CRÔNICAS

Duas escritoras indígenas: a batalha da poesia

Em: 10 de Novembro de 2019
Tags:
Visualizações: 1811
Duas escritoras indígenas: a batalha da poesia

“Si me permiten hablar”(Domitila Chungara- 1978)
“In vain I tried to tell you” (Dell Hymes, 1981)

Os filiados ao Partido Sem Literatura (PSL vixe vixe) se perguntam: Poesia se come com farinha? Afinal, para que servem poetas? A complicação aumenta quando se trata de poetas indígenas e podemos indagar: as narrativas orais ameríndias, de autoria individual ou coletiva, são apenas material etnográfico ou fazem parte da literatura? Qual o impacto delas na literatura brasileira? Por que autores e autoras indígenas permanecem excluídos da escola, da mídia, dos cursos de letras das universidades e não figuram na história da nossa literatura?

Essas questões foram discutidas na quarta-feira (6) por duas escritoras residentes no Rio: Sandra Benites (Ara Reté Guarani) e Zélia Balbina (Ponan Puri). Foi na mesa “Literatura indígena em letra, voz e imagem” mediada por este locutor que vos fala, durante o X Encontro do Fórum de Literatura Contemporânea do Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da UFRJ,

Caminhos da memória

– Nós chamamos a narrativa de tapé, que em língua guarani significa caminho. A narrativa nos indica o caminho a seguir. Ela é um movimento da memória e organiza a sociedade na qual a gente vive. A memória pode deixar marcas de rancor, de tristeza ou de alegria, mas traz sempre o arandu, que são os saberes repassados através das narrativas orais –  disse Sandra Benites, que é Nhandeva por parte de mãe e Kaiowa pelo lado paterno.

Em sua infância na aldeia de Porto Lindo (MS), onde casou aos 16 anos e se tornou mãe de quatro filhos, Sandra ouviu sua avó narrar as longas histórias de Nhandesy Eté (Nossa Mãe verdadeira) – figura feminina da cosmologia guarani – que ensina como viver na terra, controlar o próprio corpo e escutar o outro. Na organização social guarani, Nhandesy funciona como uma espécie de arquivo vivo da sabedoria das mulheres.

Atualmente doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRJ, orientada pela linguista Bruna Franchetto, Sandra já alfabetizou crianças em guarani. Ela se formou professora no Curso Kua’a Mbo’e (Conhecer, Ensinar) que produziu coletivamente o livro bilíngue  Maino’i Rapé (o Caminho da Sabedoria). Contou como usou na Escola Guarani o poema – quase um hai-kai – de Avaju Poty, que figura no livro publicado nas duas línguas, cuja versão em português expressa:

Borboleta amarela
no céu azul
infinita beleza
não fazer mal a ninguém
infinita beleza.

Sandra deu aulas durante três meses, só com esse poema, para uma turma do ensino fundamental. Trabalhou com as crianças o conhecimento do guarani e do português, a literatura, o sistema de cores, a religião, as ciências da natureza, o ecossistema e noções de ética e de estética. Levou os alunos para a mata, onde depois de muita espera presenciaram uma borboleta romper o casulo e liberar as asas.  A borboleta por si só é bela, mas sua beleza é ainda maior porque não faz mal a ninguém. O uso da poesia na escola foi abordado também pela outra palestrante.

Os descaminhos

Zélia Balbina pertence a uma etnia sem aldeias, que foi considerada extinta, embora o Censo do IBGE de 2010 tenha dado conta da existência de 675 Puri distribuídos pelo Rio, Minas, Espírito Santo e São Paulo. O movimento de ressurgência Puri, criado em 2013, já publicou oito livretos na Coleção Semear, de diferentes autores, incluindo uma coletânea literária, falas e cantos Puri, histórias para crianças, plantas medicinais e Poesia em Movimento escrito pela própria Zélia.

A poesia Puri vem entrando em escolas do Rio através de oficinas literárias, intituladas “Descaminhos”, realizadas por Zélia e por outros autores como Dauá Puri, Niara do Sol e Náma Puri. Poeta, produtora de cinema, nomeada Embaixadora da Paz pela Academia da Suíça, Zélia quer dar visibilidade a seu povo “que há muito foi banido de suas terras, foi apagado dos livros escolares e ficou invisível”. Durante sua fala na mesa, depois de cantarolar um canto Puri, falou:

– De repente, me dei conta que não sou vista como “indígena”, porque não tenho uma aldeia, nem falo a língua Puri no cotidiano, afinal dizem que fomos extintos. Então o que sou eu? Sou o resto de tudo aquilo que fomos um dia – ela diz.

