CRÔNICAS

Doutor Geraldo e os terreiros de Manaus

Em: 29 de Março de 1996 Visualizações: 19725
Doutor Geraldo e os terreiros de Manaus

O Museu do Homem, em Paris, conhece muito bem o homem que nesta segunda-feira de manhã partiu, deixando o Amazonas de luto. A biblioteca dessa instituição coleciona artigos de pesquisadores franceses, alemães e americanos que passaram por Manaus e agradeceram publicamente a contribuição dada pelo doutor Geraldo de Macedo Pinheiro às suas pesquisas.

Geraldo Pinheiro era um erudito. Dominava vários idiomas, inclusive o alemão, cujos rudimentos básicos aprendeu ainda com o padre Paulino, no Colégio Dom Bosco. Quando no Amazonas sequer existia universidade e ninguém falava em antropologia, ele já ensaiava os primeiros passos na compreensão do outro, do diferente, ao lado de seu amigo autodidata Nunes Pereira.

Manteve contatos estreitos com a magia e os pajés de Curt Nimuendaju, com os santos e visagens de Eduardo Galvão, com a cozinha indígena estudada por Nunes Pereira. Trocava cartas e figurinhas com grandes cientistas nacionais e estrangeiros, como Lévi-Strauss, Alfred Metraux – que o cita em seu diário quando de sua passagem por Manaus – Roger Bastide, Egon Schaden, Harald Schultz, Harold Sioli, Peter Paul Hilbert, Hebert Baldus, Walter Egler e tantos outros que se dedicaram a estudar os mais variados aspectos da Amazônia.

Os principais pesquisadores que passavam por Manaus o procuravam, porque sabiam que tinham nele um interlocutor inteligente e generoso, capaz de oferecer indicações e pistas valiosas. Além de sua biblioteca particular, organizada durante décadas com preciosidades raras, ele era um arquivo ambulante, que se mantinha permanentemente atualizado com a realidade e com a ciência contemporânea.

Os conhecimentos por ele produzidos foram transmitidos, quase sempre, oralmente ou permanecem arquivados na copiosa correspondência acadêmica que sustentou com outros cientistas. Pessoalmente, publicou pouco. Apesar disso, o antropólogo canadense Chester Gabriel, em seu trabalho sobre a origem dos cultos africanos no Brasil, tira o chapéu com muita reverência para Geraldo Pinheiro, situando-o como a grande referência no Amazonas, especialmente pelos seus trabalhos sobre a comunidade negra da Praça XIV.

Na comunicação escrita em dezembro de 1942, publicada no livro “A Casa das Minas”, de Nunes Pereira, o doutor Geraldo dá conta das pesquisas que vinha realizando nos terreiros e batuques dos subúrbios de Manaus, particularmente nos terreiros da Mãe Quintina, da Maria Rita e da Mãe Joana. Esta última, segundo ele, era “conceituada por muitos que lhe conheciam, de perto, as excelências de uma alma boa e abnegada, mas que enchia de terror, por sua vez, a nós outros, quando crianças, ao ouvir, nas noites fechadas, o som longínquo e soturno dos tambores”.

A opinião pública amazonense conhece o advogado competente e o profissional honesto, que exerceu funções jurídicas na administração pública. Lembra-se, seguramente, do secretário de Justiça, na década de 70, que dispensou carro com motorista, honrarias, mordomias e badalações, e que olhava o poder com profunda ironia e refinado humor. Mas suas atividades acadêmicas e intelectuais talvez acabaram sendo mais conhecidas fora do Amazonas. A grande contribuição do doutor Geraldo consistiu em demonstrar que a influência negra na cultura de Manaus se verificou nos batuques, na religião, na vida citadina e na produção moral e intelectual da cidade.

Era um sábio. Tinha o orgulho, a modéstia e a simplicidade de um sábio. Por isso, mantinha um distanciamento quilométrico dos sabidinhos, dos sabichões e dos picaretas medíocres e provincianos, que se autopromovem através do discurso vazio e da retórica retumbante. Contrário a qualquer tipo de publicidade, em vida não gostaria de ler um artigo de jornal, lembrando, por exemplo, suas relações com a comunidade acadêmica internacional.

