CRÔNICAS

Dilma, Exu e os índios: o tempo

Em: 01 de Maio de 2016 Visualizações: 27996
Dilma, Exu e os índios: o tempo

 

              "Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que atirou hoje”. 

(Oriki citado por Pierre Verger em "Orixás")   

Dilma não é Exu, mas com uma pedra que atirou hoje matou um pássaro em 2011. É que ela decidiu acelerar as demarcações das terras indígenas, o que já devia ter feito no seu primeiro mandato, quando foram criadas apenas 11 terras, a marca mais baixa de todos os governos desde a ditadura militar. Antes tarde do que nunca. No anúncio feito na cerimônia de instalação do Conselho Nacional de Política Indigenista, nesta quarta (27), o ministro da Justiça, Eugênio Aragão, reconheceu que as falhas nesse campo se devem às alianças construídas com o Congresso Nacional - atualmente desfeitas - que amarravam as mãos da presidente.

Dois dias depois, o pássaro morto ressuscitou? Dilma havia prometido homologar algumas áreas indígenas em cerimônia programada com os índios no Palácio do Planalto nesta sexta-feira (29). Mas na última hora, ela bateu fofo e preferiu assistir a senadora Kátia Abreu na TV Senado, esvaziando o ato que foi transferido para o Palácio da Justiça, com dança dos índios no salão negro, mas sem Dilma e sem as medidas suspensas por "pendências técnicas", segundo o ministro Aragão que, no entanto, garantiu a publicação de algumas delas no Diário Oficial deste 2 de maio. Tomara.   

Quanto tempo Dilma ainda tem para presidir o país com as mãos desatadas, mas ainda com um nó de travagem da Kátia Abreu? Dez dias? Dois anos? No prazo tão curto que lhe resta, quantas pedradas pode dar para corrigir as omissões de ontem? Além das horas para se defender dos temerários abutres que bicam com voracidade sua carcaça, terá tempo hábil para matar outras aves do passado? Depende da noção de tempo com a qual ela vai trabalhar. Se for com o tempo do relógio e do calendário, não. Mas terá tempo de sobra, caso use o tempo dos orixás ou do mundo andino.

Na cordilheira dos Andes, todo mundo sabe que o passado está sempre na frente, é por isso que nós podemos vê-lo. O passado é de múltipla escolha. Já o futuro, que a Deus pertence, é misterioso, vem atrás da gente, na rabiola, por isso não somos capazes de avistá-lo. Nesse sentido, Michel Temer, o traíra, tem razão quando diz que marchamos para o futuro e que seu programa de governo construirá "uma ponte para o futuro". Efetivamente, com a dupla Temer-Cunha e seus anunciados ministros incriminados na Operação Lava-Jato, estamos retrocedendo de volta para o futuro, andando para trás no tempo, com algumas conquistas sociais seriamente ameaçadas.

O velho Chico

O futuro está chegando. Os índios que preparem seus arcos, flechas e bordunas, porque vem chumbo grosso se Dilma cair. Ruim com ela, pior sem ela. Foi justamente a chapa Temer-Cunha e seus aliados que ataram as mãos da presidente. Embora a Constituição, tão impropriamente invocada pela encapirotada Janaína Paschoal, garanta aos índios o usufruto das terras imemoriais, o Estado nacional tem sido incapaz de fazer cumprir o preceito constitucional e ninguém é acusado por crime de responsabilidade. Além disso, uma Comissão do Congresso do Cunha acaba de aprovar e encaminhar ao plenário a PEC 215/2000 que inviabiliza a demarcação de terras indígenas.

Enquanto a democracia agoniza sepultada por um congresso desmoralizado que dá um golpe comandado por um réu no STF, quatro índios Guajajara da Terra Indígena Arariboia, no Maranhão, que defendiam suas terras invadidas por madeireiros, foram assassinados no último mês, entre 26 de março e 22 de abril: Aponuyre, um menino de 16 anos, morto a tiros; Genésio, 30 anos, com pauladas e um tiro no tórax;  Isaías, 32 anos, morto a facadas e Assis, 43 anos, morto a pauladas. Um quinto índio, Joel Gavião Krenyê, morreu, ao que tudo indica vítima de uma emboscada.

