CRÔNICAS

Reza, fofoca e terapia: uma velhice compartilhada

Em: 15 de Janeiro de 2025 Visualizações: 18
Reza, fofoca e terapia: uma velhice compartilhada

“Pesquisas do seríssimo British Medical Journal mostram

os benefícios da reza em diferentes condições patológicas”  

(Contardo Calligaris, O poder da reza. 2006)

- Gente, evitem tomar chá! Cada saquinho de chá libera milhões de nanoplásticos que se infiltram nas células do corpo e causam câncer.

Esse alerta da minha irmã caçula no grupo de oração soou como um alarme. Mas lembrei que há mais de dez anos, quando a overdose de cafeína me causou distúrbios gastrointestinais, foi essa mesma irmã que me fez trocar definitivamente o café pelo chá agora por ela condenado. Assustado, gemi com voz desalentada:

- O autor dessa pesquisa é confiável?  

- É um cientista da Universidade A-ME-RI-CA-NA de Ohio - ela falou. Falou assim, em negrito, escandindo as sílabas em letras maiúsculas para conferir autoridade ao pesquisador. A prova – enfatizou – é a Família Real Britânica que toma chá diariamente e, por isso, foi destroçada pelo câncer: o rei Charles, a Kate Middleton, a duquesa de York Sarah Ferguson, a princesa Victoria, os reis Edward VII e VIII... todos cancerosos. Vai lá no google.

Fui. Confirmei. Ora, se isso acontece com a nobreza da Inglaterra, o que não fará com o corpo de um pobre plebeu cheio do chá invadido durante dez anos por trilhões de microplásticos? Vai ver, foi assim que cresceu o tumor maligno na minha próstata controlada depois pela radioterapia. Ohio que o parta! Chá? Nunca mais. Essa decisão tomada durante a reza, quando o profano se sacraliza, pode ser entendida, se examinamos a composição, a organização e o funcionamento do grupo de oração.   

Rezo-terapia

Dos 13 filhos da dona Elisa – 9 mulheres e 4 homens – um deles, Domingos, morreu afogado em 1958 aos três anos de idade e Glória, a mais velha, aos 90 anos, deixando saudades imorredouras. Os 11 ainda vivos compartilham a velhice em reuniões, que no início eram semanais, mas se tornaram diárias desde 2020, quando o coronavírus começou a se espalhar pelo Brasil.

O encontro diário via zapp, que dura em média 60 minutos, entrecruza orações e reflexões teológicas de leigos com relatos sobre doenças e remédios, experiências culinárias e receitas caseiras, notícias sobre filhos, netos, parentes, amigos e vizinhos, lembranças da longínqua infância, comentários sobre a situação política do país e do mundo. É uma terapia de grupo, que indica fármacos para a alma e não apenas para o corpo.

Funciona assim: no final de cada tarde, a administradora do grupo chama irmãs e irmãos pelo zapp.  Enquanto aguardamos a entrada dos atrasados, surgem anúncios como esse do chá. As notícias-bombas são geralmente dadas pela caçula, com 62 anos. É ela quem toca o terror.

Outro dia, na reza de natal, ela trouxe uma novidade. A banana foi condenada pelo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA) por ser fruta portadora do potássio, que potencializa doenças renais, além de conter tiramina, um aminoácido que provoca enxaquecas. Exibiu a prova:  

- Nos Estados Unidos, o preso condenado à morte recebe uma injeção de cloreto de potássio, que provoca parada cardíaca e ceifa sua vida em menos de um minuto. O potássio da banana, em excesso, mata. É veneno.

O fato é muito mais complexo, segundo outra irmã, farmacêutica e bioquímica, mestra em Patologia Tropical, doutora em Bioética, especializada em parasitoses, protozoários e amebas. No entanto, por via das dúvidas decidi: Banana? Never more. Eu, hein!

Remédio do corpo

Felizmente tem aquelas irmãs como a terceira da lista, que comprava e consumia remédios de farmácia como se fossem roupa ou pão, mas agora descambou para os fitoterápicos. Ela defendeu uma mezinha para combater a fadiga ocular: cobrir um pepino com bicarbonato de sódio, cortá-lo em pedacinhos com um limão e uma laranja, triturar no liquidificador e tomar o suco em jejum. A amiga dela, a Lucilene, tomou e depois do sétimo dia jogou fora os óculos.

A irmã mais velha, atual matriarca, recomenda a quem não gosta da gororoba de pepino, que faça a ginástica para os olhos. Um dos exercícios visuais diários é abrir e fechar as pálpebras muitas vezes para lubrificar o globo ocular e relaxar os músculos faciais. Eu me viciei e até agora estou pisca-piscando. E não é que deu certo? Ajudou a melhorar o foco e a percepção da luz. Recomendo. Receitas como essa existem também para a audição deficiente. Todos nós estamos meio surdos, uns mais, outros menos.  

São frequentes as queixas de osteoartrite, tendinite e dores nas articulações. A pomada “canela de velho” para o desgaste da cartilagem é milagrosa. A segunda irmã, cujos ossos do joelho batiam um no outro, viajou para São Paulo em cadeira de roda, mas incentivada pela reza, recusou a cirurgia. Curou-se comendo pés de galinha, rico em colágeno tipo 2 e devorou arroz com cúrcuma para sarar o seu “dedo em gatilho” travado pela tenossinovite estenosante. Debochada, ela ainda deu um cotoco pro cirurgião.

