CRÔNICAS

Hélio Jaguaribe não acha a Amazônia perdida

Em: 25 de Fevereiro de 2007 Visualizações: 10030
Hélio Jaguaribe não acha a Amazônia perdida
“No puede Oviedo decir cosa chica ni grande, porque no fué digno de lo ver ni de lo entender” (Bartolomé de Las Casas, Historia de las Indias, T. V, p.116).
Nessa segunda-feira de carnaval, milhões de foliões, despreocupados com os destinos da pátria, caíram irresponsavelmente no samba, enquanto um patriota permanecia alerta e vigilante. Seu nome: Hélio Jaguaribe, o HJ. Ele não sambou. Ficou de prontidão, como sentinela da nacionalidade na guarita do Rei Momo. Graças ao seu plantão cívico descobriu, estarrecido, que estão roubando a Amazônia do Brasil. Escreveu, então, um artigo denunciando os larápios, com dicas de como recuperar o patrimônio subtraído.
“A perda da Amazônia”, publicado segunda-feira na Folha de São Paulo, identifica o tamanho do roubo. De saída, apresenta o inventário hiper-conhecido das riquezas da região: a maior floresta tropical, a maior bacia hidrográfica e a maior biodiversidade do mundo, reservas gigantescas de ferro, bauxita, cassiterita, urânio, diamante e outros minerais. Todas essas riquezas – segundo HJ – estão passando por um processo de “acelerada desnacionalização”.
Quem são os agentes desse processo? Como atuam? É preciso ter muita coragem para dar nome aos bois. Jaguaribe tem. Para ele, o Brasil está perdendo a Amazônia porque foram feitas - quem diria! - “insensatas concessões de áreas gigantescas a uma ínfima população de algo como 200 mil índios”, que se tornaram donos de “cerca de 13% do território nacional”. Desassombrado, ele acusa os índios sem medo de pegar, em represália, uma flechada na bunda, envenenada com curare.
O dedão dos gringos