O CIMI - Conselho Indigenista Missionário - denunciou que "há anos, os cerca de dez mil indígenas Guajajara e Awá que vivem na TI Arariboia, sofrem com a extração ilegal de madeira e com a violência dos madeireiros da região". Por isso, os Guajajara criaram, em 2008, o grupo dos Guardiões para proteger seu território invadido por serrarias e carvoarias. De lá para cá já foram assassinados 21 índios e incendiado criminosamente 45% do território da TI Arariboia.

Todos esses crimes permanecem tão impunes quanto os praticados por Eduardo Cunha. "As instituições não estão cumprindo seu papel. Até agora nenhuma investigação foi aberta e a sensação que fica é de impunidade" - afirmou Gilderlan Rodrigues, missionário do CIMI. Quem comanda o Brasil é o coronel Saruê, do Velho Chico. O JN virou novela e a novela virou telejornal.

O tempo mental

Suluene Guajajara se queixou:

- "Muitas mulheres idosas não conseguem mais dormir. Algumas passam noites inteiras rezando para não acontecer o pior. Queremos um retorno das autoridades. É nosso sangue que está sendo derramado".

Resta saber se Dilma pode, hoje, antes de deixar o governo, evitar os assassinatos de ontem e fazer cessar o choro das viúvas e das mães Guajajara. Ela tem ainda tempo para evitar esse derramamento de sangue?

Talvez possam nos ajudar a responder tal pergunta as aulas de literatura na Universidade da Califórnia, em Berkeley, ministradas em 1980, por Júlio Cortázar. Lá, ele  discutiu, entre outros temas, a arquitetura do conto, sua dinâmica e uma série de conotações, de aberturas mentais e psíquicas, dedicando um bom espaço para refletir sobre o tempo.

Ninguém sabe o que é o tempo. Kant considera que o tempo em si mesmo não existe objetivamente, é uma categoria exclusiva da razão, somos nós os que construímos o tempo. O tempo só existe, porque nós o inventamos. "O tempo é um problema que vai muito além da literatura e que envolve a própria essência do homem" - diz o escritor argentino, que exemplifica com quatro contos que evidenciam a possibilidade de diferentes tempos. Dois deles são de sua autoria.

O primeiro - "O perseguidor" - narra a história de um músico de jazz, baseada numa experiência vivida no metrô de Paris. Nos dois minutos entre uma estação e outra, Cortázar rememorou em detalhe uma longa viagem feita, em 1942, pelo norte da Argentina. Como podem caber em apenas dois minutos fatos vividos ao longo de semanas, de meses? "Meu tempo interno, o tempo em que tudo isso havia acontecido em minha mente, de maneira alguma poderia caber em dois minutos" - concluiu. Mas coube.

O segundo conto - "A ilha ao meio-dia" - narra a história de um comissário de bordo de uma companhia de aviação que da janela do avião vê sempre, em sucessivos voos, uma ilha grega no mar Egeu, habitada por pescadores.  Decide mudar de vida, pede demissão e vai morar na ilha pela qual ficara fascinado. Um belo dia, vê da terra o "seu" avião passar desgovernado e cair no mar. Ele se atira na água e puxa um homem ferido gravemente que se debatia. Quando os pescadores chegam, encontram o cadáver do nosso comissário. Ele morreu no acidente, sem nunca ter pisado na ilha, a não ser no tempo utópico.

O outro conto - "O milagre secreto", de Borges - relata a história de um  escritor tcheco na Segunda Guerra que vai ser fuzilado pelos nazistas. Diante do pelotão, ele lamenta morrer sem ter tido tempo para escrever sua obra-prima, que lhe tomaria pelo menos um ano de trabalho. É aí que começa a criar personagens, a imaginar situação até concluí-la. Quando ele abre os olhos feliz pela conclusão do ato criativo, os tiros são disparados. O que havia durado para os soldados dois segundos, para ele durou um ano de tempo mental, no qual finalizou sua obra.

No último conto - "Aconteceu na ponte do Riacho da Coruja" - Ambrose Bierce narra um episódio da Guerra da Secessão. Soldados decidem enforcar um prisioneiro, passam-lhe uma corda no pescoço e o obrigam a pular da ponte para que ficasse suspenso no ar. Ele pula, a corda se rompe, ele cai no rio e nada para bem longe. Começa demorada viagem por terra até sua casa, onde chega a ver sua mulher. A última frase do conto é: "O corpo do executado balançava no extremo da corda". Em sua agonia, ele viveu a suposta ruptura da corda que lhe permitiu ir em busca de sua família. Uma vez mais o tempo se estica e se alonga - escreve Cortazar.

