“A oralidade é o barulho da vida que temos dentro do nosso corpo”.
(Alcindo Moreira Wherá Tupã, 2015).
Se o terceiro porquinho urbano construísse na cidade sua casa de tijolo e cimento, ela poderia ser derrubada pelo furacão e pelas chuvas como vimos nas recentes imagens televisivas das tragédias em Flórida, Valência e Porto Alegre. Seria mais seguro se salvar nas casas de palha e madeira que resistem ao sopro do lobo, se edificadas no meio da floresta pelos outros dois porquinhos do mato, com técnica indígena que agrega “material invisível”: direção do vento, rotação do sol, localização das árvores e curso dos rios, a exemplo das malocas Suruí-Aikewara da Terra Indígena Sororó (PA), que assim se protegem da ventania e do temporal.
Este relato descrito no projeto sobre cartografias amazônicas, coordenado por Ivania Neves, do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA), abriu nossa aula inaugural Línguas e Narrativas Indígenas: as histórias que são contadas, ministrada na segunda-feira (4) para 76 alunos do curso de formação de professores indígenas no campus Floresta da Universidade Federal do Acre (UFAC), em Cruzeiro do Sul. Lembramos que na oficina de contação de histórias na aldeia, o velho narrador Umassu Suruí, depois de ler o livro infantil Os Três Porquinhos de autoria do australiano Joseph Jacobs, mandou ver:
- “Nas histórias que vocês contam, tudo que é técnica indígena é ruim. Nessa versão dos três porquinhos, a casa de palha é a primeira que vai pelos ares com o sopro do lobo. Mas aqui na aldeia, o vento não derruba a casa que a gente constrói, como faz nas cidades, quando prédios de tijolo caem e matam muita gente”.
Nem a academia escapa do eurocentrismo. Um pesquisador alemão, num congresso em 2005, em Bielefeld, citou o castelo medieval de pedra daquela cidade construído em 1240-1250 e o igualou à escrita, pois “ambos duram milênios” e, por isso, “são superiores à casa de palha que, como a oralidade, tem vida curta”. No aparte que então pedi, contei ter nascido em Manaus, onde os portugueses construíram um forte de pedra, em 1669, do qual não sobrou sequer uma pedrinha. Mas as malocas estão lá, no meio da floresta, há milênios, porque a técnica de construí-las permanece, transmitida oralmente de geração a geração. A oralidade, longe de ter vida curta, garante a permanência da maloca.
Territórios narrados
Mais do que o material usado na construção, a fragilidade depende da política de preservação do patrimônio e da memória. Quem concorda com isso é a Faculdade de Arquitetura da UFMG que criou em 2015 a disciplina Arquitetura e Cosmociência e convidou para ministrá-la duas sábias Xacriabá. No final, em aulas práticas, elas construíram no campus Pampulha uma casa tradicional de pau-a-pique, conforme conta Célia Xacriabá em sua dissertação de mestrado na UnB. Explicaram que o que deve durar milênios não é a casa, mas os saberes de como construí-la. Assim, quando a casa envelhece ou perece, se edifica outra e é esse o momento usado pela pedagogia xacriabá para passar esses ensinamentos aos jovens.
Arquitetura, engenharia, história, literatura... O eurocentrismo e a colonialidade impregnaram muitas áreas do conhecimento. Por não usarem o alfabeto antes da invasão da América, os povos indígenas foram discriminados pelo colonizador como “carentes” de escrita, na realidade eram “independentes desse tipo de escrita” – a alfabética - desnecessária até então para a criação e reprodução das culturas ameríndias, que usavam outras formas de registros escritos não-alfabéticos, além da oralidade, desconhecidos pela própria academia. Fortaleceu assim o preconceito colonial, que tratava as línguas indígenas como inferiores, apesar de possuírem todos os atributos de qualquer língua.
