CRÔNICAS

Maradona e o voto nulo

Em: 29 de Novembro de 2020 Visualizações: 4942
Maradona e o voto nulo

“Sei em quem não quero votar, mas não vejo na urna eletrônica o nome daquele em quem quero votar.  Impotente, me pergunto: o que fazer?” (Dermilson Paixão, o Farofa, 2020). 

De que maneira a morte do Maradona, que comoveu o planeta, inspirou esta crônica sobre o voto nulo? Foi assim. A coluna deste domingo (29) era sobre o craque argentino e já havia sido iniciada quando, de repente, um anagrama nos levou a Dona Mara, moradora do beco da Escola. Uma ideia puxa outra. Dona Mara, já falecida, nos fez lembrar seu sobrinho Dermilson Paixão, o Farofa, que vota na gloriosa 41ª Seção da 2ª Zona Eleitoral do Grupo Escolar Cônego Azevedo, bairro de Aparecida, em Manaus. Foi este passo dado em um beco estreito que nos fez mudar de rumo.

Ínvios são os caminhos do Senhor – como sabe muito bem o bispo Marcelo Crivella, o que exige explicação prévia. Embora a filosofia não seja bem minha praia, é sempre de bom tom citar um filósofo qualquer para justificar mudança tão brusca e inopinada. Por isso, me ancoro no pensador escocês do séc. XVIII, David Hume, autor do Tratado da Natureza Humana, cujos trechos li há tempos para complementar uma aula. Confesso que sua leitura deu um nó na minha cachola, ficou apenas vaga lembrança da relação da linguagem com a ‘conexão de ideias’.

O pensamento não tem limites e nem aceita grilhões que o aprisionem. Emoções despertadas por um tema pulam para outro com o qual não possuem aparente afinidade – escreve Hume ou pelo menos foi isso que entendi. Dizem as más línguas que uma única célula nervosa realiza mais de mil sinapses. Suspeito que foi nesse espaço sináptico que Maradona, Dona Mara, Farofa e o voto nulo se cruzaram.

O Farofa

Após essa digressão quase convincente que pode impressionar eventuais leitores incautos, resta-nos abordar o voto nulo, indagando: em quem votarão os Farofas que escolherão no segundo turno prefeitos de 57 cidades brasileiras, das quais 18 são capitais?   

Dermilson Farofa, 73 anos, bem que gostaria de votar em São Paulo, Belém, Porto Alegre, Recife, Vitória ou Juiz de Fora, onde candidatos com forte preocupação social querem transformar e melhorar a cidade. Mas o seu título eleitoral é de Manaus. Lá e no Rio de Janeiro, eleitores hesitantes manifestam tendência para anular o voto. Dermilson me telefonou para expor seu drama, falando como se tivesse a boca cheia de farofa, daí o apelido. Ele tinha apenas 15 anos, quando presenciou Zeca Pinto e Severino Pão Duro, cabo eleitoral de Paulo Nery (UDN), se engalfinharem, saindo na porrada por divergências sobre o voto nulo. Vem daí o trauma.

Agora, nas redes sociais, Dermilson Farofa é metralhado com velhos argumentos de 1962 similares aos do jornal O Trabalhista de Plinio Coelho (PTB), o governador então eleito. Empanzinados de furor cívico e de terrorismo sufragista, os “espertinhos” advertem: “Se você votar nulo, quem se anula é você, depois não pode reclamar pela omissão”. O farfalhudo ministro Marco Aurélio Mello, do STF, com voz pomposa e esnobe, repete a ladainha: “o voto nulo é um erro, é o avestruz que enfia a cabeça no buraco durante a tempestade”. Outros concordam, garantindo que tal conduta não tem qualquer impacto sobre o sistema. Será?

O pobre Farofa está sendo acusado, nem sempre de forma civilizada, de ser “negativista”, de lavar as mãos ao abdicar do direito de decidir. Incomodado, ele quer sabe o que penso, logo eu que decididamente não sou a pessoa mais indicada, considerando minha história de erros sucessivos na militância política.

Não sei bem o que dizer, mas não me omito de dar uma força ao meu amigo de infância. Digo-lhe que, ao contrário do que apregoam tais arautos “positivistas”, o voto nulo nem sempre significa omissão. Em determinado contexto, pode ser uma ação afirmativa, positiva, uma tomada de posição diante da falta de opção.   

