PRODUÇÃO ACADÊMICA

Cabanos e Cabanagem: tantas versões (Prefácio de Visões da Cabanagem de Luís Balkar

Em: 10 de Maio de 2016

Autor: JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE
Local da Publicação: MANAUS. VALER EDITORA. 2001, PGS. 9-13

 

In LUÍS BALKAR SÁ PEIXOTO PINHEIRO. Visões da Cabanagem. Uma revolta popular e suas representações na historiografia. Manaus. Editora Valer. 2001 (pgs. 9-13

OS CABANOS, A CABANAGEM, TANTAS VERSÕES

José Ribamar Bessa Freire


Era janeiro de 1835. O tapuio Filipe, conhecido como Mãe da Chuva, deu um tiro no peito de José Joaquim da Silva Santiago. Outro tiro, disparado por Domingos, o Onça,  matou  Bernardo Lobo de Souza. A primeira vítima era o comandante de armas e a segunda, o presidente da Província do Pará.  Os corpos das duas maiores  autoridades da Amazônia foram arrastados para o alojamento dos índios remeiros – um grande galpão, em Belém. Lá, durante mais de oito horas, tapuios conhecidos por estranhos apelidos – Gigante do Fumo, Onça do Mato, Sapateiro, Remeiro - desfilaram, chutando os cadáveres e cuspindo neles. Muitos chegaram a mijar na cova, um buraco aberto no cemitério da igreja das Mercês. A cabanagem começava.

Desta forma, a professora de História do Amazonas do curso pedagógico do Instituto de Educação (IEA) narrava, 130 anos depois, em 1965, o episódio que ela considerava como o início da Cabanagem, a revolta popular mais importante da história da Amazônia.  Para ela, os cabanos eram assim, violentos e cruéis, assassinos e desalmados, porque eram gente sem instrução e sem cultura, marginais, inferiores. Ela não contextualizava a violência e nada dizia sobre as atrocidades cometidas pelas forças de repressão ao movimento cabano. Aquilo que ela ensinava, deveria ser repetido e multiplicado, ecoando em todas as escolas primárias da cidade, porque o IEA era, então,  a única instituição pública de Manaus responsável pela formação de professores normalistas.

A versão que nós, normalistas da década de 60, tivemos da Cabanagem e que muitos reproduziriam para seus alunos nos anos seguintes, foi essa, alimentada por livros editados depois do golpe militar de 1964, quando um historiador – Arthur César Ferreira Reis -  foi indicado pela ditadura militar para governar o Amazonas. Ele criou as Edições do Governo do Estado do Amazonas, imprimindo em 1965, entre outros, dois livros: A Cabanagem, escrita pelo tenente-coronel Gustavo Morais Rêgo Reis e História do Amazonas, da professora Rosa do Espírito Santo Costa. Ambos foram adotados no curso normal.

O livro de Rosa do Espírito Santo Costa, professora do IEA, é uma cartilha, que trata os cabanos  - “ caboclos e pretos, moradores das beiras dos rios” -  como “assassinos, salteadores e algozes . O outro livro, escrito pelo tenente-coronel, apresenta o brigadeiro Soares de Andréa, responsável pela repressão aos cabanos, como um homem “enérgico, disciplinador, decidido, competente e capaz como soldado e administrador”.

De um lado, a plebe ignara, a anarquia, a violência bestial, a barbárie. De outro, a ordem, a disciplina, a integridade, a civilização. Depois disso, foram feitos outros estudos sobre a Cabanagem, mais recentes ainda, com interpretações bastante diferenciadas, que mantinham no entanto idêntica postura maniqueísta,  invertendo apenas os papéis: quem antes era “mocinho” passou a ser “vilão” e vice-versa. A luta dos cabanos, agora apresentados como heróis, transformou-se de ação de bandidos em um movimento de libertação nacional.

Afinal, por que existem versões tão diferentes sobre um momento crucial de nossa história? Qual dessas versões deve um professor do curso secundário ensinar hoje aos seus alunos? Ou existem alternativas que permitem uma abordagem mais objetiva do movimento?