A partir do Rio Babel - a história das línguas na Amazônia, resumimos na aula as políticas de línguas que reprimiram as falas e as narrativas indígenas e analisamos historicamente o deslocamento linguístico para explicar a hegemonia inicial da Língua Geral e depois do português, assim como o destino das línguas ameríndias e os saberes que nelas circulam. Das mais de 1.000 línguas faladas na Pan-Amazônia, centenas foram silenciadas e exterminadas. O glotocídio sepultou muitas narrativas, mas a resistência, que tomou várias formas em cinco séculos, agora se manifesta em projetos literários de salvaguarda da memória e do patrimônio em países amazônicos como Colômbia, Equador, Peru e Brasil.
Na Colômbia, o projeto Territórios Narrados do Plano Nacional de Leitura e Escrita do Ministério de Educação Nacional, já produziu cerca de 40 livros em línguas ancestrais, nos últimos dez anos, com o objetivo de tornar conhecida a musicalidade das línguas colombianas e de dar visibilidade à diversidade cultural do país. Os livros elaborados coletivamente e usados nas escolas incluem glossários para facilitar sua leitura pelos alunos.
Territorios Narrados valoriza as diferentes formas de linguagem: a oralidade e todos tipos de registro, não apenas o alfabético, cuja leitura permite compreender o território onde as culturas florescem. Reconhece que esses povos escrevem nas pulseiras, nos colares, nas redes, nas cestas, na cerâmica, nas bolsas, nos tecidos, na palha e em todo tipo de artesanato. "Todas essas escritas são formas de ver o mundo, de compreendê-lo e de habitá-lo", e são traduzidas em enunciados que dão vida à imaginação e à curiosidade.
Cabaças que falam
No caso do mundo andino, demos exemplos das histórias escritas no Equador em cabaças, que tem a casca dura parecida com madeira e incorporaram a técnica tradicional do “mate burilado” existente antes da invasão espanhola. Agora, buriladas e pirogravadas com uma técnica refinada, as cabaças contam histórias num trabalho decorativo e artístico feito com um pirógrafo – aparelho elétrico em forma de caneta com ponta de metal, que usa o calor para gravar ilustrações, desenhos e textos com impecáveis requintes estéticos.
Foram mostradas, como exemplos, oito cabaças, a maior do tamanho de uma bola de basquete, a menor da dimensão de uma laranja, com narrativas sobre a vida doméstica, o relacionamento com os pais, a educação das crianças, o namoro, o casamento, o cultivo de plantas, a colheita, o pastoreio do gado, os costumes, os conflitos, a luta pela terra.
Sobre o Peru, destacamos o projeto “Cuentos Pintados” da Universidad Nacional Mayor de San Marcos (UNMSM) concebido pelo historiador Pablo Macera e a antropóloga Rosaura Andazábal, que publicaram 25 livros de autores indígenas em edições bilingues (espanhol e idiomas nativos), com narrativas ilustradas e uma rica iconografia referentes aos saberes que circulam na oralidade.
Os autores de “Cuentos Pintados” desenham os cenários, os personagens principais e secundários, as formas como se relacionam, os conflitos e agressões, os heróis e os bandidos, com todos os componentes básicos do enredo dos contos populares russos estudados por Vladimir Propp. Aqui as ilustrações servem de guia para a narrativa oral, que originalmente não continha textos escritos, como agora nas edições bilingues, que transcrevem as falas do narrador.
Na escrita, a edição cuidadosa da UNMSM respeita a variedade do espanhol indígena com marcas das línguas quéchua, uma hibridez linguística que é fruto das línguas em contato. Por isso, o texto não segue a norma padrão da língua espanhola considerada preconceituosamente como a “forma certa de falar e escrever”.
- “O resultado foi um esplêndido quechuanhol, no qual a escrita está transpassada pela oralidade” – escreveu Macera, para quem nós não estaríamos falando hoje espanhol, português, francês, italiano – que eram variantes “erradas” do latim clássico - se o Império Romano tivesse conseguido impedir o uso do “errado” latim vulgar. Essa discussão se deu também em vários outros países.