Supunhetemos

Lembrei ao Farofa uma conversa, em 1998, com meu amigo Miguel Baldez, ex-procurador do Estado do Rio. No segundo turno, sobraram Garotinho e Cesar Maia. Decidi votar naquele que considerava o “menos pior”, enquanto Baldez pregava o voto nulo. Eleito, Garotinho começou uma série de desmandos, com a justificativa de que havia recebido uma enxurrada de votos (incluindo o meu), que o haviam fortalecido e legitimado. Menos de um ano depois, encontrei o aguerrido Baldez nos corredores da Uerj e, arrependido, lhe pedi desculpas, dizendo que a razão estava com ele. Ambos candidatos se equivaliam.  

O voto nulo – dizia Baldez, autor de artigos sobre o direito insurgente – pode ser a voz dos descontentes com o sistema, tentando se mobilizar, num processo para deslegitimar os dois candidatos. Não é um ato de indignação individual, mas uma manifestação coletiva. É um ato consciente de inconformismo, de insurgência, de rebeldia, anunciando que outra política é possível. 

O que queremos dizer com o voto nulo? Supunhetemos que, numa avaliação política, nenhum dos dois candidatos presta para dirigir a cidade, que ambos não têm qualquer compromisso com a democracia, com os direitos humanos, com a justiça social, não formularam propostas viáveis para enfrentar os problemas que afligem a população urbana e têm a ficha suja. Cabe, então, o voto nulo, o direito a nos insurgirmos contra uma situação de opressão.

Votar nulo não é anular o meu direito de participar, ao contrário, participo manifestando o meu profundo descontentamento com um sistema que permite colocar num segundo turno – imaginemos – Donald Trump e Jair Bolsonaro. Quem você escolheria nesse caso? Seis ou meia dúzia?  Dizer que não queremos nenhum dos dois biltres não é se anular. É julgar que nulos são eles.

Vixe vixe

O Farofa, eleitor na capital amazonense, onde está enterrado meu cordão umbilical, vai votar nulo, apesar do “terrorismo sufragista” das redes sociais que o acusa de “omisso” e pretende calá-lo, assegurando que, por “lavar as mãos”, ele não pode reclamar depois. Mas é justamente o contrário, quem não pode reclamar do Garotinho sou eu que votei nele. Até que posso, mas sem a força do Baldez, que votou nulo.

No Amazonas, entre Amazonino Mendes (Phodemos, vixe vixe) e David Almeida (Avante, vixe vixe), a escolha é entre o Capiroto e o Capeta. Neste caso o voto nulo, se for massivo, manda um recado: “Seus votos foram inexpressivos, você não tem o nosso apoio, estamos de olho em ti”. O direito de votar implica o direito de vetar.

E no Rio? O que fazer entre Eduardo Paes (DEMo vixe vixe) e o satanás Marcelo Crivella (Republicanos vixe deusmelivre)? Acompanhei debate saudável nas redes sociais entre alguns colegas da Uerj, com sólidos argumentos dos dois lados.

Lígia Aquino vai tapar o nariz e votar contra o Estado Teocrático, contra o conservadorismo tacanho e burro, a LGBTfobia, a máquina de fake news, o falso profeta, a incompetência administrativa, o pseudo moralismo. Ana Mignot concorda por achar que é a hora de varrer do mapa da política esses bispos metidos a ungidos de Deus. Já José Carlos Lima de Souza vota nulo, mas afirma que apesar das divergências, temos uma certeza: estaremos todos juntos no terceiro turno que começa no dia 30 de novembro de 2020.  

Assisti o debate televisivo nesta sexta-feira (27) e admito que o bispo bolsonarista, aliado da familícia, com seu discurso escabroso, quase me convence a votar, por exclusão, no seu opositor, o que certamente faria se estivessem empatados. Como não é o caso, da mesma forma que muitos eleitores cariocas, opto por votar no saudoso Macaco Tião.

P.S. -  Ao genial Maradona e à Dona Mara, nossos agradecimentos por nos conduzir até o Farofa, que não me deixa mentir. Ou deixa?

