O Museu do Homem, em Paris, conhece muito bem o homem que nesta segunda-feira de manhã partiu, deixando o Amazonas de luto. A biblioteca dessa instituição coleciona artigos de pesquisadores franceses, alemães e americanos que passaram por Manaus e agradeceram publicamente a contribuição dada pelo doutor Geraldo de Macedo Pinheiro às suas pesquisas.
Geraldo Pinheiro era um erudito. Dominava vários idiomas, inclusive o alemão, cujos rudimentos básicos aprendeu ainda com o padre Paulino, no Colégio Dom Bosco. Quando no Amazonas sequer existia universidade e ninguém falava em antropologia, ele já ensaiava os primeiros passos na compreensão do outro, do diferente, ao lado de seu amigo autodidata Nunes Pereira.
Manteve contatos estreitos com a magia e os pajés de Curt Nimuendaju, com os santos e visagens de Eduardo Galvão, com a cozinha indígena estudada por Nunes Pereira. Trocava cartas e figurinhas com grandes cientistas nacionais e estrangeiros, como Lévi-Strauss, Alfred Metraux – que o cita em seu diário quando de sua passagem por Manaus – Roger Bastide, Egon Schaden, Harald Schultz, Harold Sioli, Peter Paul Hilbert, Hebert Baldus, Walter Egler e tantos outros que se dedicaram a estudar os mais variados aspectos da Amazônia.
Os principais pesquisadores que passavam por Manaus o procuravam, porque sabiam que tinham nele um interlocutor inteligente e generoso, capaz de oferecer indicações e pistas valiosas. Além de sua biblioteca particular, organizada durante décadas com preciosidades raras, ele era um arquivo ambulante, que se mantinha permanentemente atualizado com a realidade e com a ciência contemporânea.
Os conhecimentos por ele produzidos foram transmitidos, quase sempre, oralmente ou permanecem arquivados na copiosa correspondência acadêmica que sustentou com outros cientistas. Pessoalmente, publicou pouco. Apesar disso, o antropólogo canadense Chester Gabriel, em seu trabalho sobre a origem dos cultos africanos no Brasil, tira o chapéu com muita reverência para Geraldo Pinheiro, situando-o como a grande referência no Amazonas, especialmente pelos seus trabalhos sobre a comunidade negra da Praça XIV.
Na comunicação escrita em dezembro de 1942, publicada no livro “A Casa das Minas”, de Nunes Pereira, o doutor Geraldo dá conta das pesquisas que vinha realizando nos terreiros e batuques dos subúrbios de Manaus, particularmente nos terreiros da Mãe Quintina, da Maria Rita e da Mãe Joana. Esta última, segundo ele, era “conceituada por muitos que lhe conheciam, de perto, as excelências de uma alma boa e abnegada, mas que enchia de terror, por sua vez, a nós outros, quando crianças, ao ouvir, nas noites fechadas, o som longínquo e soturno dos tambores”.
A opinião pública amazonense conhece o advogado competente e o profissional honesto, que exerceu funções jurídicas na administração pública. Lembra-se, seguramente, do secretário de Justiça, na década de 70, que dispensou carro com motorista, honrarias, mordomias e badalações, e que olhava o poder com profunda ironia e refinado humor. Mas suas atividades acadêmicas e intelectuais talvez acabaram sendo mais conhecidas fora do Amazonas. A grande contribuição do doutor Geraldo consistiu em demonstrar que a influência negra na cultura de Manaus se verificou nos batuques, na religião, na vida citadina e na produção moral e intelectual da cidade.
Era um sábio. Tinha o orgulho, a modéstia e a simplicidade de um sábio. Por isso, mantinha um distanciamento quilométrico dos sabidinhos, dos sabichões e dos picaretas medíocres e provincianos, que se autopromovem através do discurso vazio e da retórica retumbante. Contrário a qualquer tipo de publicidade, em vida não gostaria de ler um artigo de jornal, lembrando, por exemplo, suas relações com a comunidade acadêmica internacional.
O filho do jornalista e poeta maranhense Raymundo Nonato Pinheiro e da professora Diana de Macedo Pinheiro – o doutor Geraldo – deixou muitos ensinamentos para a juventude. Sua morte é uma perda realmente irreparável: para a família, que chora a ausência do seu chefe; para o Amazonas, que perde um intelectual de verdade, responsável pela acumulação e organização do saber, traduzido no amor à sua terra natal. Era um dos nossos. Vamos sentir muito a falta dele.
P.S - A foto da escola é de autoria de Geraldo Azedo. Sobre a outra foto, escreve o filho, historiador Geraldo Sá Peixoto Pinheiro: "Aqui está uma foto do papai, tirada em final dos anos 40 ou talvez no início dos anos 50. Não sei bem o local, mas pode ser nas barrancas de Itacoatiara. Pessoalmente, penso que foi através dessas margens, ou melhor do estudo da coisa e do ser marginal, marginalizado, que ele encontrava a razão de viver. Daí nunca ser indiferente ao índio, ao negro e a toda sorte de excluídos sociais, sem esquecer sua sensibilidade ao pobre e ao louco. Podes guardar a foto na cópia que te faço do "Natureza, Doenças...."do Martius, registrado por ele em sua biblioteca sob o número 279 e 613. Com um abraço do Geraldo".