CRÔNICAS

Geraldo Bocão: uma viagem no tempo

Em: 08 de Agosto de 2021 Visualizações: 6406
Geraldo Bocão: uma viagem no tempo

Parece que a velhice é isso: um doloroso pacto com a solidão, como escreveu Gabriel Garcia Márquez. A gente vai aos poucos se despedindo das pessoas que nos cercam até chegar a infinita e suprema solidão: é a nossa vez de ir embora. Só mesmo o ocaso da infância me faria mudar o tema da crônica de hoje programada para criticar esse governo que agride a democracia e os povos indígenas. Então, peço licença para dar adeus a alguém que partiu.

Dessa vez foi o amigo de infância Geraldo Cavalcante Chacon, conhecido como Bocão, destroçado aos 69 anos por um câncer no esôfago, um carcinoma epidermóide invasivo, tratado num momento em que – como ele postou no facebook – “o SUS/Am está sobrecarregado e tudo precisa ser feito em clínicas particulares, muitas delas também lotadas”. Amigos fiéis fizeram vaquinha para pagar sessões de rádio e quimioterapia, tomografias, endoscopias, biópsia - aquela via-crúcis que quem percorreu sabe como é.  

Há várias décadas eu não via o Geraldo Bocão ou Geraldo Boca de Canoa, abreviado depois para Boca - apelidos que ele assumiu com muito humor. Conheci sua mãe, dona Zildete, uma senhora magrinha casada com Jofre Chacon, companheiro de copo e de cruz do meu pai. O tempo e a geografia nos separaram, mas ficaram lembranças indeléveis da convivência pelas ruas, becos e igarapés do bairro de Aparecida, em Manaus, nas décadas de 1950-60. Uma delas ocorreu numa época em que as torneiras deixaram de pingar e a gente tinha de carregar água retirada em latas do igarapé de São Vicente para o consumo em casa.

Lata d´água na cabeça

Foi assim. Nesse dia, vários meninos, entre eles eu e o Bocão, subimos os degraus da escadaria, cada um equilibrando na cabeça uma lata d´água. Ele ia abastecer a casa da sua avó, dona Odete Periquita, uma costureira, mulher boa, mas muito estressada e terrivelmente autoritária, que morava nos altos da taberna do Fernando português, ali na esquina da Gustavo Sampaio com a Xavier. Lá de sua janela, ao ver que a lata estava pela metade, ela berrou e esculhambou o neto, desconsiderando que a lata cheia seria peso excessivo para uma criança.  

Num belo gesto de rebeldia que eu admirarei pelo resto da minha vida, o Bocão jogou a lata no chão e derramou toda a água, dando o troco:

- Então quem vai carregar agora é a senhora.

Desceu correndo a rua, enquanto o Zequinha, filho do Severino Pão Duro, que a tudo assistira, cantava uma marchinha de carnaval, sucesso na época, adaptada para a ocasião:  

- Lata d´água na cabeça, lá vai o Bocão, lá vai o Bocão...

A rebeldia contra o autoritarismo da dona Odete, que lhe deu uma surra, voltou a se manifestar na madrugada do Sábado de Aleluia, na popular e às vezes cruel cerimônia do “Serra Velho”, quando Bocão "serrou" sua própria avó. Com serrotes, pedaços de pau e latas, a turma de “serradores” fazia um barulho infernal na porta da casa de moradores idosos, entoando:

As caveiras do outro mundo / vieram lhe dizer-êêê / que agora neste ano / você vai morrer-êêê.

Depois gritavam em coro:

- Odete, encomende a alma a Deus, porque seu corpo já não vale nada.

A brincadeira, meio pesada, lembra “La Catrina” do México simbolizada na tradicional caveira, que celebra a fugacidade da vida e encara a morte com humor. No bairro de Aparecida, alguns velhos entendiam assim, como gozação, e até apareciam na janela para um dedo de prosa, como o seu Peres, padrinho de batismo do Bocão. Outros se irritavam, como dona Odete Periquita, que jogava cada ano o conteúdo de um penico sobre as “aves agourentas”.

Quase despedida

Geraldo Bocão, torcedor apaixonado do Botafogo, adorava bater uma bola em peladas memoráveis com os amigos. Queria ser o Garrincha e driblar o mundo. Nesta fase da vida em que trocamos os sonhos por lembranças, ele postou um texto poético e nostálgico, quase de despedida, que escreveu pouco antes de partir, aqui transcrito com ligeiros retoques, no qual idealiza a Manaus que se foi:  

- “Aí, se me perguntassem o que eu preferia diante da atual violência, insegurança e falta de respeito, eu responderia: a tranquilidade de outrora daquela Manaus pacata, sem luz, sem água e sem as “mordomias” de hoje, mas repleta de muita paz e amizades.