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16 Comentário(s)

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RUBENS AGUIAR comentou:
14/12/2020
Democracia é, por definição, o governo do povo. Eu pergunto: Quem é dentre TODOS os políticos eleitos, que realmente nos representa? Qual deles recebe salário mínimo? Qual deles tem seu final de semana descontado se falta ao trabalho? Qual deles se aposenta pelo INSS? Qual deles é julgado pela justiça comum? Se a resposta para pelo menos uma destas perguntas é NENHUM, NÃO ESTAMOS NUMA DEMOCRACIA e as eleições nada mais são do que assinar um contrato aceitando a desigualdade. Por isso, voto NULO há mais de 20 anos. Ao anular meu voto, deixo de aceitar e reconhecer a autoridade dos eleitos. Meus filhos não merecem ter que pagar a aposentadoria dos vagabundos que eu elegi. Os índios dos EUA conseguiram resumir em poucas palavras o que é a FARSA que chamamos de democracia. Quando os dois candidatos a presidente pediram que todos votassem, alegando que "o voto é sagrado", os índios lançaram um manifesto que se inicia com esta frase: "O que pode haver de sagrado em escolher alguém que vai te oprimir?"
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Rodrigo Martins comentou:
05/12/2020
Boa tarde professor Bessa, tudo bem? Realmente professor, aqui no rio de janeiro não tínhamos opções de qualidade rs, mas acho que só o fato do Crivella não ter vencido, foi uma alegria rs. Isso mostra a rejeição pelo péssimo trabalho que ele realizou. Um abraço querido professor.
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Maria Conceição Silva comentou:
03/12/2020
Todos sabíamos que as trevas nos cercavam, porém a escolha de Paes ao invés de Crivella foi para afastar a Inquisição 2 que parecia eminente... Não elegemos um prefeito, elegemos uma possibilidade de tomar fôlego, tal qual um afogado...
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Ligia Aquino (via FB) comentou:
03/12/2020
Eu votei no Paes, não tendo a ilusão de que é antibolsonaristas, mas foi um voto anticrivella e contra as forças ultra conservadoras e a teocracia que vem se instalando no país. Paes está com os Maia e fará mais do mesmo que essa centro direita faz. Paes é um neoliberal, privatista e um fisiológico. Não tenho ilusões
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Taquiprati comentou:
03/12/2020
José Bessa è isso.. Votar no Paes é um modo de ESCOLHER O ADVERSÁRIO.
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Décio Adams,IWA comentou:
02/12/2020
Mais uma vez parabéns, Bessa. Fazer uma "ponte" de palavras entre fatos e ocorrências tão distantes fisicamente e até mesmo no tempo, é uma arte que raramente encontramos. Você faz isso com maestria incomparável. Sinceramente não havia ainda analisado a questão do voto nulo sob esse prisma e sou obrigado a concordar com sua conclusão, emprestada de seu colega professor. Embora não influencie o resultado da eleição, uma vez que não são computados como votos válidos, a existência de um número expressivo deles indica aos eleitos que não são bem vistos por tanta gente quanto gostariam de ser. Se forem meramente perspicazes, irão meditar sobre isso e talvez tenham a oportunidade de dar novo rumo aos seus mandatos, o que viria a beneficiar o povo em geral. Uma vez posto no cargo, deve preocupar-se em governar para todos e não apenas para seus eleitores. É assim que eu sempre via a política, porém, nos últimos anos estamos vendo um desmando após o outro. O que importa é fazer o que os partidários desejam. Compartilhei no meu perfil, como aliás venho fazendo a longo tempo.
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Eneida Simões da Fonseca comentou:
30/11/2020
Não votei nulo porque, não confiando no que é divulgado pela mídia, poderia dar no que deu em 2018. Assim, acabei por me arrepender de ter votado no DEMo vixe vixe vendo a farta maioria que obteve sobre o deusmelivre. Teria ficado mais satisfeita engrossando o grupo dos nulos porque, como vc diz, estaria, de fato dizendo que ambos não me satisfazem como eleitora e cidadã. Grata ~por mais essa rica lição. Siga se cuidando contra COVID-19. Saudades! Saudações UERJianas!
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Ana Silva comentou:
30/11/2020
Voto nulo é necessário quando não há opções. O Baldez estava certo! Bom discutir esse tema aqui nesse espaço nosso de toda semana.
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Ivânia Neves (via FB) comentou:
28/11/2020
Estamos vivendo em Belem um momento de esperança! Manaus vive um momento triste. Já no Rio, ainda que seja dessa forma, varrer o Crivela dá um alívio!
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FelipeLindoso comentou:
28/11/2020
Como voto em S. Paulo, amanhã vou votar no Boulos, e fico com pena de meus conterrâneos. Vamos desvairar de vez a paulicéia.
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Fátima Lobato comentou:
28/11/2020
Bessa Querido, boa tarde. Gostei muito da ideia do Erick Nepomuceno !!! Acho complicado o voto nulo com o que Crivella representa!! Essa igreja universal é algo que teremos que enfrentar!!! Por isso, não vou anular. Vou votar contra Crivella e Bolsonaro. Erick Nepomuceno: A alegria de votar contra https://www.brasil247.com/blog/a-alegria-de-votar-contra?amp#.X8FCcSqtVpo.whatsapp
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Astrid Lima comentou:
28/11/2020
: Ribamar, antes eu pensava que fosse uma minha característica essa de criar analogias impossíveis mas quanto mais leio os teus taquiprati mais acredito que a Aparecida deve tem a sua responsabilidade Agora, falando sério, isso é o resultado do sincretismo brasileiro Mais que analogias, são parenteses dentro de parenteses, Quando eu pulo de um argumento para outro (e na minha cabeça é perfeitamente sensato) ele morre. problema é quando a gente se perde kkkkkkk. O que acontece com frequência, Precisaríamos de um fio de Ariadne para nos ajudar a sair desses labirintos de parenteses
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Celeste Correa comentou:
28/11/2020
eu me lembro muito dessa eleição entre Cesar Maia e Garotinho, porque nesse ano eu estava com um conflito parecido com o teu, e ao conversarmos, tu usaste comigo esse argumento do menos pior. Hoje, mesmo sem ter tido a contribuição do Baldez, eu penso que o voto nulo tem um peso grande, que é o voto da insatisfação e da não compactuação com a canalhice.Felizmente, depois de muito tempo, amanhã eu vou votar com tranquilidade pois a minha candidata, ex reitora da UFJF e atual Deputada federal é uma pessoa super democrática, competente, séria e altamente comprometida com a questão social coletiva. No entanto, se estivesse em Manaus eu faria igual ao Farofa. Eu não passo procuração pra bandido. Em homenagem ao grande Maradona, votar nulo em Manaus será uma forma de reverenciar a sua história e a sua sempre coragem de tomar partido e escolher seu lado .
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Elaisa Freire M. comentou:
28/11/2020
comungo das tuas ideias, mas é inevitável que um vá. No Amazonino nunca votei e, da mesma forma, vai se aliar ao Bozo. Vejo esse David como o Wilson cassado, um cara que se apresenta como "novo" mas pode aprontar todas. Não sei se meu voto nulo elegendo tio Zozô vai me deixar em paz. Dilema ético. Tô pensando
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Ricardo Lethinha comentou:
28/11/2020
Aqui em casa todos vão anular. O AmaZonino, não dá, porque a gente já o conhece de longas datas. O outro é tão ruim ou pior que ele. É um evangélico que apoia Bolsonaro incondicionalmente. Esses grupos evangélicos são uns canalhas que usam a religião para se beneficiarem. Se o David ganhar, o Bozo vai sair fortalecido em Manaus para as próximas eleições presidenciais. O apoio dele ao Bozo é ideologico. Por isso, estamos com Zé Ricardo defendendo o voto nulo, que também é uma forma de marcar posição.É a manifestação da consciência. Os dois são bandidos e apoiaram o Bolsonaro. A diferença é que o AmaZonino apoiou por conveniência porque queria se eleger governador na onda Bolsonaro. O outro apoiou porque os evangélicos tem um projeto para dominar o Brasil destruindo os valores verdadeiramente cristão de amor aos oprimidos homossexuais, negros e pobres.
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Jose Carlos Lima de Souza comentou:
28/11/2020
Companheiro Bessa, essa semana fui acusado exatamente disso por uma companheira da EDU. Eu votarei nulo amanhã no Rio por absoluta clareza de que o voto útil é um tiro no pé que a esquerda está dando no Rio de Janeiro, uma vez que não há a menor diferença amanhã quanto ao vencedor tanto para trabalhadores quanto para funcionários públicos. Gostei demais desta publicação. Parabenizo a ti por tê-la publicado!!! Detalhe: não sou cético em termos metodológicos como o Hume!!!
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