CRÔNICAS

Glória nas alturas

Em: 25 de Dezembro de 2005 Visualizações: 8286
Glória nas alturas

.Diga lá: anjo tem sexo, tem pulmão? Há controvérsias. Uma coisa, porém, é certa: anjo tem garganta, o que pode ser comprovado nas canções tradicionais de natal, chamadas pelos espanhóis de ‘villancicos’. Elas têm esse nome, porque eram cantadas pelos ‘villanos’, moradores humildes e simples de pequenas vilas. Nos ‘villancicos’, existe sempre um coro angelical soltando a voz. Num deles, bastante conhecido, anjos anunciam o nascimento de Jesus, entoando a plenos pulmões:

- “Gló-ooo-ooo-ria”.

O eco das montanhas repete o estribilho em latim, no mesmo tom:

- “In excelsis Deo”.

Existem versões desse ‘villancico’ em quase todas as línguas do mundo. Dizem que ele foi cantado pela primeira vez por camponeses da França, por isso, lá , os anjos são apresentados como cabocões do interior. Numa tradução em meados do séc. XIX, os ingleses deram aos anjos um perfil feminino e urbano. Na Espanha e em Portugal, eles ficaram assexuados. Na Itália, são escandalosos e distribuem “auguri di buon Natale” indiscriminadamente. Na Alemanha, mastigam pedra: “Laut erschallt das Gloria” . No alto Rio Negro (AM), cantam em língua tukano, prestando bem atenção: Bax´as-nãrã.

Hoje, dia de Natal, nas cidades da Europa, no interior da Ásia, em muitos países da África e até mesmo em várias aldeias indígenas da América Latina, povos de diferentes línguas e culturas, estão cantando seus ‘villancicos’, onde os anjos aparecem metendo o pé na jaca, entoando Glo-ooo-ooo-ria. Porém, numa casa do Beco da Indústria, no bairro de Aparecida, em Manaus, esse canto vai se prolongar por mais três dias, com outro sentido. É que no dia 28 de dezembro , Glória completará 75 anos de vida . É sobre ela que eu queria conversar hoje contigo, leitor (a).

O CANTO DO BRÍGIDO

Brígido Nogueira, um humilde alfaiate de Santarém, gostava de cantar ‘villancicos’. Tinha voz de tenor, com a qual gritava os bingos da quermesse da paróquia. Participava do coro do Apostolado da Oração da igreja de Aparecida com João Toledo, Zecafonso, João Dantas Cyrino e outros. Faziam contraponto com as irmãs Feitosa: Cleomar, Dagmar, Lucimar, Dulcimar e a mãe delas, a saudosa dona Rosa. Nos natais da paróquia e do bairro, além do jingobel, as músicas tradicionais de natal traziam alegria e beleza.

Um dia, Brígido conheceu uma menina de 16 anos, órfã de pai e mãe. Era Glória. Acostumado a cantar ‘villancicos’, com sua voz de tenor, cantou Glória, com ajuda dos anjos. Os dois se casaram em 1951 e, juntos, viveram uma relação amorosa exemplar que durou 35 anos. Quando ele se despediu da vida, a viúva ficou protegida pelo amor dos filhos e netos. Telefonei para um deles – o Dandão – pedindo detalhes demográficos. Demorou horas para responder. Pensei que estivesse contando um por um. Na verdade, seria impossível uma pessoa só realizar tal tarefa. Ele estava consultando o órgão responsável.

- “Segundo o último recenseamento do IBGE – disse Dandão – a mamãe teve 19 filhos dos quais 16 gerados no seu ventre e três adotados, sendo 12 mulheres e 7 homens. Todos casaram, tiveram filhos, e deram-lhe 46 netos e 9 bisnetos . Além disso, ela teve 17 irmãos . Esse é o balanço oficial do momento”.

Essa é a Glória. Maria da Glória Queiroz Nogueira, 75 anos, esposa, mãe, tia, avó, bisavó, irmã. Um dia, em Niterói, tive o prazer de acompanhá-la numa visita ao Museu de Arte Contemporânea, projetado por Oscar Niemeyer. O museu parece um disco voador, é uma gigantesca taça de concreto, embaixo do qual fica um espelho d' água, dando a impressão de que está levitando. Glória fez alguns comentários despretensiosos, mas tão interessantes e originais sobre o uso da água como ornamento, que me estimulou a pensar em outros lances que nunca havia pensado.

