CRÔNICAS

Os curumins de Portugal e a “língua brasileira”

Em: 14 de Novembro de 2021 Visualizações: 4959
Os curumins de Portugal e a “língua brasileira”

“Portugal e Brasil são dois países separados por uma língua comum”.

(Taquiprati parafraseando Bernard Shaw).

Os “míudos” de Portugal estão a falar (falando) “brasileiro”, o que está a assustar (assustando) pais e mães entrevistados pelo Diário de Notícias (DN) de Lisboa desta última quarta-feira (10). Eles informaram que as crianças se viciaram nos vídeos de youtubers brasileiros, com quem dialogam diariamente através de tablets, computador e “telemóvel” – já denominado de “celular” pelos “miúdos”, que viraram “curumins” e, no último fim de semana, pressionaram seus pais para ver ao vivo o espetáculo em Lisboa do criador de conteúdo Luccas Neto, com 36 milhões de seguidores, entre os quais milhares de portuguesinhos.

Com a quarentena imposta pela pandemia, as crianças ficaram expostas durante meses, por muitas horas do dia, a conteúdos produzidos no Brasil. Não deu outra. Os pais reclamam que seus filhos em idade pré-escolar estão a usar, perdão, usando palavras como grama, ônibus, bala, moça, cafezinho e geladeira no lugar de relva, autocarro, rebuçado, rapariga, bica e frigorífico. É como se uma mãe brasileira ouvisse seu filho pedir que lhe comprasse a “camisola” 7 do Cristiano Ronaldo, com a qual já fez muitos “golos” nos melhores “guarda-redes” do mundo.  O “gajo”, digo, o cara é muito bom.

No entanto, essas diferenças não se resumem a um conjunto de palavras. Afinal, o que significa “falar brasileiro”? Entoação? Sintaxe? Será um exagero pensar que essas interações eventuais possam impor uma norma gramatical, mas ao mesmo tempo trata-se de uma marca identificada como “influência”.  Normalmente, tais características da fala compartilhadas por um grupo têm elementos que mexem com a identidade e permitem revelar a origem dos seus falantes. É o que se reconhece como dialeto. Até agora são regionais, geracionais, sociais, de gênero.

Diversidade

- “Há várias línguas faladas em português” – disse em discurso na Academia Brasileira de Letras (ABL) José Saramago, o único escritor de língua portuguesa a receber o Prêmio Nobel de Literatura. Foi em 2008. Ele acrescentou que “essas línguas são, ao mesmo tempo, iguais e diferentes” e defendeu a diversidade, recomendando a união dos países lusófonos, mas sem eliminar a variedade

No entanto, não é assim que pensam alguns cidadãos do país ibérico, que se nomearam os “guardiões da língua portuguesa” considerada por eles como superior às variedades faladas nos países colonizados e que merece ser preservada e protegida de influências outras, com status diferenciado, o que é uma enorme bobagem. Isso equivale a dizer que o bacalhau é melhor do que o pirarucu ou vice-versa, ou versa-vice, tanto faz.

A preocupação dos portugueses com a fala “brasileira” de seus filhos, destacada pelo DN é uma preocupação legítima, se for tratada como defesa da diversidade, mas não assim se for apresentada como proteção da “pureza” do idioma. Há ainda a questão da comunicação, que deve ser discutida.

As dificuldades de entendimento não se limitam ao léxico, que está situado na estrutura superficial da língua, mas estão relacionadas à velocidade da fala, à qualidade vocálica e até à “perda” delas em alguns contextos da fala lusitana em oposição às vogais mais abertas do “brasileiro”. Uma coisa é a escrita, que está padronizada, outra é a fala. Trata-se de avaliar em que medida as variedades do português lusitano são assim tão diferentes, digo, “d´f´rentes” dos diversos dialetos falados no Brasil, a ponto de comprometer a comunicação.

Um vício?

