezio Ferreira disputam a presidência do Diretório Regional do PFL (vixe vixe) . Aqui cabe a campanha do voto nulo.

P.S. 2 – Funcionários da Petrobrás estupraram uma índia Katukina, cujo nome cristão é Betinha. A  revista “Veja” que fez todo aquele escândalo histérico com o Paulinho Paiakan, deturpando os fatos, não deu uma palavra sobre o assunto. Também não noticiou o aniversário do Mauro Roberto, o que faço aqui.

P.S. 3 - (postado em 2017). Em 1997, o autor abandonou definitivamente o cigarro, mas 20 anos depois continua com uma saudade danada.

Ver também A ARTE DE SER MANOEL OCTAVIO - http://www.taquiprati.com.br/cronica/877-da-arte-de-ser-manoel-octavio

 

 

 

 

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4 Comentário(s)

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Beatriz F. Arantes comentou:
27/09/2020
professor, que presente de crônica! E como é dito no PS final, embora não tenha um tempo considerável desde que parei, a saudade é grande. Digo que é como se perdesse um amigo.
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Renato Santana comentou:
06/04/2020
esse papo todo me lembrou o Só Para Fumantes, do Julio Ramón Ribeyro. A propósito, sou fumante tentando reduzir a quantidade diária.
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Débora Reina comentou:
01/08/2017
-1 - No livro "Meu último suspiro" (aliás, ma-ra-vi-lho-so!) do Luis Buñuel, ele fala de um cara, que internado e sabendo que estava à morte, subornava um enfermeiro que lhe levava cigarros. O qual ele fumava pelo buraquinho que lhe fizeram na garganta para que se alimentasse. Sobre isso, Buñuel disse: "Fiel até o fim ao vício de fumar..." (como se isso fosse ótimo. Rsrsrsrsrs). 2- Não dá para fingir que tragou sem tragar. Mesmo que se prenda por um tempo a fumaça na boca. Quando vc solta, vem fumaça pra cacete! Fica na cara que vc não tragou! Kkkkkkkk E 3- Tudo o que vc escreveu é mesmo verdade? Vc parou ou não parou de fumar?... Fiquei na dúvida.
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Debora Reina (FB) comentou:
01/08/2017
Pra ter me mercado, vc deve ter lido minha postagem de hoje, né, Bessa?... Fiquei com uma vontade de dar uma fumada nesse Minister! Meu padrinho fumava desse. Tá com quase 80! Vivíssimo! Mas essa marca, acho que morreu. Kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk
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