Qual o tempo de Dilma e o que ela fará diante do pelotão de fuzilamento ou da forca? A chapa Temer-Cunha anulará as demarcações porventura feitas, alegando que elas não existiram?

 

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25 Comentário(s)

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Daniel Canosa comentou:
18/05/2016
Este texto dilucida buena parte de la actual y compleja realidad brasileña, felicitaciones por el nuevo diseño del sitio Taquiprati, quedó muy bien Saludos! Daniel
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Raimundo Nonato Souza comentou:
05/05/2016
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Ana Rondon comentou:
04/05/2016
Não sei se Dilma terá "tempo". Estou aqui mestre para lutar pelo povos indígenas. Disponível para ações eficazes. Não quero nenhum delírio dos "não índios". LUTA se faz com pé no chão. Abração. Contato de Ana Rondon
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Alessandra Gontijo (não-índia) comentou:
04/05/2016
Com pé no chão, mas com ideias na cabeça, companheira Ana Rondon, com ideias na cabeça e uma consciência da importância da aliança com não-índios sem a qual a luta não avança como deve.
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03/05/2016
muito interessante, criativa, dando conta do drama dos indígenas, das incoerências administrativas do governo Dilma, particularmente com relação aos grupos indígenas. Ao mesmo tempo, é um alerta sobre a futura e dramática realidade que vivenciaremos com a agonia dessas populações. Contato de Maria Hilda Baqueiro Paraiso
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Ira Maciel comentou:
02/05/2016
Entrelaçar a literatura iluminou a reflexão política. Para mim um convite para releitura dos textos e acredito um incentivo para que outros leitores procurem os importantes escritores citados. Parabéns pela seu pensar fecundo....ativo. Um abraço de Ira
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Susana Grillo comentou:
01/05/2016
Bessa, parabéns por esta crônica filosófica e política... Cortazar por aqui trançando esses tempos ampliaria seu Bestiário... Os indígenas do CNPI,na sexta feira dançaram chamando energias com seus maracás e choveu nessa Brasília castigada por tempos secos e intolerantes... Um grande abraço
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Vania Novoa Tadros comentou:
01/05/2016
O que mais me irrita é ver as pessoas usarem a boa fé dos nossos indígenas em benefício próprio sem cumprir o prometido. Essa mulher oportunista chamada Dilma chamou-os para um comício no Planalto de vez que não pode mais sair nas ruas sem ser vaiada. Porém, era para fazer um teatro arranjado como a Lucimar Mamão fazia para o Gilberto Mestrino em Manaus no passado. Com o maior desrespeito ela não atendeu para ouvir uma defesa de uma latifundiária a Katia Abreu. E a demarcação das terras indígenas ficou para a próxima encarnação. E olha que ela podia gravar para assistir depois.s
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Euler Savedra comentou:
01/05/2016
Não sei quem é essa atriz Lucimar Mamão a quem a senhora se refere, mas certamente o teatro não é encenado apenas pela presidenta. Os indígenas, que não são "nossos", são historicamente maltratados com maior ferocidade por todas as forças que eram aliadas à Dilma - como diz o texto do articulista - e que agora, num golpe vergonhoso para a nação brasileira, querem depor a presidenta, que não tem contas em paraísos fiscais e não é réu em processo no Supremo. Concordo com o que a senhora escreveu, mas precisa, para ser coerente, ampliar essa irritação com os inimigos dos indios que estão dando o golpe.,
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José Ribamar Mitoso (via FB) comentou:
01/05/2016
Professor José Bessa, querido, estamos na mesma conexão astral. Não tem outra explicação. Nesta semana , em uma sala de aula, falei do tempo em Kant e dos contos de Machado de Assis. Também fiz uma postagem, aqui nesta página, sobre o concurso internacional de contos da Fundação Gabriel Garcia Marques. Um amigo debochado me ligou e informou que o senhor tratou de Kant e de contos no seu artigo. Para ele, estas coincidências devem ser temas da astrofísica e das conexões cósmicas. Ou da numerologia, por sermos xarás. Mas então li seu texto. Não é porque sou contista e tenho mestrado em contos, mas percebi uma falha, digamos, "técnica", na sua leitura de Cortázar. Cortázar é herdeiro das técnicas narrativas de Edgarzinho Alan Poe e Anton Pavlovitch Tchekhov. De Pòe, herdou a técnica da construção do fantástico, do mistério e do suspense. Convivência textual do real com o irreal. Leia Retrato Ovalado, título de contos de ambos, e perceba o jogo de influência transtextual. De Tchekhov, Cortázar herdou a narrativa não-linear e o jogo temporal de começar a ação do conflito no presente e depois jogar com os tempos , incluindo o tempo psicológico do narrador ou da personagem, diferente do tempo da ação. O senhor não explicitou este jogo temporal. Ficou confuso. Apenas para esclarecer. Mas mantenha a CONEXÃO ASTRAL
