CRÔNICAS

Veja: os Guarani e o uísque paraguaio

Em: 18 de Março de 2007 Visualizações: 8859
Veja: os Guarani e o uísque paraguaio

.Você, leitor (a), compraria um uísque “escocês” destilado numa fábrica de fundo de quintal do Paraguai? Ou fumaria tabaco “paraguaio” plantado na Escócia? Então, cuidado, porque é isso que estão tentando fazer descer por tua garganta. Querem te vender gato por lebre, confundindo cinto com bunda e cipó com jerimum. Não te deixa enganar! Olha só!

A revista VEJA desta semana publicou matéria sobre a Terra Indígena Morro dos Cavalos, em Palhoça (SC), onde vivem 130 índios Guarani. A área situada no Parque Estadual da Serra do Tabuleiro é pequena. Conta com apenas 1.988 hectares, mas adquiriu valor econômico porque a BR-101, construída na década de 1960, está agora ampliando sua pista. Os índios aceitaram negociar, sugerindo que no lugar de um viaduto, fossem construídos dois túneis, que seriam menos invasivos. De qualquer forma, exigem indenização, o que é previsto, legalmente, nesses casos.

Os Carijós

Bastou isso para desestabilizar VEJA. A revista, em sua linha editorial, considera os índios como um obstáculo ao progresso, e os direitos indígenas como privilégios contrários aos interesses nacionais. Decidiu noticiar o fato dando-lhe, porém, tratamento tendencioso, sem qualquer compromisso com a informação. A malandragem já começa pelo título que esconde os interesses particulares e políticos existentes por trás da situação fundiária: “A Funai quer demarcar reserva para paraguaios”.

É claro. Nenhum leitor sensível aceitaria que VEJA, para defender interesses obscuros, atacasse 130 índios, confinados hoje numa pirambeira porque foram expulsos do seu outrora vasto território. Por isso, a revista apelou para o nacionalismo do leitor, transformando os moradores da aldeia em “paraguaios”, sem qualquer relação com os “índios brasileiros”, a quem finge defender: “A Funai tenta demarcar área de Santa Catarina para índios paraguaios, enquanto os do Brasil morrem de fome”.

Na maior cara-de-pau, o repórter José Edward insinua aqui uma relação causal: os “nossos índios” estão morrendo de fome, só porque a Funai quer demarcar o Morro dos Cavalos como reserva indígena, “para brasileiro pagar e paraguaio (e argentino) usufruir”. No entanto, VEJA, felizmente, está vigilante e não permitirá que isso aconteça. Dá vontade de pedir ao repórter:

- “Depois dessa do paraguaio, conta agora a do papagaio”.

De onde José Edward tirou essa história de “paraguaios”? Ele não pode deixar de reconhecer que, efetivamente, todo o litoral catarinense era ocupado pelos carijós, mas garante que essa etnia, de um lado “foi considerada extinta em meados do século XVII”, e de outro, não tem qualquer relação com os atuais Guarani, que vivem hoje em centenas de aldeias no Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai e Bolívia. É o velho golpe: descaracterizar a ocupação tradicional dos índios para poder abocanhar suas terras.

Como é que Edward sabe que esses índios foram extintos no século XVII? Ele não confessa nem sob tortura e levará esse segredo para o túmulo. Não cita qualquer fonte histórica para apoiá-lo, mas invoca uma fonte atual sem qualquer qualificação acadêmica para tal tarefa, o promotor José Cardoso, parte interessada em impugnar a demarcação, que afirma: “Os carijós tinham características físicas e culturais distintas da dos embiás e estão extintos”. O repórter acreditou no promotor e ponto final.

Se não revela quem extinguiu os Carijó – afinal é preciso preservar suas fontes – Edward não hesita em indicar quem recentemente os ressuscitou: a antropóloga Maria Inês Ladeira. Em suas pesquisas, ela comprovou “que alguns carijós teriam se refugiado no Paraguai, onde seriam chamados de embiás”. Por causa disso – acredita Edwards – “dezenas de embiás paraguaios (e alguns argentinos) sentiram-se legitimados para invadir o parque ecológico da Serra do Tabuleiro”.

