Autor: JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE
Local da Publicação: RIO. ABAQUAR/GTNM. 2009, 272 PGS
O livro "20 anos da Medalha Chico Mendes de Resistência - memórias e lutas" (270 pgs) foi organizado por Cecília Coimbra, Irene Bulcão e Rubim Santos Leão de Aquino para celebrar os vinte anos da Medalha Chico Mendes de Resistência, criada pelo Grupo Tortura Nunca Mais, com o objetivo de homenagear pessoas e entidades vinculadas à luta pelos direitos humanos - juristas, religiosos, jornalistas, intelectuais, artistas, líderes de movimentos sociais. Uma das instituições agraciadas com a medalha foi a Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE), fundada em 1986, responsável pela organização de vários levantes naquele país. Liderou milhares de indígenas que ocuparam o Congresso Nacional, reivindicando a criação de um Estado plurinacional e multiétnico e um ensino bilingue, com o reconhecimento das línguas indigenas. O texto abaixo foi publicado no livro (p.172)
CONAIE: A PÁTRIA GRANDE E A PÁTRIA "CHICA"
José R. Bessa Freire [1]
- Cuál es tu pátria?
Fiz a pergunta a Ampam Krakras, líder da nação Shuar da região amazônica do Equador. Era uma entrevista para o jornal Porantim. Estávamos em Brasília participando da 14ª. Assembléia Nacional de Chefes Indígenas, em junho de 1980. Ele não caiu na armadilha de escolher uma ‘pátria’ e negar a outra. Respondeu a pergunta ardilosa com sabedoria:
- Mi pátria grande es el Ecuador. Mi pátria chica es el Shuar.
Reafirmou, assim, sua lealdade ao Equador, em função da história recente, mas ao mesmo tempo reivindicou sua identidade Shuar, que existe muito antes da formação do estado equatoriano. A Pátria Grande tem um território de 256 370 km², dentro do qual vivem 14 milhões de habitantes, segundo estimativas feitas em 2009. Desses, cerca de 5 milhões têm suas pátrias ‘chicas’, formadas por catorze diferentes nacionalidades indígenas, com línguas, culturas e dinâmica histórica próprias.
Essa população indígena vive nos Andes (72%), na Amazônia (19%) e na costa (9%), o que originou a formação de três confederações regionais: na serra, a Ecuarunari; na Amazônia, a Confeniae e, no litoral, a Conaice. Apesar das distâncias geográficas e das diferenças culturais e lingüísticas, essas ‘pátrias chicas’ conseguiram fazer uma grande aliança, criando a Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE), em 1986, que consolidou uma rede de intercambios e uma condução política para o movimento indígena equatoriano, um dos mais fortes da América Latina.
A partir de então, de forma organizada, as ‘pátrias chicas’, antes invisíveis, se agigantaram, ocupando o cenário político nacional. Realizaram mobilizações, concentrações e comícios massivos nas principais cidades, organizaram marchas, passeatas e desfiles, bloquearam estradas, ocuparam repartições públicas, paralisaram o país com greves, promoverem cinco sucessivos levantes na década de 1990, modificaram a Constituição e chegaram até a derrubar um presidente da Pátria Grande. "O movimento indígena despertou nos equatorianos a consciência de que se um governante não cumpre suas promessas tem que ir embora", declarou Nina Pacari, dirigente da CONAIE e ex-ministra das Relações Exteriores.
Nesse processo, o movimento foi reprimido duramente, sistematicamente, pelas forças policiais e militares, que usaram balas anti-motins e gases lacrimogêneos. As comunidades indígenas que se manifestaram foram cercadas e agredidas, seus líderes foram espancados, presos, sequestrados. Mas não se intimidaram. Depois de cinco séculos de hegemonia ibérica, as ‘pátrias chicas’ mudaram o conteúdo do debate político nacional, obrigando a pátria grande a reconhecê-las. “Não dançaremos sobre o túmulo de nossos avós” – esse era o lema da marcha a Quito, em outubro de 1991, 2, durante a celebração dos ‘500 anos de resistência indígena’.
Desde o levante do Inti Raymi, em junho de 1990, do qual participaram os povos indígenas da Amazônia e dos Andes, a principal reivindicação do movimento foi o reconhecimento da diversidade cultural e da existência das ‘pátrias chicas’. Depois de muita luta, a Constituição de 1998 reconheceu o caráter “pluricultural e multiétnico” do Estado equatoriano, e a Convenção 169 da OIT foi ratificada pelo Congresso Nacional.
A atual Constituição aprovada em 2008 mantém essas conquistas, reconhecendo o caráter plurinacional do Estado e incorporando os idiomas Quichua e Shuar, ao lado do Espanhol, como línguas oficiais. Viabiliza, assim, a recuperação, administração e controle dos territórios indígenas e de seus recursos naturais, a afirmação da identidade cultural, a criação de programas de saúde preventiva e curativa combinando a medicina indígena e a ocidental e, finalmente, o desenvolvimento do sistema de educação intercultural e bilingue. As línguas faladas nas ‘pátrias chicas’ e discriminadas historicamente passam a ser reconhecidas pelas escolas como línguas de instrução.
Com avanços e recuos, erros e acertos, a CONAIE, que recebeu, em 2001, uma merecida homenagem especial do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, foi a grande articuladora dessas conquistas. O reconhecimento das ‘pátrias chicas’ pode ser avaliado, quando de manhã cedo se pode assistir, no principal canal de TV do país, um telejornal apresentado todo em quechua, e quando se sintoniza diferentes rádios que transmitem em quechua ou shuar. Não é por acaso que a Microsoft anunciou o lançamento, em quechua, da versão do Windows XP e do Office. As pátrias ‘chicas’, antenadas, abrem espaço também na internet.
Mas a luta continua, porque essas conquistas estão ameaçadas. Novas mobilizações começaram a pipocar por todo o país, em 2009, em defesa da água, da terra, da soberania alimentar e pela vida. A CONAIE enviou, no dia 27 de janeiro, uma carta aberta ao Forum Social Mundial, reunido em Belém do Pará, acusando o governo de Rafael Correa de “violar nossos direitos fundamentais, atentar gravemente contra nossas organizações e instituições, promover a exploração do petróleo em territórios indígenas, configurando uma situação de genocídio”. A carta denuncia “o presidente Rafael Correa e seus ministros por suas posições racistas, divisionistas e atentatórias contra os direitos humanos e contra a dignidade indígena”.
Em outro manifesto – Mobilizações pela Defesa da Vida e da Pacha Mama – a CONAIE avalia que esse é um novo momento da luta: “As nacionalidades e povos do Equador lutaram, sem violência, pela defesa dos Direitos Humanos, dos Direitos Coletivos e da Pacha Mama (Mãe Terra). Agora, com essa grande mobilização, damos início a uma nova fase em nosso processo de luta. Hoje, elevamos novamente nossas vozes altivas e rebeldes, unidas como uma grande correnteza que cresce. Dizemos à sociedade e ao mundo que, apesar dos constantes atropelos dos governantes prepotentes, dos monopolistas do poder político e econômico servis ao imperialismo, ‘AQUI ESTAMOS, CARAJO’, ou como expressou Humberto Cholango, presidente da Ecuarunari ao dar início à mobilização nacional: ‘KAIPIMI KANCHIK, CARAJO!’”.
[1] José R. Bessa Freire é professor do Programa de Pós-Graduação em Memória Social da UNI-Rio e coordenador do Programa de Estudos dos Povos Indígenas da UERJ. Ministra cursos de formação de professores indígenas, desde 1973, quando viveu exilado no Peru..