Autor: JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE E MARIA CARLOTA ROSA (ORGS)
Local da Publicação: RIO DE JANEIRO. EDUERJ. 2003. 209 PGS.
FREIRE, José Ribamar Bessa & ROSA, Maria Carlota (orgs). Línguas Gerais. Política Lingüística e Catequese na América do Sul no Período Colonial. Rio de Janeiro. Eduerj. 2003. 209 pgs.
Sumário
01. José Ribamar Bessa Freire e Luiz C. Borges – Apresentação
02. Yonne Leite – A arte de gramática da língua mais usada na costa do Brasil e as línguas indígenas brasileiras
03. Luciana Gimenes – Fontes para a historiografia lingüística do Brasil quinhentista
04. Consuelo Alfaro Lagorio – Elementos de política lingüística colonial hispânica: o Terceiro Concílio Limense
05. Cristina Altman – As línguas gerais sul-americanas e a empresa missionária: linguagem e representação nos séculos XVI e XVII
06. Maria Cândida D. M. Barros – Notas sobre a política jesuítica da língua geral na Amazônia (séculos XVII e XVIII)
07 Luiz C. Borges – A língua geral: revendo margens em sua deriva
08. Maria Carlota Rosa – A língua mais geral do Brasil nos séculos XVI e XVII
09. Roland Schmidt-Riese. Condições da mudança em nheengatu: pragmática e contatos lingüísticos
10. Uli Reich – Mudança sintática e pragmática na Língua Geral Amazônica (LGA): marcação de caso e sistema pronominal.
11. Ruth Maria Fonini Monserrat – O tupi do século XVIII (tupi-médio)
12. José Ribamar Bessa Freire: Língua Geral Amazônica: a história de um esquecimento.
Apresentação
José R. Bessa Freire e Luiz C. Borges
Os trabalhos reunidos neste volume foram, originariamente, apresentados na forma de comunicação no 1º Colóquio sobre Línguas Gerais: Política lingüística e catequese na América do Sul no período colonial, realizado do 29 ao 30 de agosto de 2000. O evento foi uma atividade do Grupo de Trabalho de Historiografia da Lingüística Brasileira da ANPOLL – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Lingüística. Duas universidades públicas reuniram-se para organizá-lo: A UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, através de seu Programa de Estudos dos Povos Indígenas e da Coordenação de Pós-Graduação em Letras e a UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro, através do seu Departamento de Lingüística e Filologia e do Programa de Pós-Graduação em Lingüística.
Os estudos sobre as línguas gerais têm ocupado ainda um espaço pequeno de reflexão, como pode se observar na escassa produção acadêmica existente, o que é incompatível com a relevância do tema, sobretudo se considerarmos que a compreensão histórica e lingüística dessas línguas pode constituir uma chave para acessar informações sobre as nossas sociedades e compreender o processo, ainda obscuro, de hegemonia das línguas européias em nosso continente.
O colóquio teve por objetivo o encontro de pesquisadores de várias nacionalidades e procedências que trabalham sobre a questão, para articular dados históricos e princípios lingüísticos capazes de dar uma inteligibilidade às políticas de difusão de algumas línguas ameríndias, identificadas pelos colonizadores como “línguas gerais”, pela extensão e posição de seus falantes, bem como pelas funções que elas desempenham.
Os trabalhos discutidos durante o evento procedem de um horizonte acadêmico diverso: UERJ, UFRJ, USP, Universidade Federal do Pará, Centro de Documentação Histórico de São Paulo, Museu Paraense Emilio Goeldi, Museu de Astronomia e Universidade de Munich, o que pode dar uma idéia das dimensões do interesse, em âmbito nacional e internacional, que o tema desperta.
Os artigos aqui apresentados contribuem para expor o problema e dar conta da situação atual em que se encontram os estudos realizados ou em processo de realização em alguns centros de pesquisa e universidades. A discussão principal se ancora no campo da política de línguas do período colonial, considerando que ela representa uma força de ordenamento social e um instrumento de poder e, nesse sentido, a catequese opera como o agente principal nas decisões e nas escolhas tomadas pelo Estado e em formulações de planejamento de línguas: artes, dicionários,alfabeto e ortografia, entre outros.
Os trabalhos examinam, por um lado, questões relativas à política lingüística e missionária na América Latina e as bases da formação das línguas gerais e, por outro, centra o foco das atenções em uma delas, falada na região Norte do Brasil, a Língua Geral Amazônica (LGA) que ficou conhecida desde o século passado como Nheengatú.
Quanto ao primeiro tópico, abre-se debate interessante sobre as representações e os conceitos acionados nas descrições lingüísticas, destacando as qualidades do trabalho de José de Anchieta, assim como sua precisão e rigor (LEITE). As questões metodológicas dos instrumentos de pesquisa (GIMENES), com uma reflexão acerca de elementos de política lingüística hispânica/ibérica em relação às determinações de planejamento lingüístico e suas conseqüências na atividade de catequese, na América andina (ALFARO) e na América Latina em geral (ALTAMNN).