Curando a alma

Quando a irmã puxadora de reza inicia um canto, os remédios ecumênicos da alma entram em cena. Alguém é escolhido para ler o evangelho ou textos de autores como o padre Júlio Lancellotti, Leonardo Boff, Frei Beto, pastor Henrique, o kardecista Apolônio Nascimento, a pajé Zeneida Lima. São feitos comentários em defesa da natureza, da diversidade religiosa e cultural e de valores como a solidariedade com moradores de rua, com os excluídos, com as vítimas do racismo, da homofobia, da misoginia, do sexismo.

Em seguida, cada um faz pedidos individuais a Deus e à Cidinha – apelido que deram à Nossa Senhora Aparecida como sinal de intimidade.

Cada um reza por suas intenções particulares. São muitas. Cada pedido se refere a situações diversas, descritas detalhadamente, envolvendo uma filha com dengue e outra com implante dentário, o namorado doente da neta, as atividades escolares do neto autista, um cunhado com problemas no trabalho, o amigo com Alzheimer, a viagem de avião Manaus-Brasília do sobrinho que vai se operar, o vizinho entregador que teve a moto roubada, a vizinha que morreu, a outra que foi operada, as felicitações pelo aniversariante do dia.

Qualquer pedido termina sempre com a frase: “Por tudo isso, rezemos ao Senhor”. Todos respondem em coro: “Oh Senhor, escutai a nossa prece”. Ele tem escutado, até mesmo a uma irmã, que tem forma inusitada de pedir. Espertinha, ela agradece antecipadamente a graça que ainda vai alcançar, comprometendo a Cidinha e seu Filho. Mas o que conta é que a forma de rezar funciona como um jornal local que, no final, atualiza a irmandade com as fofocas e as notícias familiares.

O poder da reza

Alguns amigos e conhecidos, incluindo quem mora em Portugal e na França, impressionados com a reunião diária de um grupo de oração de 11 irmãs e irmãos, pedem para rezarmos por doentes de suas famílias. Às vezes dão retorno e agradecem a melhora do enfermo. 

Será que reza cura? Esse ex-agnóstico aqui, que entrou no grupo de oração só para acompanhar os perrengues da família, agora reza. Para Nhanderu. Foi convencido pelo artigo “O poder da reza” escrito por um ateu, o psicanalista italiano Contardo Calligaris (1948-2021), que seguiu os debates na revista científica “British Medical Journal” sobre doentes beneficiados por orações graças às energias liberadas capazes de influir nas enfermidades.  

- A cura é fruto da ação da divindade solicitada? Isso depende de um ato de fé, que não cabe na interpretação de uma pesquisa científica. A ciência no passado recente ignorava a existência de partículas que, segundo a física de hoje, povoam nosso universo. Por que as nossas intenções não movimentariam uma energia desconhecida capaz de alterar o mundo físico? – pergunta o psicanalista. Conclui com sua voz de ateu:

- Embaixo do sol (ou da chuva) deve haver muito mais do que imaginamos, até porque nossa ciência está longe de ser acabada. [...]. Eu não acredito nas paranormalidades, mas em geral durmo melhor ninado pelo mistério do que pelas certezas.  

Perfil dos rezadores

Segue a lista de participantes do grupo de oração, apresentada por ordem de chegada ao mundo. Nove moram em Manaus, um em Niterói, outra em Juiz de Fora. Todos compartilham a velhice:

  1. A Matriarca (1941) fala pouco, mas sua reza se expressa na forma de canto, com uma voz de timbre cristalino.
  2. A Bem-humorada (1943) faz todo mundo rir, solta palavrão no meio da reza e distribui cotocos profanos aqui e ali.
  3. A Destemida (1945) fica “p” da vida quando atropelam sua fala. Queimou com ferro de passar a barriga do irmão machista, que ameaçava espancá-la, cujo nome omitimos para não humilhá-lo. A queimadura o transformou em ardoroso feminista.
  4. A Puxadora de reza (1946) nossa “padra” já foi ao Vaticano 5 vezes, beliscou a barriga do papa a quem chama de Chiquinho.
  5. O Encrenqueiro (1947) brinca de armar intrigas entre irmãs e tem fama de fantasioso por dar caráter ficcional à realidade.
  6. O Espiritualizado (1949), ex-nervosinho, prefere a oração e não gosta da fofo-reza, protesta quando as fofocas se alongam.
  7. O Falastrão (1950), aprendiz de internauta, se perde em longos relatos e precisa de um freio para não se desviar da reza.
  8. A Agradecida (1952) vota sempre no Lula, a quem admira, mas reza por Bolsonaro: “Maninho, é ele e não Lula que precisa de oração”. Eu rezo em pensamento: .“Oh Senhor, não escutai a prece dela”
  9. A Psicanalisada (1953) traz sempre textos e reflexões que tratam das relações familiares e da velhice compartilhada.
  10. A Totoiotaia (1957). Muito ocupada, sua participação consiste em selecionar textos para o grupo de reza.
  11. A Terrorista (1962) ex-intransigente, vive reclamando do barulho e dá suporte logístico e intelectual ao grupo.                                                                                                                                                                                                                                     Essas são as filhas e os filhos da dona Elisa. Eu aqui só queria mostrar meu olhar, meu olhar, meu olhar...

Comente esta crônica



Serviço integrado ao Gravatar.com para exibir sua foto (avatar).

Nenhum Comentário