Que o diga a saudosa linguista Yonne Leite (1935-2014), nascida no Ceará, pesquisadora de línguas indígenas. Ela contou que se hospedou num hotel em Estoril e ali lhe deram um quarto de fundos e não um dos que tinham varandas para o mar. Desceu imediatamente à recepção e pediu um quarto “de frente”, o recepcionista que escutou de acordo com os seus padrões respondeu que não havia quarto “d´f´rente”, todos eram iguais. O senso comum diria que “ele engoliu as vogais”.  

A família do Antônio, um seguidor de Luccas Neto, no início achava graça porque o “miúdo” de 4 anos de idade não conseguia mais dizer os r´s nem os l´s. Mas depois, quando as pessoas perguntaram se o pai ou a mãe do menino eram brasileiros, soou o sinal de alarme. A mãe, Alexandra Patriarca, que levou o filho para sessões de terapia da fala, se justificou:

- Neste momento estamos num processo de tratamento como se fosse um vício. Explicámos-lhe tudo, que ele não podia ver como isto o prejudicava. E já notamos que está muito melhor. O que tentamos fazer agora é brincar mais com ele, bloqueamos alguns conteúdos, deixando apenas a Netflix e tudo o que está registrado no português de Portugal.

A educadora Ana Sofia Alcobia disse ao DN que não se lembra de um momento tão desafiante como este, submetido a duplo impacto: os conteúdos da internet e o uso de máscara com efeitos ´desastrosos´ para a aquisição da linguagem por parte dos mais novos. Numa sala de aula com 22 meninos, um deles só falava em português do Brasil, “sem ter qualquer familiar brasileiro e sem nunca lá ter ido. Ele falava com sotaque e dizia todas as palavras tal e qual os vídeos a que assistia na internet”.

A professora de linguística Catarina Menezes, que coordena a licenciatura em comunicação e mídia em Lisboa, informou que quando era criança, havia o mesmo pânico com os livros do Tio Patinhas, que falava o português do Brasil. O mesmo quando apareceram as telenovelas da Globo exibidas na TV portuguesa. As consequências não foram nefastas. Ela concluiu que é necessário “desdramatizar um bocadinho os cenários”.

Com ela parece concordar o escritor e crítico literário Sérgio Rodrigues, autor de “Viva a Língua Brasileira”. Na quinta (11), em sua coluna na Folha SP, ele considerou “alarmismo e superficialidade na abordagem – como é habitual quando o jornalismo, espelhando o senso comum, trata de temas linguísticos”. De qualquer forma, nessa questão vale o que disse Bernard Shaw sobre a língua inglesa: “England and America are two countries separated by a common language".

P.S.1– O presidente da Academia Brasileira de Letras, Marco Lucchesi, passou esse fim de semana em Manaus, quando foi recebido por Tenório Telles (Concultura) e Alonso Oliveira (Manauscult). Visitou o Centro Histórico e a Mostra de Arte Indígena de Manaus e conheceu de perto a obra de vários artistas: Ivan Tukano, Tuniel Aweté,  Kawena Maricaua. Reuniu-se ainda com lideranças indígenas e escritores amazonenses, entre eles João Paulo Barreto, doutor em antropologia. Na gestão de Lucchesi, a ABL promoveu um projeto de bibliotecas comunitárias, inclusive em áreas indígenas. O presidente da ABL vai em seguida visitar  Novo Airão, no Rio Negro. 

 

P.S.2 – O tema da gloto diversidade está no radar da ONU que decretou 2022 a 2032 como a Década Internacional das Línguas Indígenas. No Brasil foi elaborado um Plano de Ação Nacional para a década com a abertura de três frentes: 1) Línguas Indígenas e oralidade; 2) A variedade do português indígena: 3) Língua de Sinais indígena, como informou Sâmela Meirelles (UNIFAP) num evento na quinta (11) que contou com a participação de Héctor Muñoz (Universidade Autônoma do México), de Anari Bonfim (PPGAS/MN – UFRJ) e deste locutor que vos fala.

Referências:

Sérgio Rodrigues. ´Miúdos´ que falam ´brasileiro´ em Portugal. Folha de SP. 11 de novembro de 2021.