A abordagem da chamada Língua Geral Amazônica (LGA) ou Nheengatú, ocupa grande parte dos trabalhos, buscando analisar as linhas de política jesuítica a ela relacionadas no século XVI-XVII (BARROS) e discutir algumas dimensões históricas da política e suas conseqüências sociolingüísticas (BORGES), bem como as representações sobre essa língua e as atitudes das instâncias de decisão que lhe fazem frente nos referidos séculos XVI e XVII (ROSA). Numa perspectiva descritiva diacrônica, há um trabalho - com um debate teórico sobre línguas em contato - que discute o caso da LGA, (SCHMIDT-RIESE); uma abordagem pragmática de dados lingüísticos da LGA sob o mesmo prisma (REICH); e o registro de um corpus para estudar as mudanças no campo fonológico (MONSERRAT). Por último, há um estudo sobre a história externa da LGA, em que se questionam as razões históricas que levaram ao apagamento e esquecimento do papel da LGA na memória de seus falantes e descendentes (FREIRE).
Os temas relacionados à língua geral constituem um campo de pesquisas que pode ser explorado por diferentes linhas de investigação, da história à literatura comparada. Mesmo se considerarmos o conjunto documental já produzido sobre o assunto, desde o período colonial, verificamos que pouco sabemos sobre esse típico fenômeno do processo de colonização.
Podemos acompanhar, com alguma comprovação documental, a passagem da língua indígena à língua geral, ou a sua expansão territorial e étnica, à medida que essa nova língua vai adquirindo falantes e se fixando quer em aldeias indígenas, quer em aldeamentos e povoamentos. Também podemos, razoavelmente, acompanhar o vaivém das medidas do governo português e da Igreja que visava normatizar o uso e a abrangência dessa língua na colônia. No que tange especificamente à Amazônia, onde o uso da língua geral era predominante na população em geral, além da língua materna – e muitas vezes a única – da grande maioria dos falantes, as evidências de que dispomos nos levam a considerar que ela era a língua mais falada até o período da cabanagem.
Contudo, ainda nos sobram mais perguntas do que respostas. As principais indagações dizem respeito à própria estrutura e funcionamento lingüístico dessa língua, suas variantes e áreas geográficas. Quem eram seus falantes? Quais as relações entre a língua geral e o português? Afora uns poucos registros escritos em língua geral, ainda estamos por descobrir a língua geral escrita por aqueles que a falavam e dispunham de uma formação escolar. Mas principalmente, como ocorre seu desaparecimento da memória brasileira, que se segue à cabanagem e à hegemonização do português? Esse é um fenômeno para o qual nos voltamos com mais curiosidade. Afinal, se nos lembrarmos que a área linguisticamente tupi mais diretamente relacionada à formação de línguas gerais estendia-se do norte do Paraná à fronteira ocidental da Amazônia, ficamos nos perguntando pelas razões que levaram a seu apagamento quase completo.
Essa situação aparece em toda sua complexidade e desafio quando nos lembramos que a proibição de 1755, decretada pelo Marquês de Pombal, não elimina a língua geral do uso cotidiano na Amazônia. Francisco Xavier de MendonçaFurtado, então governador do Grão-Pará e irmão de Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, escreve-lhe uma carta, datada de 21.11.1751, na qual constata que a língua em uso por todo o Estado era o nhengatu ou, em suas palavras, “uma gíria a que chamam língua geral”. A situação diglóssica perdura. De tal modo que, em 1853, o bispo de Belém vê-se compelido a aprender o nheengatu e, em 1894, o primeiro bispo de Manaus ordena que os padres de sua diocese aprendam a (ainda) “língua da terra”. A par disso, verificamos que a língua portuguesa penetra e se fixa na Amazônia de modo mais abrangente no século XIX, no período pós-cabanagem, e por incentivo do ciclo da borracha, colocando-se em um novo espaço enunciativo, interpondo-se entre as áreas de língua geral e as de línguas indígenas.
Nesse particular, temos de ir além da historiografia, da literatura ou das gramáticas históricas, pois em grande parte desses estudos não há espaço para a língua geral. Somos induzidos a pensar a história do Brasil como uma continuidade cultural e lingüística de pleno domínio do elemento português.
Daí a importância de encontros multidisciplinares nos quais questões dessa natureza sejam debatidas e esmiuçadas. A tarefa de encontrar os fatos e interpretá-los requer tempo e maturação. Mas requer, igualmente, a troca de informações e discussões abertas.
Os trabalhos aqui reunidos são um passo inicial. Esperamos que eles suscitem novas investigações, debates, contestações, complementações e questionamentos. Entendemos que é desse modo que contribuímos não apenas para o debate franco a respeito das línguas gerais na América do Sul, mas também para estimular o avanço das investigações sobre a memória e a identidade brasileira.