CRÔNICAS

Uma arapuca para José: obscenidades dos bancos

Em: 01 de Janeiro de 2006 Visualizações: 10378
Uma arapuca para José: obscenidades dos bancos

 

Dezenas de cartas, quase sempre anônimas, invadiram a privacidade do meu lar e me bombardearam durante o ano inteiro com mensagens obscenas e propostas indecorosas. Pensei em entregá-las à Polícia, mas desisti porque seria inútil. Agora, no finalzinho de 2005, o carteiro traz a última delas, postada em São Paulo, só que dessa vez vem assinada e com o endereço do remetente. Decidi respondê-la e publicá-la, integralmente, com todos os pontos e vírgulas. Troco apenas, por razões óbvias, o nome do signatário e da instituição que ele representa. Aí estão as duas cartas.
De William para José
São Paulo, 29 de dezembro de 2005
Prezado José,
É provável que você esteja feliz com o seu cartão de crédito. No entanto, lhe apresento cinco motivos para colocar outro na sua carteira: o American Exchange Trickery (AET).
1. O AET é totalmente gratuito. Não cobra taxa de anuidade, nem a taxa de inatividade, no valor de R$30,00, se for usado pelo menos uma vez a cada três meses.
2. O AET oferece os menores encargos de financiamento do mercado. Em caso de gasto inesperado, você paga só o valor mínimo determinado em seu extrato de conta.
3. O AET permite financiar as despesas de seus outros cartões com encargos competitivos e uma economia de até 50%.
4. O AET pode transformar suas compras em incríveis recompensas e lhe dá pontos sempre que usar o cartão no shopping, no supermercado, na farmácia ou no posto de gasolina.
5. O AET lhe dá segurança para comprar sem medo pela Internet. Peça agora mesmo o American Exchange Trickery (AET). Atenciosamente, William Trickster. Presidente.
P.S. – Atenção, esta oferta é pessoal e intransferível, válida até 28/02/2006.
 
De José para Bill
Bairro de Aparecida, 31 de dezembro de 2005.
 