Parece de um primarismo atroz, mas é isso mesmo que você leu: a culpa é dos índios. Segundo HJ, eles são demograficamente inexpressivos, não possuem armas, nem exércitos, mas são política e economicamente fortes, porque abocanham 13% do território nacional, têm uma “lucrativa profissão com contas em Nova York e telefone celular”, além de poderosos aliados: as Ongs, as Igrejas e os norte-americanos.
Na Amazônia, mais de cem Ongs – diz Jaguaribe – escondem atividades reprováveis “sob a aparência de pesquisas científicas”. Já a Igreja Católica “atua como ingênua protetora dos indígenas”, facilitando “indesejáveis penetrações estrangeiras”. Quanto às igrejas protestantes, seus “pastores improvisados são concomitantemente empresários por conta própria ou a serviço de grandes companhias”.
HJ generaliza com extrema facilidade, sem citar fontes. Não hesita em recorrer a desgastados chavões da direita nacionalistóide, quando revela as estratégias para decepar a Amazônia e criar dentro dela várias pátrias: “O objetivo que se tem em vista é o de criar condições para a formação de ´nações indígenas´ e proclamar, subsequentemente, sua independência com o apoio americano”. Portanto, embora não diga em que consiste esse “apoio americano”, fica claro que por trás de tudo está o dedão dos Estados Unidos.
Diante de acusação tão grave, os leitores esperavam que HJ fosse conseqüente e propusesse medidas para afirmar a soberania nacional, tais como: a criação de mecanismos para fiscalizar as Ongs e as Igrejas, a modernização do Exército brasileiro, a organização e mobilização popular contra o imperialismo americano, a expulsão das multinacionais que desrespeitam as leis brasileiras, o protesto do Brasil na ONU, um pedido de esclarecimento ao Governo Bush e, se necessário, o rompimento de relações diplomáticas com os Estados Unidos.
Mas nenhuma medida dessas foi pensada por HJ. Ele é bonzinho com os americanos e com os empresários, com quem fala fino. A bronca dele é com os índios, com quem engrossa a voz. No Brasil de HJ, não há lugar para o que ele denomina de “culturas paleolíticas ou mesolíticas no âmbito de um país moderno”. Por isso, a única solução que apresenta é anular as “concessões gigantescas” de terras indígenas e reduzi-las “a proporções incomparavelmente mais restritas”. Se HJ teme efetivamente a perda da Amazônia com “apoio americano” e, apesar disso, faz carinho aos gringos, é porque nem ele mesmo acredita no que diz. Ou então não é o patriota que pretende ser.
Sua proposta, na realidade, pretende liberar as terras indígenas para o agro-negócio. Jaguaribe se entrega quando, entusiasmado, faz seus cálculos: “O dendê, nativo da Amazônia e nela facilmente cultivável, constitui uma das maiores reservas potenciais de biodiesel. Em apenas 7 milhões de hectares, numa região com 5 milhões de km², é possível produzir 8 milhões de barris de biodiesel por dia, correspondentes à totalidade da produção de petróleo da Arábia Saudita”. Ou seja, sem índios, é possível transformar a Amazônia num gigantesco dendezal. Fica claro que a defesa da Amazônia aqui é apenas um pretexto para justificar a ocupação das terras indígenas.
O perfil de HJ
Quem é, afinal, o autor de tal proposta, em que fontes se baseia e de que lugar está falando? Hélio Jaguaribe, 83 anos, formou-se em direito pela PUC do Rio de Janeiro, lecionou em três universidades norte-americanas e nas Faculdades Integradas Cândido Mendes. Publicou no Brasil e no exterior 33 livros e dezenas de artigos, entre os quais um sugestivamente intitulado “A história é implacável com os estúpidos”. É o que Gramsci chamaria de um “intelectual orgânico”.
Como é que um moço prendado, culto e com tanto prestígio, membro da Academia Brasileira de Letras, pode ser tão ignorante e dizer tanta besteira quando fala de índios? Acontece que HJ nunca colocou os pés numa aldeia, não fez qualquer pesquisa de campo, e os seus livros não trazem sequer uma palavra sobre o assunto, até porque essa não é sua área de conhecimento. Está encantado com a biodiversidade da Amazônia e nem sequer suspeita que grande parte dela foi construída pelas culturas indígenas. Não tem legitimidade, nem autoridade e nem humildade científica para tratar do tema.
Ele podia ter consultado a vasta bibliografia etnográfica para não pagar o mico de achar que as sociedades indígenas são “culturas paleolíticas”, “atrasadas” e “obstáculos à modernidade”. Escreve sobre os índios, que não pesquisou, cometendo a proeza de não citar sequer um só dos tantos estudos existentes nesse campo. Por isso, não entende o significado do uso da tecnologia, como o telefone celular, e acaba sendo desrespeitoso, leviano e impreciso, quando insinua que os índios têm conta bancária em Nova York, sem citar o nome de nenhum deles.
O jornal THE GLOBE publicou no dia 5 de maio de 2002 uma matéria com chamada na primeira página, jurando que onze caciques já teriam juntos 2 bilhões de dólares. Está escrito lá. Não houve desmentido. O Globo acha que seus leitores são débeis mentais. HJ embarcou nesse tipo de "informação". 
Baseado apenas em relatórios da Agência Brasileira de Inteligência /ABIN, Jaguaribe desdenha as fontes etno-históricas. Dessa forma, ignora o processo histórico, quando considera impropriamente as terras indígenas como “concessões” feitas aos índios, como uma dádiva, e não como o reconhecimento, pela Constituição brasileira, de um direito e de uma situação existente antes mesmo da formação do Estado nacional. Ninguém “deu” terras aos índios. O legislador apenas reconheceu a terra deles. Seu pai, o general Francisco Jaguaribe de Mattos sabia muito bem disso, pois foi – quanta ironia! – cartógrafo da Comissão Rondon.
Professor ou empresário?
A imprecisão e a leviandade de HJ se refletem até na forma com que ignora os dados oficiais e se apoia em "notícias fake".  No seu afã de diminuir o tamanho das terras indígenas, reduz a população a “algo como 200 mil índios”, quando uma simples consulta ao Censo de 2000 realizado pelo IBGE mostraria a existência de 734.127 indivíduos, metade dos quais vivendo em aldeias. Numa conferência na Escola Superior de Guerra, em 1992, Jaguaribe profetizou que no ano 2000 não haveria mais índios no Brasil, o que motivou um comentário do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro - "Engraçado! Os índios acham que no ano 2000 quem não existirá mais é o Jaguaribe".
Pouco se conhece da atuação empresarial e partidária de HJ. Numa entrevista a Kumasaka e Barros, ele contou como criou, em 1953, uma empresa privada, a Cia. Ferro e Aço de Vitória, que presidiu por uma década. Depois foi viver nos Estados Unidos. De regresso, fundou uma empresa multinacional latinoamericana, que comercializa equipamentos, a LATINEEQUIP. Os dois empreendimentos contaram com recursos de bancos públicos: o primeiro com apoio de Getúlio Vargas, o segundo, do Banespa.
Presidente de um banco de investimento, HJ diz que é obrigado a realizar outras atividades, porque aqui no Brasil “é impossível ou quase impossível se viver do salário de professor universitário”. Na entrevista citada, ele confessa que fica estressado com essa situação de ser “empresário o dia todo, e de noite, intelectual”. Serviu ainda ao governo Sarney, que encomendou dele o Projeto Brasil, e ao governo Collor, do qual foi Secretário da Ciência e Tecnologia, sendo obrigado, para isso, a renunciar aos cargos partidários que tinha no PSDB, partido que ajudou a fundar.
Talvez seja oportuno concluir, lembrando aqui dois renomados espanhóis do século XVI, que registraram em livro sua experiência na América. O primeiro deles, Gonzalo Fernández de Oviedo y Valdez, foi prefeito de Santo Domingo, cronista do rei e autor da ´Historia General de las Indias´, publicada em 1547. O segundo, Bartolomé de las Casas, padre dominicano e bispo de Chiapas, no México, escreveu ´Historia de las Indias´, em cinco tomos. Mantiveram uma longa polêmica.

