CRÔNICAS

Caríssimo Limongi

Em: 15 de Agosto de 1995 Visualizações: 2115
Caríssimo Limongi

Y es que nadie escupa sangre / Pa' que otro viva mejor

Atahualpa Yupanqui – Preguntitas sobre Dios

Recebi do gabinete do senador Gilberto Miranda Batista o seguinte fax:

Caro Bessa Freire: Eu e Gilberto Miranda rimos muito do teu “Mirandinha vai às compras”. Você tem o dom da alegria. Você é um gozador. Estamos rindo até agora. Há! Há! Há! Mas não permita se tornar um porta-voz dos fracassados, dos derrotados, dos magoados, dos rancorosos, dos incomodados com o sucesso pessoal e profissional do senador Miranda. Não fica bem para você. Para seu currículo. Esses caras acabam morrendo de tanta raiva, Bessa. Pode anotar. Não deixe que envenenem teu espírito. Que adianta fazer pose no mercado e perder eleições? Miranda não faz gênero. Trabalha. Age. Produz. Tem a consciência do dever cumprido. Mas Gilberto Miranda tem bons representantes que vão ao mercado: os funcionários de suas fábricas na Zona Franca e suas famílias. Isto que deixa Miranda contente e orgulhoso. O resto, caro Bessa, é a hipocrisia ardendo nos olhos dos parasitas. Abraços. Vicente Limongi Netto, assessor de imprensa”.

E aí, leitor (a), o que é que a gente faz? Deixamos a Ceiça Tribulins em paz e partimos para a resposta? Vamos nessa!

Caríssimo Limongi Netto,

Muito obrigado por sua carta, escrita com correção e cortesia. Você é esperto, Limongi, tem humor e parece que gosta de uma boa polêmica. Não apresenta a truculência de um Omar Aziz, o provincianismo de um Joaquim Corado ou o silêncio de tantos outros, que acabam dificultando o debate tão necessário à democracia.

A simpatia com que você parece me tratar quando se refere ao dom da alegria, não deve, no entanto, me impedir de exercitar outro dom – o da sinceridade – embora correndo o risco da minha gentileza não ficar à mesma altura da sua.

Sua carta, Limongi, chegou com pelo menos trinta anos de atraso. Agora, Inês é morta. Meu espírito já está “envenenado”. Minha geração, aquela que lutou contra a ditadura militar, fracassou no sonho de eliminar as desigualdades sociais no Brasil. Hoje – que vergonha! - o nosso País está atrás da República do Botsuwana em matéria de distribuição de renda.

O meu currículo, pelo qual você se mostra tão zeloso, revela a dimensão da derrota. Preso e detido sete vezes, amarguei oito anos de exílio e ainda me considero com sorte, porque muitos companheiros com os mesmos ideais foram torturados e assassinados, como o amazonense Thomazinho Meielles. Desta forma, reconheço que faço parte dos derrotados.

Não foi só a minha geração. Existem mais de 100 milhões de brasileiros fracassados, que não conseguem uma boa escola, assistência médica adequada, casa própria com um mínimo de comodidade, lazer decente para a família, acesso aos bens culturais e materiais, esgoto e água encanada. Milhões deles não tem nem mesmo o que comer. Então, contrariando os seus conselhos, só me resta tentar ser um modesto porta-voz desses vencidos e humilhados.

Tento colocar minha pena a favor dos lascados e dos pequenos e ao fazer uma opção preferencial pelos pobres, disparo algumas vezes o verbo contra poderosos e endinheirados como o senador Gilberto Miranda, representante de segmentos privilegiados que usufruem com essas desigualdades. O que incomoda não é o sucesso pessoal de Miranda, como você equivocadamente alega, mas o fato de ser preciso que muita gente cuspa sangue para que ele mantenha uma adega com 2.000 garrafas de vinho, avaliada em 600.000,00 reais, ou 9 carros importados no valor de mais de 1.000.000,00 de reais, segundo ele mesmo se gabou em entrevista à revista VEJA.

Você jura que seu patrão criou empregos na Zona Franca, possibilitando a ida dos funcionários ao mercado. Mas não apresenta dados. Quantos trabalhadores são pagos pelas empresas de Miranda? Qual o montante de seus salários? Em que bairros eles vivem? Em relação ao faturamento declarado de 380 milhões de dólares no ano passado, segundo VEJA, o número de empregos criados por Miranda é reduzido, além do seu que, como assessor, é pago por nós, contribuintes, e não por seu patrão.

Além disso, o que pode comprar no mercado um operário que ganha um salário mínimo? Será que seu otimismo, caríssimo Limongi, não reside no fato de que você está calculando os outros salários pelo seu?

Gilberto Miranda, que enriqueceu rapidamente com os incentivos fiscais, não tem sequer um bem de raiz no Amazonas, nem uma palafita. Seu patrimônio está todo em São Paulo: mansões, casas de campo, ilha, fazendas, carros importados. Nunca pagou sequer um pedreiro ou eletricista em Manaus. Por isso, cada vez que ele abre a boca, acaba insuflando todas as forças anti-Zona Franca, que pensam que todo empresário é parasita como ele. Desta forma, prejudica aqueles que realmente produzem e trabalham no Amazonas. Esses morrem de vergonha com o aventureirismo do Miranda.