O filho do jornalista e poeta maranhense Raymundo Nonato Pinheiro e da professora Diana de Macedo Pinheiro – o doutor Geraldo – deixou muitos ensinamentos para a juventude. Sua morte é uma perda realmente irreparável: para a família, que chora a ausência do seu chefe; para o Amazonas, que perde um intelectual de verdade, responsável pela acumulação e organização do saber, traduzido no amor à sua terra natal. Era um dos nossos. Vamos sentir muito a falta dele.

P.S - A foto da escola é de autoria de Geraldo Azedo. Sobre a outra foto, escreve o filho, historiador Geraldo Sá Peixoto Pinheiro: "Aqui está uma foto do papai, tirada em final dos anos 40 ou talvez no início dos anos 50. Não sei bem o local, mas pode ser nas barrancas de Itacoatiara. Pessoalmente, penso que foi através dessas margens, ou melhor do estudo da coisa e do ser marginal, marginalizado, que ele encontrava a razão de viver. Daí nunca ser indiferente ao índio, ao negro e a toda sorte de excluídos sociais, sem esquecer sua sensibilidade ao pobre e ao louco. Podes guardar a foto na cópia que te faço do "Natureza, Doenças...."do Martius, registrado por ele em sua biblioteca sob o número 279 e 613. Com um abraço do Geraldo". 

 
 

 

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7 Comentário(s)

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Paulo Figueiredo comentou:
07/08/2017
O Geraldo Pinheiro foi muito amigo de meu pai em Itacoatiara, onde foi promotor de Justiça. A fotografia que ilustra a crônica foi feita em frente à cidade de Itacoatiara. Tenho em meus arquivos algumas fotografias de meu pai, o velho Adamastor Onety de Figueiredo, com alguns amigos, tiradas pelo Geraldo, que também se tornaria meu amigo e que me chamava de Adamastorzinho. Foi um homem notável, expressão brilhante e culta de nossos valores mais autênticos. Grande abraço, meu caro Ribamar.
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Mailsa Passos comentou:
07/08/2017
Linda crônica, Bessa querido! E linda homenagem! Como sempre!
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Graciemiliadossantosbarbosa comentou:
07/08/2017
Tenho lido várias crônicas da série Taquiprati. Acabei de ler sobre o Dr. Geraldo Pinheiro. Belo texto, grandes recordações. Bessa, você é sensacional ao discorrer sobre grandes figuras do nosso querido e saudoso Amazonas. Além de analisar as qualidades morais e intelectuais do escolhido, você nos reporta para o tempo vivido e nos deixa viajar nos acontecimentos da época. Acho que dona Diana era mãe do Padre Nonato e dona do Colégio São Geraldo na rua Vinte e quatro de Maio. Meu irmão era seu aluno, devido ao fato de ser ela muito amiga de minha saudosa mãe. Excelente texto! Parabéns!
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Geraldo São Peixoto Pinheiro comentou:
07/08/2017
Não canso de reler essa crônica! Excelente, mesmo!
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Aurelio Michiles (via FB) comentou:
18/08/2016
Conheci pessoalmente Doutor Geraldo, tive oportunidade de conversar com ele sobre assuntos variados, tinha uma memória privilegiada e um jeito peculiar de contar causos.
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Ana Lúcia Santos de Souza comentou:
18/08/2016
Professor... Se conheço um pouco da minha doce Ita, essa imagem deve ser nas pedras do Jauary. ..
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Paulo Bezerra comentou:
05/04/2011
Excelente crônica. Não tive a oportunidade de usufruir do convívio do Dr. Geraldo, mas me relaciono com quase todos os seus filhos. E, com a permissão de um deles, o Dr. Jerônimo Pinheiro, as vezes, utilizo o escritório jurídico que fora do seu pai, o Dr. Geraldo. Como diz o ditado "A boa árvore se conhece pelos seus frutos". Saudações a família Pinheiro na pessoa do seu patriarca Dr. Geraldo Pinheiro, in memoriam.
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