Mister William Trickster,
Quem te permitiu me chamar de José? Que intimidades são essas? De onde você me conhece? Por acaso eu te chamo de Bill, cara? Apenas duas pessoas queridas me trataram assim, com familiaridade, em situações excepcionais, evitando usar Ribamar, nome de porteiro de motel. Uma foi minha mãe, invocando sua autoridade para me dar esporro:
- “José, meu filho, você é muito mulherengo” (o que, infelizmente, nem é verdade, não por falta de vontade, mas por falta de habilidade).
Outra foi minha professora de matemática, dona Mercedes, me avaliando:
- “José, a fórmula a² = b² + c² prova o teorema de Pitágoras?”.
Ficamos, então, combinados: pra elas, sou José. Pra você, William, sou Ribamar. Doutor Ribamar! Sei que essas duas palavras nunca aparecem juntas, mas é minha exigência. Ah, acrescente, por favor, os sobrenomes!
Antes de fingir intimidade, você me qualifica de “prezado”. Prezado é o cacete, mister Bill! Não me lembro de ter sido seu aluno, professor, nem vizinho ou amigo. Você leu algum artigo escrito por mim? Namorou alguma sobrinha minha? Desencalhou alguma das minhas irmãs? Então, por que “prezado”? Nunca te vi mais gordo, cara! Deixa de fingimento! Não insinua uma estima por mim que não existe. Banco não preza ninguém, apenas os juros escorchantes da agiotagem. Corta essa, Bill. Aliás, cara, quem te deu meu endereço? Como é que tu invades minha privacidade no último dia de ano? Te pedi alguma informação?
Tua carta já começa muito mal, Bill Trickster. Escolheu o destinatário errado para fazer uma proposta desonesta. Já escrevi dois parágrafos e ainda nem entrei no mérito da questão, o que pretendo fazer agora, expondo cinco motivos pelos quais não quero o teu cartão.
- Nos meus 58 anos de vida, nunca tive cartão de crédito. Muita gente não acredita nisso, julgando que é impossível viver fora do sistema de crediário. Basta, no entanto, consultar o meu prontuário bancário, para comprovar que jamais entrei nesse jogo sórdido. Não tenho cartão de crédito, plano de saúde, seguro de carro, celular, carro do ano ... Não preciso dessas porcarias. Estou falando sério. Quero ver minha mãe mortinha no inferno se estiver mentindo! Só tenho conta corrente, porque não pude escapar. Nada mais. Não entro nesse cassino, violino !
- Rejeito o teu cartão porque ele é uma arapuca insidiosa cheia de trapaças. Tua carta garante que “o AET é totalmente gratuito”. Mentira deslavada! Você sabe muito bem, Bill, que NADA, absolutamente NADA no banco é gratuito, nem o cafezinho, nem o sorriso do gerente. Imagina! Se vocês comem vorazmente R$ 30,00 de taxa de inatividade, como revela a própria carta, quanto não cobrarão, sub-repticiamente, pela taxa de atividade? Comigo não, violão !
- Recuso tua oferta indecente para ganhar pontos com compras em supermercados e shoppings, porque não creio em “incríveis recompensas”. “Incríveis ” mesmo são os lucros estratosféricos do capital financeiro. Se a maioria da população brasileira vive na miséria é porque a riqueza da nação foi seqüestrada pelos bancos, com apoio recente dos governos FHC e Lula. A agiotagem oficial fica me estimulando a comprar aquilo que não preciso,para me tornar seu prisioneiro e escravo. Não. Não entro nessa gaiola, viola!
- Não quero teu cartão para financiar despesas de outros cartões. Não possuo outros cartões. Sou contra a montagem dessa cadeia rotativa de juros abusivos, que corrói o orçamento familiar. Minha sobrinha, a Loura, entrou nessa, atrasou o pagamento da fatura, a merreca que devia cresceu assustadoramente, e ela se ferrou. Karl Marx tem razão: não há diferença entre fundar um banco e assaltar um banco. O roubo é o mesmo. Bancos são urubus vorazes, que tomam centavos de viúvas pobres e de aposentados indigentes. Não quero esse flagelo, violoncelo!
- Depois de toda essa xaropada, em vez de convite ou sugestão, vem uma ordem taxativa, no imperativo: 
- “Peça agora mesmo o AET”.
Não peço não, Bill! Nem que viesse de brinde a Luana Piovani, nuazinha, não pediria, por causa do teu autoritarismo. Odeio ordens. Odeio a ordem. E quem estabelece, unilateralmente, as cláusulas do contrato de adesão é a AET. Nós, consumidores, sequer podemos discutir seu conteúdo. Considero abominável essa pressão dissimulada: “a oferta só vale até 28 de fevereiro”. Mentira! Dê-u-du-vê-e-vi-de-odó macaxeira-mocotó, se vocês em março não voltam com o mesmo papo .
Dá um tempo, vê se me esquece, Bill Trickery! Estou avisando: caso receba outra proposta desonesta, registro queixa na Associação Nacional dos Usuários de Cartões de Crédito (ANUCC) e enfio o cartão no olho do teu pescoço francês. Te orienta e te observa, cara ! Ainda é tempo de mudar essa tua vida de bosta, avarenta e mesquinha, correndo atrás de dinheiro, enganando os outros, extorquindo centavos de gente humilde. Vem viver uma vida mais sadia. Muda de vida, Bill! Ai, então, poderás me chamar de José.
P.S. – Embora more em Niterói, escrevo de Aparecida, que é o lugar de onde sempre falo, para desejar aos eventuais leitores um Feliz Ano Novo, sem cartão de crédito. Não condeno quem convive, na modernidade, com o cartão. Não peço que compartilhem minha repugnância, mas que a respeitem. O sistema financeiro parece que se desestabiliza, quando colocado diante de alguém que vive à margem dele. É a única explicação que encontro para que os bancos fiquem torrando o saco de um pobretão como eu.

 

Comente esta crônica



Serviço integrado ao Gravatar.com para exibir sua foto (avatar).

4 Comentário(s)

Avatar
Nelian Lima comentou:
31/08/2019
O Bradesco ficou mudo? Kkkkkkkkkkk
Comentar em resposta a Nelian Lima
Avatar
Maria Do Rosário De Fátima Teixeira Gonçalves comentou:
31/08/2019
Avatar
Ana Silva comentou:
13/09/2014
kkkkk muito boa! Infelizmente, eu cai nessa e uso cartão. Você, com certeza, tem muita, muita razão. São argumentos plausíveis e até que me deu uma vontade danada de não ter cartão! rsrs
Comentar em resposta a Ana Silva
Avatar
Ana Silva comentou:
13/09/2014
kkkkk muito boa! Infelizmente, eu cai nessa e uso cartão. Você, com certeza, tem muita, muita razão. São argumentos plausíveis e até que me deu uma vontade danada de não ter cartão! rsrs
Comentar em resposta a Ana Silva