CRÔNICAS

Quem comeu a merenda das crianças?

Em: 29 de Agosto de 1995 Visualizações: 4517
Quem comeu a merenda das crianças?

Não fui eu. Nem o Alferes Ronaldo Tiradentes, a bem da verdade. Tu também não, leitor (a). Por isso te convido hoje a refletir junto comigo sobre esse tema. Antes vamos dar uma filosofadinha. Olha só!

Qualquer guerra é uma imbecilidade pelas mortes de seres humanos que ela provoca. Costuma-se dizer que “guerra é guerra”, ou seja, que numa guerra vale tudo. Às favas com os princípios. No entanto, até mesmo num conflito armado, quando se desrespeitam as regras habituais de convivência humana, existe a “Convenção de Genebra” que determina quais atrocidades não podem ser cometidas, liberando as demais.

Por exemplo: é proibido matar prisioneiro civil, desarmado e ferido, como se está fazendo agora na Bósnia, para horror do mundo sadio. Em outras palavras: matar é crime, mas já que você está numa guerra, respeite pelo menos certas regras.

Ora, se existe um código de ética para matar, devia haver também para roubar.

Sei que é um contrassenso, mas fico imaginando que podíamos criar uma “Convenção de Manaus” para pautar o comportamento dos ladrões e dos corruptos. O primeiro artigo rezaria:

1º - Fica terminantemente proibido tirar comida da boca de criança carente e de velhinho pobre.

2º. – Os que transgredirem a norma, serão sumariamente fuzilados.

Em outras palavras, roubar é crime, mas se você tem inclinações para o ofício, pelo amor de Deus poupe as escolas e os asilos, cujos usuários são inocentes indefesos.

Bósnia de igarapé

O Amazonas é uma espécie de Bósnia da corrupção. Aqui, rouba-se a própria mãe. Recentemente, as catitas gulosas avançaram vorazmente sobre a comida das crianças. Passaram os cinco dedos – ou foram os dez? – em duas mil toneladas de merenda escolar, no valor de R$ 6.000.000,00 (seis milhões de reais). Quem comeu a merenda dos estudantes da educação básica, que dava para encher 215 caminhões? Mistério.

Repito: juro que não fui eu. No passado, é verdade, andei cometendo alguns pecados, que me deixaram com remorsos até hoje. Foi na década de 50, no Colégio de Aparecida. Na hora do recreio, como eu não tinha o que comer, sentava a porrada no “Cabeça de Mamão Macho” e tomava a merenda que ele trazia de casa: quase sempre pão com ovo frito. A gema amarelinha escorrendo parecia dizer: me come, me come. Mas isso foi no passado, uma disputa de crianças por uma merenda individual. Agora, acabaram de roubar a merenda de milhares de crianças carentes. Quem? Quem?

- Foi o governador Amazonino Mendes e o secretário de Educação José Melo – denunciou o deputado Luís Fernando Nicolau, acrescentando detalhes:

- No Amazonas existe uma quadrilha, um grupo que se locupleta com o dinheiro público. Quero pegar o chefe da quadrilha.

O governador e o secretário juram, de pés juntos, que o dissidente Nicolau é que é o lalau. Numa carta lida pelo deputado Pauderney Avelino, na Câmara, Amazonino afirma que a empresa do filho de Nicolau desviou recursos do FNDE – Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, apropriando-se de 10 mil cadeiras escolares e 400 mesas. Zé Melo, em declarações aos jornais, mostra que tem boa memória:

- Lembro muito bem que Luís Fernando Nicolau foi demitido da Secretaria de Saúde pelo Amazonino, no governo anterior, por desvio de materiais, superfaturamento e compras ao arrepio da lei”.

Rabo de palha

Não é só a lei. Eu também estou arrepiadinho com esse tiroteio, no qual Melo e Amazonino não respondem que não roubaram, limitando-se a acusar o outro também de roubar.

Na tua opinião, leitor (a), quem tem razão? A galera do Nicolau ou a corriola do governador? Quanto a mim, confio cegamente na seriedade e, sobretudo, na experiência dos dois lados, em questões dessa natureza. Por isso, acho que ambos os lados estão falando a verdade. É. Não tem ninguém mentindo nessa história. Vai ver um levou a merenda e o outro afanou a mesa e a cadeira. Agora, um descansa sentado, mas com fome, e o outro come em pé, incomodado, com o prato na mão. Por isso, um protesta e outro reage. Essa briga é briga de branco. Só acaba quando ambos se juntarem para comerem sentados, todos. Como faziam, aliás, anteriormente.