Paula Sofia Luz. Há crianças portuguesas que só falam ´brasileiro´. Diário de Notícias. Lisboa. 10 de novembro de 2021

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19 Comentário(s)

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Anne-Marie Milon Oliveira comentou:
18/11/2021
Maravilhoso! O colonizador colonizado. Um pouco o mesmo que acontece na França, em Paris onde estou agora. No ônibus, no metrô ouço muito curiosas conversações onde lingas africanas se misturam com o francês. e isso me tranquiliza muito quanto ao "franglês" que domina aos poucos a midial. Um exemplo: "defi" (desafio) é uma palavra que está ficando em desuso. O que mais se ouve é: "challenge". Muito mais "on"!
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Pedro Oliveira comentou:
17/11/2021
eles nao estao a gostar a ver seus miudos a gerundiar
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Nilda Alves comentou:
15/11/2021
Gostei da crônica. Mas a preocupação com Luccas Neto é muito maior > atualmente é o maior vendedor de produtos do Brasil, transformando nossas crianças e grandes consumistas. Grande abraço Nilda
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Gerusa Pontes de Moura comentou:
14/11/2021
Sensacional!!! Não sei onde está essa superioridade que os lusitanos apontam em preservar seu idioma . Eu sei é que cada vez mais o mundo se mistura numa velocidade cada vez maior, viva a diversidade!!!
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FELIPE JOSE LINDOSO comentou:
14/11/2021
Babá, nos idos de 2013 atrevi-me a escrever um artigo no meu blog "O Xis do Problema" sobre a irrelevância do assunto. Táquiprati e quem quiser se divertir com a quantidade de comentários, inclusives de portugueses que por cá viviam ou viveram. Teve até gente em Portugal que achou que eu defendia a formalização do desacordo ortográfico! Na verdade, como se pode ler, o que ressaltava era a irrelevância do tal para que se alcançassem os objetivos propostos. Nunca mais me meto a escrever sobre isso e concordo totalmente com a glosa do Shaw, e com o que disse o poeta da Vila Isabel, com o que encerrei meu palpite na época. http://oxisdoproblema.com.br/?p=1557
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Décio Adams comentou:
14/11/2021
Ótima crônica, amigo José Ribamar B. Freire. A ‘internet’ veio para unir e creio que de nada adianta espernear contra as influências que disso resultam, especialmente entre os países que falam uma língua "aparentemente" igual, pelo menos na sua forma escrita. Poderíamos olhar para as influências que os filmes, músicas e tantas coisas que vem pelas redes sociais, influenciando o linguajar de nosso povo, não apenas os pequenos. Quantos termos, para os quais existem sinônimos em nosso bom e velho português, mas foram substituídos pelos seus equivalentes ou similares ingleses, com alguma adaptação. Vou citar apenas uns poucos mais comuns: Deletar (apagar), Printar (copiar a tela), dar boot (ligar), checar (conferir, revisar) e tantos outros. Quem pensa que isso ocorre apenas no português, está redondamente enganado. Estou estudando alemão, inglês, e francês no momento. É espantoso o número de termos ingleses incorporados ao alemão, ao inglês, ao italiano (que estudei meses atrás), ao espanhol igualmente. Vejo que paulatinamente caminhamos para uma língua mais universal, onde as palavras para a comunicação básica serão facilmente compreensíveis em toda parte. O sentido inverso também existe. Basta ver a infinidade de termos de raiz latina que existem no alemão, no inglês e outros idiomas falados nos países nórdicos. Quando comecei a estudar essas línguas “online”, comecei a perceber que existem muito mais semelhanças entre as línguas do que normalmente suspeitamos. Não posso encarar esse fenômeno abordado na crônica como algo de per si maléfica. A linguagem tem como principal finalidade a comunicação entre as pessoas e não servir de barreira isolacionista entre elas. Portanto, quanto mais ela facilitar os relacionamentos entre os seres humanos, mais ela cumpre a sua finalidade primeira.
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Guaiguî Mbyá comentou:
14/11/2021
Nem me alarmo! A minha filha aqui em Porto Alegre tá falando "Oxe!" igual ao que imigrantes nordestinos implantaram no dialeto dos youtubers de São Paulo! Isso sem falar num pouquinho de sotaque caipira embolando uns r's no meio da frase também.