Oviedo, em sua obra, escreve que os índios são burros e de fraca memória. Las Casas não perdoa e ironiza: “Como é que Oviedo sabe disso, se não conhecia nenhuma língua indígena, não sabia o que os índios sabiam. Esse fato deve ter sido inspirado a ele por revelação divina”. E finaliza, advertindo: “Se na capa do livro de Oviedo estivesse escrito que seu autor havia sido conquistador, explorador e matador de índios e ainda inimigo cruel deles, pouco crédito e autoridade sua história teria entre os cristãos inteligentes e sensíveis”.
O que poderíamos escrever na capa dos livros de Hélio Jaguaribe? Sua biografia está no site www.netsaber.com.br/biografias. Lá, as pessoas podem registrar o que pensam dele. Nadel Brader escreveu: “Arrogante, preconceituoso e hipócrita”. Luciana Costa registrou: “Babaca. Um cara de mentalidade paleolítica”.
Sem concordar com ofensas pessoais, suspeito que ambos resumiram o que muitos pensam. De minha parte, digo apenas que a história será implacável com quem só escreve de noite. Desconfia, leitor (a), dos que usam teus nobres sentimentos de nacionalidade e do teu amor ao Brasil para atacar os índios. Estão querendo te confundir. Não estão defendendo a pátria, mas seus interesses particulares.

 

 

 

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2 Comentário(s)

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Artur Nobre Mendes (via FB) comentou:
11/01/2017
Lembro desse Jaguaribe. Deve ter sido professor do Aldo Rebelo. Disse ele que a contribuição do índio na cultura brasileira se resume a nomes de logradouros, talvez inconformado com o próprio nome de família. Mas eu não sabia que seu pai tinha trabalhado com Rondon. Isso reforça a suspeita acima de que tudo não passa de revolta filial.
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JUSCELINO ALENCAR comentou:
06/05/2010
A AMAZÔNIA PERDIDA, crônica escrita pelo professor Bessa está sensacional. Não há outra saída, ao lermos um texto, temos necessariamente que procurar saber qual a fonte criadora, quais objetivos implícitos, enfim, temos que ter muita atenção. Um abraço!
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