CRÔNICAS

PORTUGAL, MEU AVOZINHO?

Em: 16 de Fevereiro de 1993 Visualizações: 2159
PORTUGAL, MEU AVOZINHO?

“Roubo do século: brejeiros arrebatam cinco toneladas de bacalhau”. Essa manchete de um jornal português foi lida por mim e pelo escritor Márcio Souza, quando passeávamos pelas ruas empinadas de Coimbra, no Natal de 1982. Não esperamos para conferir se a polícia conseguiu prender os ladrões “brejeiros”. No dia seguinte, estávamos marchando para Lisboa. Taí o Márcio que não me deixa mentir. Ou deixa? 

Coimbra, dos choupais e dos doutores, é uma das mais antigas cidades portuguesas. Começou como uma aldeiazinha empoleirada numa colina, às margens do rio Mondego. Durante cinco séculos foi a sede da única universidade portuguesa buscada pelos filhos de brasileiros escravagistas endinheirados atrás de um diploma e, às vezes, ocasionalmente, até mesmo do saber.

De lá, de uma das freguesias de Coimbra e percorrendo um caminho inverso, veio para Manaus em meados da década de 1950, um de seus filhos, ainda adolescente, sem dinheiro, com a cara, a coragem e muita vontade de trabalhar de sol a sol: o Armando. Com a ajuda do seu tio – o seu Armindo da Casa Dias – Armando se instalou na taberna da dona Bati, uma birosca na esquina do Beco da Bosta com a Xavier de Mendonça.

Talvez o bairro de Aparecida fosse mesmo o lugar mais interessante, nos anos 50, para um portuga começar sua vida. Havia um clima receptivo, lusófilo, gerado pelo saudoso comandante Ventura, criador do Corpo de Bombeiros Voluntários de Manaus e do conjunto de música e dança folclóricas formado por meninas do bairro, entre elas quatro irmãs minhas.

A Fátima do seu Zé Buchinho, neta da portuguesa Carolina, era a grande estrela do grupo folclórico. Vestida com trajes coloridos típicos da terrinha, com um xale sobre os ombros, “acabava com o açaí” ao cantar Maria Papoula. O Dilson do SAPS gamou nela, para quem fazia serenatas e passou a chamar o Zé Buchinho de "meu sogro". Ela era a nossa Amália Rodrigues de igarapé, da mesma forma que o Maravalha era o nosso Alfredo Marceneiro.

Dona Generosa

A colônia lusitana no bairro de Aparecida era numerosa e muito querida. Havia o Mário Magalhães, pai da Íris, o outro Mário, o Soeiro e seu irmão Cassiano, o Antônio do Bar Brasil, o seu Leopoldino e dona Generosa, que justificava o nome e me fez saborear o primeiro pastel de Belém num longínquo natal, cujo cheiro de casca de limão e canela ainda guardo na minha memória afetiva e olfativa.

A lista é grande: o seu Armando da Padaria, pai da Emília, do Armando e do Almirante com seu pão no forno de lenha, o seu Júlio e a dona Elisa que mantinham a taberna mais sortida do bairro, concorrendo com o Fernando, a dona Vera Margarida, o seu Porfírio Afonso e dona Amália, as vizinhas Alzira, Balula e Armanda e tantos outros.

Com tanto patrício, mesmo sem nenhum Manoel ou Joaquim, o Armando se sentiu em casa, A Xavier de Mendonça não tinha, é verdade, os álamos que davam sombra às ruas de Coimbra, mas possuíam de cada lado, benjaminzeiros e mangueiras que quebravam o galho.  Em vez do gótico da igreja de Santa Clara – a velha igreja humilde de Nossa Senhora Aparecida que funcionava numa espécie de galpão. No lugar do campanário da Universidade de Coimbra, a torre soberba da Cervejaria Miranda Correa, produtora da famosa cerveja XPTO.

Nesse contexto, o nosso Armando trocou as águas suaves do Mondego pelo igarapé de São Vicente, o famoso bosteiro e adotou uma nova pátria, sem abdicar da sua santa terrinha.

