CRÔNICAS

Cadê os documentos da Santa Casa?

Em: 06 de Março de 2005 Visualizações: 9089
Cadê os documentos da Santa Casa?
Alguns leitores perguntam:
- Cadê o ‘Pão Molhado’?
As más línguas dizem que esse personagem foi visto pela última vez numa fila do Detran, na Baixada Fluminense, tentando licenciar um táxi, para acabar com o monopólio do Constantino, o portuga boca-de-sovaco, único taxista da telenovela  ‘Senhora do Destino’, depois que a Nazaré matou o outro. Vida de novela é assim mesmo, difícil para todas as profissões. O gordão barbudo também é o único padre, que casa, batiza, confessa, celebra missa, tudo isso sozinho, da mesma forma que o médico careca é pau-pra-toda-obra: faz parto, trata do coração, opera fígado, transplanta rim, conserta ossos, garganta e traqueia, cura frieira, pereba e até dor de corno.

Isso é o que dizem as más línguas. As boas línguas contam que, na realidade, o ‘Pão Molhado’ andou meio sumido porque esteve metido dentro dos arquivos.
Para quem não sabe, ele é aluno do curso de Serviço Social da Faculdade Dom Bosco e já está preparando sua monografia de conclusão de curso. Nos últimos meses, desapareceu para escarafunchar documentos antigos, pesquisando sobre a situação dos órfãos, das viúvas, dos velhos, dos presos e dos loucos em Manaus, na época dourada da borracha, entre 1880 e 1910.
Se tudo der certo, dentro de dois semestres, ‘Pão Molhado’ será um autêntico ‘intelectual de esquerda’. Para isso, deu um trato no visual, mudou o corte de cabelo, deixou crescer um rabo-de-cavalo e uma barbichinha indecente, colocou óculos tipo Leon Trotsky, aprendeu a beber cerveja em barzinho e começou a usar palavras como ‘perpassar’, ‘dicotomia’, ‘dialética’, ‘anacronismo’, ‘conjuntura’ e ‘problemática da estética fenomenológica’.
Se ele fosse paraense
Com muito custo, ‘Pão Molhado’ aprendeu uma lição: quem quer pesquisar sobre a assistência social no Brasil tem, inevitavelmente, de procurar as Santas Casas de Misericórdia, que são quase 500 em todo o país. E isso porque no passado, quando não existia INSS, INAMPS, PIS/Pasep, LBA, FUNABEM, Comunidade Solidária e Fome-Zero, eram elas, as Santas Casas, que atendiam órfãos, menores abandonados, viúvas, mulheres desamparadas, idosos, presos, loucos, mendigos e famintos. Elas são tão antigas como o Brasil. A Santa Casa de Olinda foi criada em 1539, a de Santos em 1543, a de Salvador em 1549, a do Rio de Janeiro em 1567, e por ai vai.
Por isso, os arquivos das Santas Casas são frequentados por pesquisadores nacionais e estrangeiros, como informa a historiadora Esther Bertoletti, coordenadora do Projeto Resgate de Documentação Histórica. Ela apoiou um trabalho coordenado pela doutora Yara Aun Khoury, do Centro de Documentação e Informação Científica (CEDIC) da PUC-SP, que vasculhou os arquivos de 110 Irmandades da Misericórdia, publicando o “Guia dos Arquivos das Santas Casas de Misericórdia do Brasil, fundadas entre 1500 e 1900”.