“Lembro das filas nas madrugadas para comprar apenas um pouco de carne, açúcar, feijão. Dos Blocos de Carnaval e do Mela-Mela com Maizena, dos arraiais e quermesses, do grandioso Festival Folclórico no campo do General Osório: as apresentações das tribos Andirás e Iurupixuna, dos bois-bumbá Tira Prosa, Corre Campo, Mina de Ouro, Coringa, Vencedor e do nosso Garrote Brinquedinho, do imbatível Luz de Guerra, do Pássaro Japiim da Tia Paquita e da Quadrilha Flor do Plano.

“Das fogueiras juninas enormes queimando nas ruas e das comilanças nas casas dos vizinhos. Do futebol dos grandes clássicos bem disputados Rio x Nal, Pai x Filho, Galo x Preto e das torcidas que lotavam os estádios da Colina e do Parque Amazonense. Do Cine Pulga dos Padres Redentoristas e dos filmes de caubói no terreno do Humberto Bacurau, nosso cinegrafista. Do Curral das Éguas - aquele cabaré que existia no flutuante do seu Zitão.

“Do Serra Velho e do roubo de porcos e galinhas para o banquete do Sábado de Aleluia. Das peladas jogadas na rua Xavier de Mendonça, na quadra do Colégio Aparecida, na prainha do Igarapé São Vicente. Do papagaio do Seu Geraldo e do Russo, do jogo de bolinha com caroço de tucumã e da brincadeira de “Geral” nas noites quentes de Manaus. Do banho de rio, de dia e de noite, após às nossas brincadeiras, das pescarias de tarrafa com o Auri na praia do GEF. Diria sem titubear, cem vezes melhor o tempo de criança/adolescente na Aparecida e naquela Manaus, garanto que não tinha igual”.

O texto do Bocão termina com uma frase em amazonês:

- “Teleze é? Viajei no Tempo”.

Fogo na roupa

Viajou mesmo. A ex-diretora do Ginásio de Aparecida, minha irmã Regina, acompanhou essa viagem e usou uma expressão da época para qualificar aquele aluno danado:

- O Bocão era “fogo-na-roupa”, me deu muita dor de cabeça.

Irreverente, peralta, transgressor, moleque no sentido mais positivo do termo, ele deixa uma lição de vida, de alegria, de insubordinação e de desobediência, tão necessária nesses tempos milicianos em que se tenta mergulhar o Brasil numa ditadura fascista. (Teleze é, Bocão? Eu tinha que mencionar isso, não tinha não?).

O sepultamento foi nessa sexta-feira (6). As saudades ficam nos fragmentos de sua memória, na estrela solitária do Botafogo e no seu modo de ser igarapé, de ser adeus. Lá onde está, deve ter encontrado a vovó Odete Periquita. Se ela frescar muito, corre o risco de ser “serrada” outra vez, bem nas barbas de São Pedro. O Bocão não brinca em serviço, nem no céu. 

P.S. – São vários irmãos: Nonato, Euclides, Jofre, José Ricardo, Paulo, Angélica, Cecília. Os pêsames da coluna Taquiprati à família enlutada, à esposa Ivaldete Chacon, aos filhos Mário e Bruna, à neta Camila e ao neto Bruno, motivo de orgulho do avô por haver se sagrado campeão brasileiro de Jiu Jitsu na categoria 15/16 anos. As condolências se estendem ao Grêmio Recreativo Escola de Samba Mocidade Independente de Aparecida e a Associação Comunitária

Obs: Agradecemos as fotos enviadas pelo Tuta e Regininha.

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29 Comentário(s)