Poucos amazonenses vibraram tanto com a escolha da Terezinha Morango como miss Brasil. O Armando abriu a birosca de madrugada, mal chegou a notícia pelo rádio e serviu cachaça de graça para comemorar a vitória daquela menina catarrenta e bonita do bairro de Aparecida.

A vitória da Seleção Brasileira na Suécia, em 1958, uniu a todos na mesma comemoração: o bairro com o Armando, o Leopoldino e seus filhos Fernando e Joaquim – não lembro se o Zequinha já havia nascido – comemorou numa alegria só: o coração deles batia uníssono com o nosso.

Amor de Bica

Quando saiu para o Bar da Bica, na praça São Sebastião, o Armando deixou no bairro de Aparecida uma penca de amigos. Generoso, vendia fiado pra todo mundo. Quase todas as famílias tinham um caderninho, onde eram anotadas diariamente as compras realizadas. Ele perdoou algumas dívidas.

Trabalhador, ele madrugava mourejando. O seu pequeno patrimônio como o dos demais portugueses do bairro, foi todo ele construído com o suor de seu rosto, conquistado gota a gota, diferente dos patrícios colonizadores que exploraram e escravizaram os indígenas.  

Nos primeiros tempos, a comida do Armando vinha em uma marmita da casa do seu tio Armindo: dois bifões temperados com azeite português. Acho que o Armando fingia que não sabia que eram dois, os bifes, porque a marmita só chegava com um. O outro, o Geraldão da dona Laudelina e eu, que íamos buscar a marmita, expropriávamos e dividíamos fraternal e “brejeiramente “entre nós dois.  

No momento em que a polícia portuguesa está tratando tão mal os brasileiros no aeroporto de Lisboa, quero me associar neste carnaval à Banda da Bica na homenagem ao Armando e afastar qualquer tipo de revide. Os “patrícios” do Bairro de Aparecida são os mais amazonenses de todos os portugas e nada têm a ver com essa discriminação em Lisboa. Souberam se integrar à geleia geral Baré e conquistar o carinho e o respeito de todos.

Já dizia meu amigo Mário Adolpho: Amor de Bica, onde bate, fica. Diferente do colonizador do período colonial, os “nossos portugas” constituem o lado modesto, mas bom e generoso do povo português. Com seu trabalho cotidiano, ajudaram a construir o Amazonas. Hoje são um pedaço de nós e de nossa história recente.

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2 Comentário(s)

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Armando Barrella comentou:
21/10/2022
Essas narrativas têm uma sinestesia fantástica. O Armando era sempre simpático com sua fala cadente, dona Generosa com sua força e o cheiro do pão na padaria do vovô.
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Armando Barrella (via FB) comentou:
17/04/2016
José Bessa, li sua crônica há pelo menos 20 anos, quando ocorreu o incidente diplomático entre Brasil e Portugal. Lembro-me de que naquele instante a "Confraria do Armando" havia colocado na rua a marchinha de carnaval a qual não me recordo bem toda marchinha, mas que o refrão se cantava: "Lurdinha, Lurdinha, tu vais voltar de tamanco pra terrinha (bis)..... Armando já não está entre nós, mas sua alegria, seu jeito bonachão está presente no coração de quem o conheceu. O Bar continua a existir agora sobre a administração de uma das filhas, Ana Cláudia enquanto a outra, Ana Lúcia, casou-se e mora em Portugal, em Almada, e como não poderia deixar de ser, a folclórica dona Lurdes com seu delicado humor ainda estar a rondar a todos no bar rsrsrsr....As fotos são um viajar a parte, Helena sempre sorridente, mesmo séria e Mário Toledo, este já era comprido. Feliz por recordar tantas histórias, as do vovó com sua padaria e papai e meus tios Emília e Almirante. Essa parte, dos lusos do bairro de Aparecida li no livro - Bairros de Manaus - em que há um capítulo sobre a influência dos portugueses nas festas e costumes de toda gente que ali nasceu e cresceu. Crônica bela, crônica singular e porque não dizer saudosista. Abraço!
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