As duas línguas são portadoras de saberes em literatura. Mas enquanto o Guarani possui milhares de falantes em centenas de aldeias de dez estados brasileiros e em vários países da América do Sul – Paraguai, Argentina e Bolívia –  a língua Puri só tem alguns “lembrantes”, vários “cantantes” (canarêmùndê) e muitos “buscantes”. Obrigaram os Puri a calar a boca (kandl’ô) e a deixar de falar (koiah) a língua original, agora eles estão correndo atrás do prejuízo.

Etnopoética

Autores indígenas que se inspiram nas narrativas orais de seus povos, como Sandra Benitez e Zélia Puri, se coadunam com a Etnopoética Nativa Americana, segundo a denominação dada pelo sociolinguista e antropólogo norte-americano, Dell Hymes, que fundou, em 1972, a revista “Linguagem na Sociedade”. Ele define a narrativa mítica indígena como a primeira manifestação literária do nosso continente. Sua obra reforça o enunciado pelas duas autoras sobre a necessidade dessa literatura, cujas funções, entre outras, são a de entretenimento, de ensinamento moral, de terapia, de portadora dos saberes tradicionais.

No entanto, Dell Hymes questiona a classificação das narrativas míticas em gêneros estanques como conto, mito, poesia, nas quais elas não se enquadram, porque cada uma delas participa de vários gêneros literários sem pertencer a nenhum em particular. Além disso, o fato de traduzi-las do registro oral para o escrito, é uma operação similar à de levar um doente para uma casa de saúde. A escrita funciona aqui como um hospital da palavra, de onde devem sair “curadas” para circularem livremente no universo da oralidade.

Em países como os Estados Unidos, a literatura indígena vem sendo levada a sério pela academia. A Universidade da Califórnia publicou uma monumental coleção em 23 volumes, entre 1970 e 1992, sob o título Folk literature of South American Indians editada pelo prof. Johannes Wilbert. São milhares de páginas com relatos indígenas, que constituem apenas uma pequena parcela do corpus narrativo recolhido no séc. XX em cinco países da América do Sul, incluindo o Brasil.

O X Encontro do Fórum de Literatura Contemporânea contou com vários debates. A outra mesa de quarta-feira tratou da “batalha da poesia” e teve como integrantes Carol Dal Farra, Anélia Pietrani, Tchello d’Barros e, via video, Leila Miccolis.

– Cada uma das mesas renderia todo um congresso – avaliou o organizador do evento, Dau Bastos, professor de literatura brasileira.

Lula livre, Paulino morto

Para os que defendem a poesia, duas notícias relevantes para a História do Brasil. Uma muito triste: Paulino Guajajara, um dos “guardiões da floresta”, que lutava pelo futuro de todos nós, foi assassinado por madeireiros no Maranhão. A outra muito alegre: Lula livre. A coluna hesitou entre uma e outra como tema central, mas por ambas terem merecido ampla cobertura da mídia, ficamos na terceira margem com a literatura indígena.

P.S. – Referências bibliográficas:

I. Publicações Puri da Coleção Semear de 2018, cada um com 32 páginas.

1) Balbina, Zélia (Ponan Puri). Poesia em movimento.

2) Dauá Puri. Tempos de Escuta. Histórias Infantis.

3) Dauá Puri. Tempo de Escuta. Alkeh Poteh.  

4) Náma Puri (Carmelita Lopes) Casos & Causos da Memória afetiva.

5) Niara do Sol. Plantas que curam.

6) Coletivo Puri & Amigos. Falas & Cantos Puri.

7) Coletivo Puri & Amigos. Coletânea Literária.

8) Marcelo Sant’Ana Lemos. Vocabulário Puri.  (Português-Puri) Secretaria de Cultura do Estado do Rio. 3ª. edição. 

II) Publicação Guarani:

1). Telles, Lucíla Silva (coord). Mainoí Rapé – O caminho da sabedoria. Rio. IPHAN.CNFPC.UERJ. 2009

III. Outras Publicações:

1). Sá, Lúcia: Literaturas da Floresta. Textos amazônicos e culturas latino-americanas. Rio. Eduerj, 2012

2). Medeiros, Sérgio (org), Makunaima e Jurupari. Cosmogonias Ameríndias. São Paulo. Editora Perspectiva. 2202

3) Hymes, Dell. “In vain I tried to tell you”. Essays in Native American Ethnopoetics. Philadelphia. UPP Press. 1981

4) Freire, José R.B. Rio Babel. A história das línguas na Amazônia. Rio. Eduerj. 2011 (2ª. edição)

RELACIONADAS

Comente esta crônica



Serviço integrado ao Gravatar.com para exibir sua foto (avatar).

Nenhum Comentário