Narrativas gráficas
No Brasil, a antropóloga Berta Ribeiro denominou de narrativas gráficas a literatura indígena similar aos cuentos pintados do Peru, onde viveu exilada e pôde observar a literatura andina. Ela estimulou os Desana Umúsin (Firmiano Lana) e seu filho Tolamãn (Luis Lana) – “filhos dos desenhos do sonho” - a publicar “Antes o Mundo Não Existia”, em 1980, que quinze anos depois abriria, em nova edição, a coleção Narradores Indígenas com outros mitos: a origem da noite, o roubo das flautas sagradas, o benzimento da moça na sua primeira menstruação e orações para curar doenças. Os desenhos do primo Feliciano Lana percorreram o mundo em exposições na Europa.
O Mito Tukano – Histórias proibidas do Começo do Mundo e dos Primeiros Seres escrito pelo kumu Gabriel dos Santos Gentil e publicado em edição bilingue tukano-português na Suíça, foi o outro livro mencionado, que reflete o estranhamento do mito do Velho Testamento, no qual o criador é figura masculina, sem útero para procriar, ao contrário da avó do mundo – a Ye´pá – que foi fecundada pela música, o que provocou, uma explosão, que lembra a teoria do Big Bang sobre a origem do Universo.
As ilustrações variam de livro para livro, em algumas são dominantes, em outras cedem espaço para o texto, como em Moqueca de Maridos – Mitos Eróticos, com narrativas em seis línguas indígenas faladas em Rondônia, cujos autores são 32 narradores e tradutores gravados por Betty Mindlin, para quem “escrever muda o modo de pensar e de narrar, mas talvez a escrita e a tradição oral não sejam tão incompatíveis como se imagina e se divulga”.
São muitas publicações monolíngues ou bilingues. O projeto “A natureza segundo os Ticuna” - povo transfronteiriço que habita territórios dentro de três países: Brasil, Peru e Colômbia – editou O Livro das Árvores organizado pela artista plástica Jussara Gruber com desenhos individuais e textos coletivos dos Ticuna sobre flora e fauna regionais, a relação deles com a floresta e o significado de espécies nativas para sua sobrevivência física e cultural. Uma delas, a samaumeira, escurecia o mundo porque a preguiça-real prendia lá no céu os seus galhos. O quatipuru ajudou a derrubar a árvore, clareando o mundo, o tronco caído formou o rio Solimões e os galhos, os afluentes e os igarapés, incluindo o sagrado igarapé Eware.
Três volumes dos Mitos Ticuna da Coleção Eware são frutos de oficinas realizadas com professores bilingues, assim como o livro Tchorü Duṻṻ güca' Tchanu - Minha Luta pelo meu povo - editado pela Eduff, ricamente ilustrado com desenhos, fotos, mapas que complementam o texto autobiográfico do sábio Pedro Inácio Pinheiro.
Jacaré huni kuin
Citamos ainda “Índios no Acre: história e organização” escrito por professores bilíngues de nove etnias no curso da Comissão Proíndio (CPI-AC). Eles encontraram uma saída para enfrentar a incompatibilidade entre a versão indígena e a científica sobre o povoamento da América. Não hesitaram em incorporar ambas: uma, que circula nas universidades, de uso externo, narra a passagem pelo estreito de Bering durante a última era glacial. A outra de uso interno, recolhida por Edson Ixã, professor Huni Kuin (Kaxinawá), conta a travessia feita na costa de um jacaré gigante. Versões de outros povos não apenas indígena, mas também africanos, foram inseridas no livro.
Textos de autoria de escritores indígenas foram mencionados, entre outros: Aylton Krenak, membro da Academia Brasileira de Letras, Eliane Potiguara, Marcia Kambeba, Edson Kayapó, Daniel Munduruku, Ademario Payayá.
A exposição do projeto “Poéticas da Oralidade Indígena no Contemporâneo: Cartografias Amazônicas” aprovado pelo CNPq, finalizou a aula inaugural. Dele fazem parte 13 programas de pós-graduação e 2 licenciaturas de universidades amazônicas. Seus principais protagonistas são indígenas que, em registros audiovisuais bilingues (língua indígena-português), já começaram a gravar diferentes gêneros de sua livre escolha: narrativas cosmológicas e de contato, histórias de vida, rituais, poesias e canções.