- Quem tem rabo de palha não passa perto da fogueira – diz a carta do governador Amazonino, lida pelo deputado Pauderney. O argumento é que Nicolau não pode falar, porque ele também embolsou dinheiro público, quando era secretário de Saúde, escolhido pelo próprio Amazonino.

Êpa! Pera lá! Uma coisa não invalida a outra. Um cidadão pode ser gatuno, o que não significa necessariamente que seja mentiroso. O Nicolau declarou:

- “Não faço minhas denúncias de forma leviana. Tenho documentações, tenho notas de empenho e notas fiscais para comprovar que a alimentação escolar de minha terra foi desviada. Esta é apenas a primeira de uma série de denúncias...”.

Ôba, leitor (a), tomara que eles não se entendam e coloquem mais lenha na fogueira.

Tá certo, o Nicolau la-lau, bate-perna, bate-pau, tem um rabo que já não é de palha, mas de pólvora pura. Por isso mesmo, seu gesto deve ser aplaudido, independentemente dos motivos que o levaram a falar. Não podemos esquecer que a quadrilha do PC Farias e do Collor só foi desbaratada porque o Pedro Collor, que não era nenhum santo, abriu o bico, prestando inestimável serviço ao País. Quem denuncia um caso como esse, deve ter cem anos de perdão.

Sigilo bancário

O deputado Nicolau está pedindo abertura de inquérito junto à Polícia Federal, Ministério Público e Tribunal de Contas da União. Ele quer a quebra do sigilo bancário de Amazonino Mendes e de vários de seus assessores. Acho que não havia qualquer necessidade de apelar ao Poder Judiciário. Quem não deve, não teme. O governador, seu secretário José Melo, o Pauderney, o Nicolau, eu e os leitores deveríamos todos colocar nossas contas bancárias abertas à disposição dos tribunais. Eu topo. Desta forma, acabaríamos com qualquer tipo de suspeita sobre o roubo da merenda escolar.

Taí, esse crime, o Ronaldo Tiradentes não cometeu. Podem acusa-lo de tudo, de falsificar diploma e os cambau a quatro. Mas verdade seja dita, o Alferes nunca comeu merenda escolar, nem sentou nas carteiras do FNDE. Deram um flagrante nele fazendo os exames do supletivo, levando bomba em biologia, prova irrefutável de que nunca frequentou a Escola Estadual Altair Severiano Nunes.

Em seu programa de rádio, o Alferes se comparou, cinicamente, com o próprio Jesus que não tinha diploma de segundo grau. É bebé! A comparação é infeliz, porque Cristo nunca tentou fazer o vestibular na UGA –Universidade da Galileia, com diploma falsificado da Escola Judaica Herodes Xantipa.

Cristo também não foi pedir a Pilatos a transferência de Caifás. Já Tiradentes diz que recebeu garantias do ministro da Justiça Nelson Jobim de que o delegado da Polícia Federal Rosinaldo Wanderley, encarregado do inquérito, será afastado de suas funções em Manaus e transferido para outra jurisdição. Pura bravata do Alferes? O ministro será capaz de se sujar, punindo o delegado Wanderley, único ponto de integridade nesse mar de lama?

P.S. 1 – Querido Orlando Farias. Morro de orgulho de ter podido conviver com você na Universidade do Amazonas, compartilhando algumas reflexões sobre a ética jornalística. Admiro sua coragem e sua serenidade no exercício dessa difícil profissão de informar. Com seu comportamento nessa história para desvendar as falcatruas do poder, você nos ensina e nos dá força. Homenageio, em você, aqueles outros colegas jornalistas que, anonimamente, mas com competência e lucidez, estão construindo o jornalismo investigativo em nossa terra.  

P.S. 2 – A primeira rabanada que comi na minha vida foi em um natal na década de 1950. Ela me foi oferecida por dona Generosa Lopes da Conceição Marques, então recém-chegada de Portugal, que ao longo de sua existência fez justiça ao próprio nome, cultivando a bondade e compartilhando o pão. Muito querida no bairro de Aparecida, dona Generosa faleceu na semana passada. Ao viúvo Leopoldino e aos filhos Joaquim, Fernando, Zequinha, Dilce, Herbert, Leopoldino Jr., Leogene e Shirlei, os nossos sentidos pêsames.

 

 

 

Comente esta crônica



Serviço integrado ao Gravatar.com para exibir sua foto (avatar).

Nenhum Comentário