CRÔNICAS

Da arte de tomar tacacá

Em: 08 de Julho de 1996 Visualizações: 9699
Da arte de tomar tacacá

O filme "A Noiva" foi sucesso de bilheteria na Manaus dos anos 50. Antonio Prieto cantava: "Detém as horas re-lóooogio, porque mi vida se acaba". Chorei tanto, que nem reparei se a Dile, minha irmã, a quem eu devia vigiar, trocou beijos com o seu namorado, Newton Bocão, durante a sessão do Polyteama. Mas me lembro muito bem, como se fosse hoje, do vestido que ela usava: um "tubinho" azul claro, emprestado pela Lenina, filha da dona Bebé, nossa vizinha. A saia plissada com a qual a Lenina assistiu missa no domingo era da Dile.

Eis aonde eu queria chegar: naquela época, vizinho era como irmão. A vizinhança era uma relação de parentesco. E não precisava ser vizinho de quintal, de parede. Todo o bairro era uma grande família. Os vizinhos emprestavam-se tudo: roupas, livros, comida, móveis, remédios e, às vezes, até namorado, escova de dente e cueca.

- "Dona Vera, a mamãe mandou perguntar se a senhora tem um ovo, um pouco de farinha e de azeite português para emprestar".

Cada aniversariante reunia sempre em sua casa as melhores cadeiras da rua, os melhores copos, pratos e talheres do bairro, que depois da festa eram religiosamente devolvidos aos seus legítimos donos. Fome, doença, desemprego, lazer, alegria, dor, carinho e porrada - tudo era compartilhado. O exercício da vizinhança era uma arte solidária, praticada por pessoas bem próximas umas das outras. Proximidade mais do que geográfica: afetiva, seguindo ao pé da letra o mandamento "ama teu vizinho como a ti mesmo".

O bairro de Aparecida era uma tribo. Manaus, uma aldeia.

A Vizinhança

Ah, na Manaus de minha infância, todos eram vizinhos de todos. No entanto, até hoje continuo intrigado, sem saber porque apenas umas das moradoras do Beco da Bosta trazia esta função colada permanentemente ao seu nome. A dona Nega era "dona" Nega. A "dona Zilda" era a "comadre" Zilda. A Leonor sempre foi simplesmente Leonor. Só a dona França carregava misteriosamente, como um apêndice, o título antes do nome: Vizinha França.

Ninguém falava "dona" França. Era só Vizinha França prá lá, Vizinha França prá cá. A sensação que se tinha era a que ela já havia nascido "vizinha", da mesma forma que Isabel nascera "princesa". Ninguém ousaria se referir ao Duque de Caxias como sr. Caxias. Sem o "visconde" ou o "barão", o Rio Branco não passaria de um igarapé vagabundo. Osório sem "general" é de uma solidão abissal. No caso da "vizinha" França, este era um título nobiliárquico equivalente ao de baronesa, condessa, doutora.

No México, quem termina um curso de licenciatura em uma universidade, adquire o direito de ser chamado de "licenciado". Por exemplo, se o Ronaldo Tiradentes fosse mexicano, usasse sombrero, bebesse tequila e conseguisse regularizar a sua situação - digamos assim - acadêmica, ele seria chamado de "Licenciado Tiradentes", da mesma forma que a vizinha França. El licenciado Sacamuelas.

Pois bem, a vizinha França tinha uma filha, a Adalgisa, que namorou muito tempo com o Baixote - ou foi com o Luizinho, irmão do Kisso? Não me lembro mais. Não importa. O que interessa é que a Adalgisa proporcionou uma das raras cenas de sofisticação que assisti em minha vida, tomando tacacá na banca da dona Alvina, na esquina da Xavier com a Alexandre Amorim.

Aqui abro um parêntese para contar ao leitor que em 1973, quando era correspondente do jornal "Opinião", em Paris, o dono do jornal, Fernando Gasparian me levou para almoçar no restaurante Luix XIV, na Place Des Victoires. Com um salário de fome, fiz o que sempre fazia quando entrava em qualquer restaurante: em vez de olhar a coluna com a descrição dos pratos, procurei a coluna com os preços. Em geral, fazia isto para escolher o mais barato. Desta vez, no entanto, era para pedir o mais caro, pois quem ia pagar a conta não era eu. Surpresa: não havia preços. O restaurante era tão podre de chique, que não ofendia o cliente com esses detalhes ligados ao vil metal, que poderiam perturbar sua digestão.

O palitinho

Foi nesse dia que vi, pela primeira vez, uma francesa comer caracóis engordados com borra de vinho: os escargots à l'Alsacienne, recobertos de manteiga, erva-doce e salsa socados. Com a mão esquerda, ela prendia o caracol com uma espécie de alicate e com a outra manipulava um garfinho, retirando a carne enlameada lá de dentro do bicho, como um cirurgião adestrado com o bisturi. Quando levava-o à boca, levantava o dedo mindinho. Impressionante!!! (assim, com três pontos de exclamação).

Fecho o parênteses e volto para a Adalgisa. Tu voltas comigo, leitor(a) ou ficas por aqui? Se quiser ficar, fica, porque eu vou andando. Lembro da minha sensação de fascínio, olhando as técnicas da Adalgisa de pescar o jambu e espetar o camarão com o palitinho, que ela segurava apertando-o entre o dedo polegar e o indicador. O detalhe do refinamento e da sofisticação, para mim, era o dedo mindinho da Adalgisa, levantado, no ar, com a unha pintada de um vermelho vivo. Toda a banca da dona Alvina se curvava.

Suspeito que o Baixote se apaixonou pela Adalgisa - ou foi o Luizinho? - por causa daquele dedinho flutuando no ar. Depois, ela usava sensualmente a língua, manuseando-a com tanta convicção, que não parecia língua, mas a sua própria mão. Ela enfiava a lingua na cuia, ligeiramente inclinada, infiltrava-a por debaixo da goma viscosa e - como se fosse uma cobra - levantava de uma só talagada a goma, o tucupi e o que sobrara de jambu e camarão. Fantástico!!! 

Da mesma forma que você identifica um francês pela forma como come escargot, um amazonense pode ser facilmente detectado pela forma como toma tacacá. Eis onde eu queria chegar. O Cabo Pereira, candidato a prefeito de Manaus, não sabe tomar tacacá. Ele pode comer rapadura e buchada de bode, mas de tacacá não entende. Como alguém quer ser prefeito de Manaus, se odeia tacacá?

 

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