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Rodrigo Martins Chagas comentou:
14/11/2021
Excelente crônica professor como sempre. Nunca imaginei que a reparação histórica seria liderada pelo Youtuber Lucas Neto, chegou o nosso momento rs Um abraço querido professor PS: o webminar foi bom, que não teve a oportunidade de assistir, segue o link: https://youtu.be/lSZRi8vAGho
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Cláudio Nogueira comentou:
14/11/2021
Aqui em Portugal, uma vez eu perguntei a uma pessoa: você está na bicha ? Ela respondeu: Sim estou na fila. Entendeu bicha, mas respondeu fila. Repeti a mesma pergunta em outra ocasião e obtive a mesma resposta. Aí perguntei de um amigo português se mudou. Ele disse que sim, porque bicha é gay. A influência do linguajar das novelas brasileiras é grande. Eles agora falam boléia ou carona. Para diferenciar, eles não dizem que falamos português brasileiro; eles dizem que falamos brasileiro.
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Welton Diego Lavareda comentou:
14/11/2021
Belo texto,meu amigo. Grande abraço
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Ligia Aquino comentou:
14/11/2021
Mais um bom texto, problematização e discussão. Necessário debate nas licenciaturas.
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Marcus Maia comentou:
14/11/2021
Muito bom! Não sabia do “de frente” da Yonne, que foi minha orientadora no mestrado, interessante!
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Farney Tourinho De Souza Omágua Kambeba comentou:
14/11/2021
É o Brasil Invadindo Portugal! Que seja com Bons Conteúdos.
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Celeste Correa (retornando) comentou:
14/11/2021
Krenak como escrivão é a certeza de que a história será contada a partir do colonizado. Para ser mais fiel às nossas origens, ele poderia assumir o lugar do Frei Henrique Soares, invocando Nhanderu para reconhecer e legitimar os verdadeiros donos da Terra.rs
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Celeste Correa comentou:
14/11/2021
Mano, não tenho nenhum conhecimento mais apurado sobre o estudo da língua e suas funções, mas mesmo assim ouso comentar. Quero dialogar contigo as minhas dúvidas. Eu creio que o conteúdo da internet seja um enorme desafio para os pais( portugueses e do do mundo todo) que precisam cada vez mais ficar atentos para filtrar e orientar os filhos sobre o que lêem e para as informações que chegam até eles. E também para a educação formal que precisa ser repensada para se adequar aos novos tempos e às novas tecnologias. Mas eu sinto um pouco uma visão colonialista dos pais portugueses. Não vejo esse tipo de comentário sobre os inúmeros enlatados americanos que há anos entram nas casas do mundo inteiro através da televisão massificando e impondo a sua cultura para o mundo todo. É verdade que o Brasil não anda sendo boa referência nesses tempos em que o presidente fala horrores nas redes sociais que envergonham até nós, brasileiros, e talvez isso tenha influenciado essa preocupação. Mas, confesso que eu prefiro concordar com a professora de linguística Catarina Menezes. Também acho que é necessário “desdramatizar um bocadinho os cenários”.
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Paulinho Kokay comentou:
14/11/2021
Estou aqui em Lisboa e li a crônica. É impressionante a presença de brasileiros morando e trabalhando aqui, em todos os lugares, restaurantes, lojas. Por isso, a cultura brasileira (em particular a música) está muito presente. Eles nos deram espelhinhos quando chegaram aí. Agora, estamos invadindo aqui trazendo a cultura brasileira. É um fenômeno bem interessante.
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Ailton Krenak comentou:
14/11/2021
Bom domingo, amigo Bessa. Um dia agente ainda coloniza Portugal.
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Taquiprati comentou:
14/11/2021
Investido dos poderes que me foram conferidos pelo Bairro de Aparecida, em Manaus, bem como pelas minhas nove irmãs, nomeio o meu querido amigo Ailton Krenak o escrivão da frota no desembarque que faremos em Portugal. Assinado: Taquiprati
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