O ‘Guia’ revela documentação rica, que permite conhecer melhor, entre outras coisas, as relações de Portugal com o Brasil no período colonial, como as pessoas nasciam, viviam, adoeciam e morriam, como os doentes eram tratados e curados, quem eram os profissionais da saúde, como eram enterrados os abastados e os que não tinham onde cair morto, como as elites exerciam o poder e se articulavam local e regionalmente. Existem já estudos a partir dessa documentação sobre as políticas públicas de saúde, os menores abandonados, a mendicância, a velhice, a loucura, as políticas sanitárias e higienizadoras das cidades, a formação de médicos, enfermeiros e farmacêuticos em várias regiões do Brasil.
Se o ‘Pão Molhado’ fosse paraense, procuraria os arquivos da Santa Casa de Misericórdia do Pará, fundada em 1650, no bairro Umarizal. Lá ele pode encontrar relatórios da Provedoria e ofícios desde 1800, com mapas de pessoas falecidas de varíola e cólera, balancetes de receita e despesas, relações nominais dos escravos pertencentes à Santa Casa, prontuários de pacientes, registros de cirurgias e muitos documentos do século XIX. Mas o ‘Pão Molhado’, coitado, é amazonense, como eu e tu, leitor.
Mas ele é amazonense
Ninguém é amazonense impunemente. O prédio da Santa Casa de Manaus, patrimônio da cidade, está desabando, em ruínas. Um por cento da propina que certos governadores ganharam, daria para recuperar o prédio. Há um movimento para cobrar isso do Estado.
Por isso, quando o ‘Pão Molhado’ procurou os arquivos da Santa Casa de Misericórdia de Manaus, descobriu que lá não existe nenhum documento do século XIX, apesar da instituição ter sido fundada em 1880. Na realidade, os papéis que estão jogados numa sala são, na sua maioria, de 1950 para cá: controle de estoque de medicamentos da farmácia, folhas de pagamento, livros de caixa, ocorrências no berçário, registro de parturientes, entrada e saída de pacientes, relatórios de cirurgias, fotografias de instalações, reformas e eventos, todos eles interessantes, mas de um passado muito recente.
Cadê os documentos anteriores a esse período? O que aconteceu com os arquivos do Hospital Colônia Eduardo Ribeiro, depois denominado Hospício Eduardo Ribeiro, que pertenciam à Santa Casa de Manaus? Suspeito que foram todos destruídos, levando com eles uma parte significativa da memória da nossa cidade. No entanto, a bem da verdade, em outros lugares ocorreu a mesma coisa.
Há alguns anos, esse locutor que vos fala entrou no forro da Santa Casa de Valença (RJ), fundada em 1838, onde ratos e cupins se banqueteavam com documentação histórica do século XIX, jogada como se fosse no lixo. Lá este locutor descobriu o prontuário de um índio coroado, falecido em 1868. 
Portanto, se o ‘Pão Molhado’ quiser mesmo continuar sua pesquisa, vai ter que procurar outras fontes como os jornais da época. O acesso a eles começa a ser facilitado com a publicação fac-similada sob o título ‘Imprensa Operária no Amazonas’, organizada por Luiza Ugarte e Luís Balkar, com vários números do jornal ‘Gutenberg’ (1891-1892), ‘Operário’ (1892), ‘Confederação do Trabalho (1909), ‘A Lucta Social’ (1914 e 1924) e ‘O Constructor Civil’ (1920).
Aliás, foi o que fez a mestranda Fabiane Vinente, do curso Sociedade e Cultura da UFAM. Orientada pela professora Heloísa Lara, ela prepara uma dissertação intitulada ‘Entre damas polacas e caboclas: gênero e sexualidade em Manaus (1890-1910)’, a partir dos dados existentes nos jornais da época. Esse mesmo período vem sendo estudado por Geraldo Sá Peixoto Pinheiro, preocupado em dimensionar a ação da imprensa no processo de modernização da cidade de Manaus na ‘belle époque’ (1890-1914).
Se o ‘Pão Molhado’ não procurar essas fontes, é melhor renunciar ao papel de intelectual de esquerda e competir com o Constantino como taxista da Baixada. 

P.S. No ano passado o Banco do Brasil, o Itaú e o Bradesco, juntos, lucraram mais de 10 bilhões de reais. Na quinta-feira morreu de fome mais uma criança Kayowá, em Dourados. Hoje, completam 795 dias do Governo Lula, sem que tenha sido homologada a demarcação da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol, conforme promessa de campanha..
FOTOS DE INDIARA BESSA E DO BLOG DO HOLANDA

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1 Comentário(s)

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paulo roberto comentou:
06/10/2020
Desculpe, mas estou aproveitando-me desta crônica para pedir uma gentileza. Procuro por uma pessoa de nome Jocely (JosY), trabalhava no Dep. Pessoal lado direito da entrada. Voltei para o Rio de Janeiro e perdi os contatos. A minha empresa fazia manutenção telefõnica no predio. Alguns amigos que deixei por aì. Josy, Almir do RX, Moisés, etc. Por favor.
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