Não permita, meu caro, meu caríssimo Limongi, que continuem usando você como porta-voz dos ricos e dos poderosos porque – isso sim – deles e de você nunca será o reino dos céus. Paulo Maluf, considerado até pelo Toninho Malvadez como o maior ladrão do país, foi elogiado publicamente por você repetidas vezes. Quando todos os derrotados do Brasil queriam acabar com a patifaria e as falcatruas do PC Farias e do Collor, você Limongi, distribuía notinhas aos jornais, orgulhando-se de ser íntimo da Casa da Dinda. Agora, a bola da vez é Gilberto Miranda, o senador sem nenhum voto, apresentado como um “winner”, um campeão.

Caro Limongi, caríssimo, nunca você produziu uma linha, uma vírgula de crítica aos poderosos e em defesas dos lascados. Você é um panfletário, Limongi, mas um caso singular de panfletário a favor. A favor de quem tem grana e poder. Por isso, você manifesta um ressentimento classista e um rancor surdo contra os perdedores e os vencidos. Trata-nos a nós, os derrotados, com preconceito, como se fôssemos aqueles leprosos do Evangelho.

Você nos discrimina, Limongi e nos culpa por estarmos perdendo, como se perder fosse um crime. Esquece que os perdedores também somos filhos de Deus.

O nosso desencontro, Limongi, reside aí, na diferença entre os verbos encher e puxar. Os meus panfletos procuram encher o saco dos políticos oportunista, corruptos e trambiqueiros. Os seus só conjugam o verbo puxar.

Caríssimo Limongi, dei-lhe um tratamento superlativo, superior ao que você me dispensou. Quanto a mim, não sou tão caro assim. Por opção. Parodiando a Joana Fomm, em entrevista ao Jô Soares, sexo e jornalismo não faço por dinheiro, mas por amor. Se duvidar, veja meu contracheque ou pergunte aos meus alunos. Eles lhe dirão que sou, ao contrário, barato, sou “um barato” sem qualquer cabotinismo.

Ainda é tempo, Limongi. Faça como o pequeno flautista, diga "não" ao Palácio do Planalto. Venha para o nosso lado, Limongi, venha tocar na nossa banda. Te receberemos de braços abertos.

P.S. - Ver:

Mirandinha vai às compras - http://www.taquiprati.com.br/cronica/497-mirandinha-vai-as-compras

Goethem, Limongi e o Grosse Hintern http://www.taquiprati.com.br/cronica/369-goethe-e-limongi-o-grosse-hintern

De novo, São Pedro -  http://www.taquiprati.com.br/cronica/494-de-novo-sao-pedro

 

 

Abaixo, uma tradução livre que fiz da música de Georges Brassens.

 

O FLAUTISTA

Georges Brassens

I

O tocador de flauta, modesto jogral,

levou sua música ao castelo feudal.

Maravilhado com tão bela canção,

o rei lhe ofereceu emblema e brasão.

Majestade - disse o flautista pobre -

não quero ser fidalgo nem nobre.

Com um brasão em minha melodia,

meu do-re-mi ficaria com afonia.

Meus conterrâneos diriam de repente:

- Nosso flautista traiu sua gente.

II

Não iria mais querer acender vela

pros santinhos da nossa capela.

Eu só rezaria – que vexame! -

lá na Catedral de Notre Dame.

No campanário da nossa igrejinha,

o sino viraria campainha.

Com um bispo na minha clave de sol,

eu desafinaria sustenido e bemol.

E todo mundo falaria: - Você viu?

Nosso tocador de flauta nos traiu.

III

Trocaria minha cabana de palha

por castelo com fosso e muralha

E o quartinho onde durmo feliz

Pelos aposentos da imperatriz.

No lugar do colchão de capim

Um leito de baldaquim e cetim.

Com um castelo na pauta musical,

minha toada soaria artificial.

Os camponeses diriam, de novo:

- O flautista traiu o seu povo.

IV

Teria vergonha de meus ancestrais,

de minhas origens e de meus pais.

Falsearia uma linhagem aristocrática

com árvore genealógica emblemática.

Repudiaria o sangue da minha veia.

Renegaria o povo da minha aldeia.

Com um sangue azul tão dissonante

minha cantiga se tornaria pedante.

E os aldeões diriam com lucidez:

- o flautista nos traiu outra vez

V

Um duque, um conde, um marquês,

não podem ter um filho camponês.

Seria impossível me casar por amor

com minha amada, botão em flor.

Meu casamento seria uma barganha

com a filha do rei da Espanha.

Com uma princesa na minha modinha,

meus versos só louvariam a rainha.

Plebeus e servos diriam: - No fundo,

o flautista traiu o nosso mundo.

VI
Então, o flautista, humilde jogral,

Disse ‘NÃO’ ao castelo feudal.

Sem escudos, honrarias e glória,

retornou ao lugar da memória:

choupana, aldeia, campanário,

família, afetos, relicário.

Agora nenhum aldeão diz

que o flautista traiu sua raiz

E Deus reconhece como filho seu

aquele bardo que não se rendeu.

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