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Cecilia Coimbra comentou:
10/08/2021
Belíssimo e emocionante texto!!! Que seu amigo vá na paz e na luz!!! Muita FORÇA pra todxs nós!! BJS
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Pucú Estoriador comentou:
09/08/2021
Como eu te disse, outro dia, pior sou eu que não tenho amigo de infância para lamenta. Snif..snif
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Jofre Chacon comentou:
09/08/2021
Descance em paz meu irmão
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Marcelo comentou:
28/11/2022
Que crônica interessante e generosa. Eu vim parar aqui porque eu vi um comentário dessa pessoa sobre política e fiquei curioso de quem era a tal pessoa. Como no Facebook dele não havia atividade há mais de um ano eu comecei a cogitar a possibilidade que ele tivesse morrido então eu pesquisei o nome dele no Google e achei essa crônica que certamente foi feita foi um amigo que gostava dele. É sempre duro ver a partida de alguém que se gosta
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Geraldo Chacon comentou:
26/05/2022
Amei o texto e entristeci com a notícia do falecimento de meu possível e distante parente. Pra evitar o câncer comam muito inhame. Vejam vídeo de Daniel Forjaz.
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Raimundo Nazareno comentou:
09/08/2021
Vai em paz, meu amigo. Grande bocão. Barulhento que só. Nas grandes peladas de futebol.
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Nilda Alves comentou:
09/08/2021
Querido Bessa, obrigada por lembrar e homenagear os seres humanos de verdade - os bons. Grande abraço Nilda
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Rodrigo martins comentou:
09/08/2021
Meus sentimentos professor, envio também meu abraço fraterno para todos os familiares do senhor Geraldo. Crônica emocionante. As vezes penso que a vida é como um reality show (como o BBB) e estamos confinados nessa grande casa que é a Terra e quando tem o "paredão" e alguém é eliminado (falece) e sai do nosso convívio ficamos tristes, choramos mas na verdade, todos os participantes eliminados estão lá fora nos esperando e nos assistindo e um dia todos nos reencontraremos. Um abraço querido professor
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Serafim Correa comentou:
08/08/2021
Republicado no Blog do Sarafa - https://www.blogdosarafa.com.br/geraldo-bocao-uma-viagem-no-tempo/
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Combate - Racismo Ambiental comentou:
08/08/2021
Republicado no Blog COMBATE - RACISMO AMBIENTAL. https://racismoambiental.net.br/2021/08/08/geraldo-bocao-uma-viagem-no-tempo-por-jose-ribamar-bessa-freire/
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Selma Kupski comentou:
08/08/2021
Meus sentimentos pelo seu amigo. Agora é só perda. Logo teremos mais forças pra encarar tdo isso. Hoje estamos muito fragilizados.
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Joao Roberto Bessa Freire comentou:
08/08/2021
Geraldo Bocão meu bom amigo de infância que Deus o receba em sua morada eterna!
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Adeice Torreias comentou:
08/08/2021
A cronica. Gosto demais mestre José Bessa . Sempre me mata de inveja desses textos que pra mim são perfeito. Sua aluna sempre aprendendo!
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Ivone Andrade (via FB) comentou:
08/08/2021
Viajei no tempo, minha canoa tá até o talo de saudades da Manaus de antigamente. Meus sentimentos José Bessa
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Decio Adams comentou:
08/08/2021
Lembranças inesquecíveis de infância. Creio que, mesmo vivendo 200 anos, as recordações dos folguedos de menino, das peraltices e traquinagens jamais nos esqueceríamos. Parabéns Bessa, por essa bela homenagem de um amigo/colega de infância/adolescência.
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Helaine Honorio Da Silva Aranha comentou:
08/08/2021
Esse Bocão realmente tinha história. Que descanse em paz ! A família minhas condolências.
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Marcos Dores Pena comentou:
08/08/2021
Como sempre! Linda homenagem!!
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Boanerges Modesto Seabra da Silva comentou:
07/08/2021
Grande botafoguense e amigo de infancia no bairro de Aparecida.
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Regina Cabral Freire comentou:
07/08/2021
Obrigada! Rindo das traquinagens do bocão com a lata d'água na cabeça...
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Mario Dandão comentou:
07/08/2021
Bocão era uma figura ímpar, uma apaixonado pela Aparecida.
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Regina Nakamura comentou:
07/08/2021
Muito legal essa crônica. Me deixou nostálgica
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Fransisco Antenor Ferreira comentou:
07/08/2021
CARACAS muito emocionado,pelas histórias,cada um teve sua passagem com Geraldo CHACON Que linda homenagem,, Merecida
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Ana Silva comentou:
07/08/2021
Lindo texto, Bessa. Ah, esse teu gênero de crônica é um nocaute de emoção!
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Claudio Nogueira comentou:
07/08/2021
Bela homenagem. Viver muito tem dessas coisas:. A vida parece que começa larga como tri}angulo com dois dos seus vértices e vai afunilando na direção de um único. Estive mês passado, depois de um tempo fora, na Aparecida e um morador, Paulo Jorge, fez o relato dos que já partiram recentemente (fizeste até uma crônica sobre isso). Agora mais esse. Espero que a cota tenha sido preenchida. Manaus tem outros bairros também.
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Zeca Torres Torrinho comentou:
07/08/2021
Emocionada e emocionante homenagem.
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Celeste Correa comentou:
07/08/2021
Babá, eu voltei as minhas origens com a tua crônica. Quem viveu a infância no Bairro de Aparecida certamente conhece cada uma dessas brincadeiras. E lembrará do Geraldo Bocão e da tranquilidade daquela Manaus que ele descreveu lindamente no seu último texto cheio de nostalgia. Essa homenagem do Taquiprati traduz o sentimento de toda aquela turma que viveu e cresceu junto com o Bocão, um sentimento de empobrecimento afetivo pela partida de um amigo querido. O Bairro de Aparecida fica mais pobre, mas o teu humor ao descrever as estripulias do nosso amigo, suaviza um pouco a danada da morte e o eterniza nas nossas memórias. Então aproveito o título de um livro que escreveste" Essa Manaus que se vai", e o parafraseio para também me despedir do nosso amigo de infância: Esse Bairro de Aparecida que se vai.. Descanse em paz, botafoguense!
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Isabella Thiago de Mello comentou:
07/08/2021
Que homenagem linda ao amigo de infância e à Manaus...Com certeza Bocão já está aprontando alguma lá em cima...Meus sentimentos a ti, Bessa e à família.
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Maris Teca comentou:
07/08/2021
Lindo Babá. Fiquei "mocionada" como diz a Dadá .
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Angela Dile comentou:
07/08/2021
Lendo me deu saudades desta Aparecida que se foi
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