A GLÓRIA DOS FILHOS

Ela tem muita sabedoria acumulada, sensatez, raciocínio rápido e capacidade argumentativa, o que torna a conversa com ela muito agradável. Especialista em relações interpessoais, fala sobre relações amorosas entre marido e mulher, pai e filho, vizinhos. Com seus olhos vivos, inteligentes e sorridentes, discorre sobre fé, ética, beleza, tristeza, solidariedade, caridade, conflitos, doença, a morte e seus mistérios, o milagre da vida. Sempre aproveita lances da vida real. Em seu discurso, uma história envolvendo filhos, netos e vizinhos tem a mesma função da parábola no Evangelho, servem para ilustrar um princípio mais geral.

Como foi possível um alfaiate e uma dona de casa, pobres, conseguirem educar tantos filhos, todos eles profissionais bem sucedidos? Reproduzo aqui o que um deles – o já citado Mário Dandão – escreveu, discriminando os saberes acumulados por sua mãe.

Economia – Deu lições ao Delfim Neto. Com o salário do velho Brígido, realizou o verdadeiro milagre econômico. Nada de o bolo crescer para ser dividido, dividiu-o quando ainda era minúsculo. Aprendemos a compartilhar solidariamente o pirão.

Nutrição – A panela de comida era enorme, do tamanho daquelas usadas nos quartéis para abastecer a tropa. Se dependesse da D. Glória, o Sesc não faria o prato Brasil, pois não havia perdas, a sobra de hoje (quando raramente ocorria) virava o bolinho ou a torta de amanhã, com um cardápio variado e rico.

Saúde – Consultava o Dr. Contente em casos extremos, para não ser acusada de exercício ilegal da medicina. No geral, usava o melhor da medicina caseira. Minha casa foi um verdadeiro centro de referencia. Crescemos todos sadios, sem plano de saúde.

Meio Ambiente – A casa era pobre , mas limpa, muito limpa. As roupas eram humildes, mas limpas, sempre limpas.

Educação – Poderia assessorar qualquer secretário de educação sobre evasão escolar, nesta área deveria receber o título Doutor Honoris Causa da Sorbonne. Registrou-se apenas uma ou outra desistência e isso mesmo só ocorreu no 3º Grau.

Logística – Conseguiu com muita eficiência organizar, empacotar e distribuir um bando de malas que todos os dias iam para o trabalho e a escola, com turnos e horários variados, alguns deles usando a mesma farda e o mesmo sapato em turnos diferentes.

Direito – Incutiu em todos os filhos um forte sentimento de justiça. Sempre soube respeitar os outros, e é ainda hoje uma leoa na defesa dos próprios filhotes.

Recursos Humanos – Ela soube, como ninguém, motivar os filhos, otimizar o potencial de cada um e orientar para o seu melhor, além de ensinar o verdadeiro espírito coletivo de equipe.

Assistência Social – Silenciosa e discretamente, todas as terças-feiras, numa grande mesa colocada no quintal de sua casa, ela alimenta 30 a 40 meninos que trabalham na feira, fazendo carreto.

Essa é a Glória, minha irmã querida, a glória dos irmãos, dos filhos, dos genros, noras, netos e bisnetos, motivo de orgulho para todos nós, que com ela convivemos. Exemplo de resistência e de fé. Dia 28, os anjos certamente estarão cantando ‘villancicos’, acompanhados pela voz do Nogueira, colocando Glória nas alturas e, na terra, paz aos homens de boa vontade. A conversa com ela apazigua a gente. 

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1 Comentário(s)

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jailze corrêa comentou:
19/03/2012
é exatamente dessa pessoa que sentimos saudades, meu pai Nanoel Nogueira e minha mãe Rita. Estamos procurando email para contato com a família nogueira, já a muito tampo não contatada. Favor nos enviar contato com a tia Glória, estarei em Manaus dia 05/03 e gostaria muito de reve-los
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