O livro que você vai ler agora – Visões da Cabanagem – tem o grande mérito de formular essas e outras perguntas e buscar respostas para elas, fazendo um balanço da produção historiográfica que tratou do tema. Seu autor, Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro, em vez de buscar  “a verdade”, está preocupado em entender porque  tais “verdades” foram construídas. Por isso, ele procura explicar o que é que sustenta versões tão diferentes, o que é que fundamenta enfoques tão diversos, situando o lugar social onde esses discursos históricos se produzem e reproduzem. Trata-se de um trabalho cuidadoso, que explora essa diversidade e procura compreender as diferentes imagens construídas sobre os cabanos, o que permanece e o que muda no discurso histórico sobre a cabanagem e o significado do movimento cabano de acordo com cada autor. Destaca o papel que esses autores atribuem à participação das camadas populares na revolta, discutindo as categorias de “povo” e  “popular”.

Depois de visitar as abordagens historiográficas da cabanagem, de Ernesto Cruz (1942) até os estudos contemporâneos, Luis Balkar analisa vários “compêndios de História Pátria” usados nas escolas desde o século passado, os relatos dos viajantes que passaram pela Amazônia e conviveram de perto com a cabanagem e, sobretudo, dedica uma atenção especial à obra matriz Motins Políticos de Domingos Antônio Raiol, o primeiro trabalho de peso sobre a Cabanagem, feito com rigor e seriedade, a partir de documentação manuscrita existente nos arquivos do Pará e do Rio de Janeiro.  Raiol, que viu seu próprio pai e outras autoridades serem atacadas pelos cabanos na vila de Vigia, recolhe e valoriza a fala da repressão, em detrimento da fala dos rebeldes.

Luis Balkar mostra, no entanto, que a geração de historiadores do século atual, pertencentes ao Instituto Histórico e Geográfico do Pará (IHGP), que começa a produzir a partir de 1936, também exclui os segmentos populares do movimento da cabanagem, pasteurizando a imagem dos cabanos, domesticando-os e esvaziando o movimento de seu conteúdo de crítica social. . O povo só vai ser descoberto através de algumas interpretações críticas como a de Caio Prado Júnior, que olha o movimento cabano sob a ótica da luta de classes, mas que não realiza nenhum trabalho de pesquisa documental, limitando-se a uma releitura teórica. Apesar disso - afirma Luis Balkar, - essas duas correntes revitalizaram a temática e contribuíram para que os cabanos deixassem de ser vistos como bandidos e assassinos.

Graduado em História pela Universidade do Amazonas, onde é professor, Luis Balkar escreveu este livro depois de defender, com brilhantismo, sua  tese de doutorado na PUC de São Paulo, destacando-se como um pesquisador que começa a ser reconhecido e respeitado fora da Amazônia. Ele não pretendeu ser conclusivo, porque sabe que a história da Cabanagem, como toda História, está em processo de construção. Também não pretendeu falar de um lugar neutro, porque considera que o historiador é parte da história, não é um sujeito carente de sentimentos. Ao desconstruir os diversos discursos sobre a Cabanagem, reconhecendo, no entanto, a contribuição que em diferentes momentos deram para a compreensão do movimento, Luis Balkar limpa o terreno e dá uma contribuição significativa que pode ajudar os professores a recolocar a questão em sala de aula. Este livro, se lido e debatido pelos professores, com certeza modificará a prática pedagógica e permitirá uma compreensão mais profunda de um movimento vital para a construção da nossa memória e da nossa identidade.

Nietta Lindenberg Monte, em sua tese de doutorado depois transformada em livro, intitulada Escolas da floresta. Entre o passado oral e o presente letrado,  afirma que nas escolas indígenas do Acre, o professor índio – elemento de mediação entre os grupos étnicos e a sociedade brasileira – promove imediatamente a transmissão do saber adquirido para os demais componentes do grupo. Tudo aquilo que o professor indígena aprende, ele logo ensina. Aprende para ensinar. A acumulação individual – apropriar-se dos conhecimentos e esconder dos demais – não entra dentro da ética indígena tradicional. O professor que aprende para si e não transmite o saber acumulado para os demais, é destituído de sua função pelo grupo. Se esse princípio fosse adotado em nossas universidades,  quantos colegas manteriam  sua função? Luis Balkar, com esse livro, certamente tem o seu lugar garantido, porque além da qualidade acadêmica do seu trabalho, compartilha com todos nós, numa linguagem clara, direta, concisa, densa e agradável, os conhecimentos que sistematizou e produziu.