Os “paraguaios”

O repórter de VEJA pensa que índio é como uísque: se veio do Paraguai, é falso. Desconhece as pesquisas etnográficas e etnohistóricas, que envolvem um cuidadoso levantamento genealógico, sistemas de parentesco, organização social, cosmologia, conhecimento da língua e registros escritos e orais. Se lesse tais estudos, saberia que o povo guarani habita esses territórios muito antes da criação das fronteiras nacionais e que ainda hoje é comum encontrar nas aldeias guarani do Brasil, Argentina, Uruguai ou Paraguai indivíduos e famílias que moraram ou nasceram em diferentes países.

Se tivesse apurado corretamente, saberia que a região da aldeia de Morro dos Cavalos é denominada de Tekoa Yma, que significa “aldeia antiga”. Não escreveria que a ocupação dos “paraguaios” é recente. Bastaria consultar as fontes escritas e orais. Na “Breve notícia dos limites e confins dos Carijós”, os jesuítas Inácio de Sequeira e Francisco Moraes confirmam a antiguidade da ocupação, citando nominalmente os índios que organizaram a resistência: Caraibebe, Araraibe, Diabo Manco, Grande Anjo, Igparuguaçu, Boiupeba, Tubarão, Ocara Abaeté, Marumaguaçu e tantos outros.

Edward poderia confirmar essas histórias, ouvindo um antigo morador do Morro dos Cavalos, Alcindo Moreira, 96 anos, atual xamã da aldeia de Biguaçu, a quem o autor dessas linhas conhece muito bem, porque divide com ele e sua esposa, dona Rosa, as aulas de História no Curso de Formação de Professores Guarani da Região Sul e Sudeste. Em depoimento à antropóloga Ângela Bertho, Alcindo confirmou: “Isso aqui era só mato. Tinha de tudo, a gente vivia bem. Mas depois abriram a estrada e foram tomando conta de tudo, só sobrou esse barranco”.

O repórter Joseph Eduards, que nem sequer consegue grafar corretamente o nome Mbyá (ele escreve embiá), mijou fora do penico. Sua matéria tendenciosa e sensacionalista nos leva a formular uma série de perguntas: onde é que esse rapaz estudou jornalismo? Quem foram seus professores? Qual a experiência que tem com os índios? O que foi que ele leu sobre o assunto? Por que obedece cegamente a linha editorial da revista sem qualquer questionamento? Quais são os princípios éticos que norteiam sua conduta?

Se esse repórter fosse meu aluno, eu o reprovaria. Planejou mal, apurou incorretamente e redigiu de forma incoerente. Daria um zero bem redondo em Ética. Mandaria refazer tudo, aconselhando a se dedicar a outros temas, como aquele da matéria de transcendental relevância que ele fez em dezembro de 2005, sobre “a alma praiana de Belo Horizonte”, quando registrou a existência de 10 mil bares e botecos na capital mineira, bolando um título criativo: ”BH, se não tem mar, tem bar”.

Quanto ao veículo no qual escreve, pergunto francamente: quem acredita no que a VEJA publica sobre os índios, depois do caráter parcial da reportagem sobre Paulinho Payakã, acusado injustamente de estuprador, sem nunca ter sido entrevistado pela revista?

VEJA não tem credibilidade. Não dá pra ler nem no dentista. Nas universidades brasileiras é motivo de chacota. Quando você quer insinuar que uma informação é falsa, diz: “foi publicada na VEJA”. Como professor de jornalismo, usei sempre em sala de aula matérias como essa para servir de modelo do que não se deve fazer. Veja é uma porcaria.

P.S. - Nessa semana, o MEC organizou em todo Brasil um exame para habilitar professores de Línguas Brasileiras de Sinais (LIBRAS) no ensino médio e superior. No Amazonas, o único surdo aprovado para dar aulas na universidade foi Silvio Márcio F. Alencar, o phodation de LIBRAS. Também, o personagem dessa coluna – Pão Molhado – batizado com o nome de Rodrigo Souza – recebeu ontem o diploma de Assistente Social pela Faculdade Dom Bosco.

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