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Ana Stanislaw comentou:
01/05/2016
Adorei!!! Muito bom Bessa. Espero que a Dilma, com coragem, avance nas demarcações das terras indígenas. Parabéns pelo texto, eu adorei.
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Marcelo comentou:
01/05/2016
O texto é muito bom, parabéns e obrigado! Exceto na parte em que fala do Kant, aí fica ruim... mas como é um comentário breve, lateral, não interfere na qualidade do todo. o tempo em Kant é uma forma pura da sensibilidade, não é uma categoria da razão. Não é inventado, mas é uma condição necessária da experiência. É subjetivo, mas é necessário: é um aspecto do sujeito transcendental. É o sentido interno pressuposto em todas as nossas sensações, experiências e conhecimentos.
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Nelson Sanjad (via FB) comentou:
30/04/2016
Ótimo texto do José Bessa sobre o (quase) eterno desacerto de Dilma quando o assunto são os povos indígenas:
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ilton jornada comentou:
30/04/2016
Aconteceu na ponte ... conheço desde os anos 70. Os demais vou correndo ler. Obrigado Bessa! Frente ao pelotão Dilma relembrará a "mullher sapiens" que nunca foi! Temer, Cunha, Renan, Jucá e Bolsonaro receberam cidadania pela incompetência dos anos de (des)governo do pt. Contato de ilton jornada
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Pedro Nuno Felgar (via FB) comentou:
30/04/2016
A coração demente é super? Nunca tinha reparado, ninguém diria, mas a charge demonstra que as balinhas a atravessam e não causam dano. Vejam se não é verdade... Por outro lado esse papo de mártir é retórica de marketeiro sem fair play A culpa é dos outros que"ataram as mãos" da presidentA-amiga-pessoal-da-Katy-Abreu? Ah tá: estorinha para boi dormir
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Hilda Santiago (via FB) comentou:
30/04/2016
Senhor Pedro, que tal aprender a ler? Quem está dormindo, me parece, é Vossa Excelência, senhor Pedro.
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taquiprati comentou:
30/04/2016
Caro Pedro, tu és Pedro e sobre essa pedra edificarei a minha igreja.
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Lilia ferreira Lobo comentou:
30/04/2016
Na história do Brasil, de golpe em golpe, o tempo se repete. O eterno retorno do passado no futuro. Os índios sabem melhor que nós essa farsa do tempo que inventamos!
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Ana comentou:
30/04/2016
Lindooooo!!!! Esclarecedor!!! A própria Realidade Fantástica!!! Estamos vivendo o real inusitado!! Dez!
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Astrid Lima (via FB) comentou:
30/04/2016
E, José, nesse futuro que se abre como um abismo nas nossas costas, essa é a cronica de um governo infeliz.
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Tarcisio Motta de Carvalho (via FB) comentou:
30/04/2016
Já falei para vocês do grande contador de histórias, professor e amigo José Bessa? Olha aí mais um excelente texto do seu blog Taqui pra ti:
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Marcia Livia Gomes (via FB) comentou:
30/04/2016
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Maria Jose Silveira (via FB) comentou:
30/04/2016
A imponderável e perfeita crônica do Bessa.
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30/04/2016
Linda crônica! sempre são excelentes as crônicas do prof. Bessa. esta, porém, ao discutir o conceito de tempo buscando exemplos da literatura, tem para mim um gosto especial. Espero que mais demarcações sejam assinadas, nesse tempo fora do tempo da presidenta Dilma, e estaremos aqui para lutar pela garantia dessas demarcações frente à ponte para o passado, para o inferno da chapa Temer-Cunha. Contato de Mara Vanessa Fonseca Dutra
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Rayane Barreto comentou:
30/04/2016
Extremamente preocupante! Espero que Dilma dê finalmente sua guinada à esquerda.
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