- Nossa proposta prioriza as poéticas da oralidade, as línguas indígenas e seus usos sociais, capazes de visibilizar diferentes cosmovisões indígenas, de instaurar uma percepção mais plural do contemporâneo – escreveu Ivania Neves, destacando que os indígenas serão os autores e não “meros informantes”. O objetivo específico é produzir mapas das poéticas da oralidade e identificar as línguas indígenas para revelar-nos a Amazônia brasileira, porque “A Amazônia que nós habitamos e a que nos habita não são as mesmas” - diz Gerson Albuquerque, coordenador na UFAC do PPGLI – Programa de Pós-Graduação em Letras: Linguagem e Identidade.
O resultado final será publicado em livro e em um documentário audiovisual, dando continuidade a outro projeto “O Mapa das línguas indígenas no estado do Pará” do Programa de Letras da UFPA iniciado em 2021, em plena pandemia.
No debate que se seguiu à aula inaugural, alunos indígenas, professores e representantes da Secretaria de Educação se manifestaram com perguntas, observações e comentários sobre narrativa e educação indígena. A reitora Guida Aquino e a pró-reitora de Graduação Ednaceli Damasceno, presentes no evento, manifestaram apoio ao projeto.
Que história é essa?
A aula terminou com a paródia ao programa televisivo “Que história é essa Porchat?”, onde convidados contam histórias e no final são interpelados pelo humorista Fábio Porchat:
- Você morreu. Chega no céu. O que deve ter lá senão você não entra?
As respostas são as mais diversas. A minha seria:
- Indígena. Se não tiver no céu literatura e música indígena, eu não entro. Não entro.
- Professor, o senhor já entrou. Aqui é o céu - falou a professora Simone.
Como vale o que é falado e ouvido, quando não foi escrito e lido, entrei primeiro no céu e só depois no CEL - o Centro de Educação e Letras da UFAC, a convite de sua diretora Simone Cordeiro
A entrada no céu ocorreu no dia seguinte, quando ouvimos “o barulho da vida saindo de corpos indígenas" nas gravações de histórias contadas por cinco alunos em quatro diferentes línguas ancestrais: 1) Sabá Manchineri: 3) Txima Inani Bake (Huni Kuin); 3) Sheré Noke Kuĩ (Katukina), 4. Siná Yawanawa; 5. Siã Inu Bake Huni Kuin, os dois últimos filmaram também os outros colegas com o apoio do professor Amilton Matos. As cinco narrativas serão resumidas em outro texto. O artista plástico Cledeilton Huni Kuin também produziu uma narrativa gráfica.
P.S. 1 – A UFAC participa do projeto Cartografias Amazônicas através do PPGLI coordenado por Gerson Rodrigues com a participação, entre outros, dos docentes Shelton Lima e Francisco Bento da Silva, além do Curso de Licenciatura Indígena do campus Floresta, em Cruzeiro do Sul, coordenado por Maria Isabel Afonso e José Alessandro.
P.S. 2 – As fotos das cabaças foram feitas em aulas com crianças do ensino fundamental em 5 escolas no Rio e em Niterói, duas das quais recentemente, que serão objeto de outra crônica.
Referências
1. Como amansar a escola? O barro, o jenipapo e o giz: http://www.taquiprati.com.br/cronica/1409-como-amansar-a-escola-o-barro-o-jenipapo-o-giz
2. Entre a maloca e o castelo, o Belão: http://www.taquiprati.com.br/cronica/132-entre-a-maloca-e-o-castelo-o-belao
3. Territorios Narrados: o menino Jesus Arhuaco: http://www.taquiprati.com.br/cronica/1087-territorios-narrados-o-menino-jesus-arhuaco-en-espa
4. Narrativa gráfica Dessana: desenhando os sonhos: http://www.taquiprati.com.br/cronica/136-narrativa-grafica-dessana-desenhando-sonhos
5. Livro bilingue Tikuna: morro por essa terra: http://www.taquiprati.com.br/cronica/1134-livro-bilingue-ticuna-morro-por-esta-terra-
6. Os índios na Copa: Oga mitá: https://www.taquiprati.com.br/cronica/1402-os-indios-na-copa-o-jogo-em-oga-mita
7. A Cura da doença: Feliciano Dessana e os Kokama: https://www.taquiprati.com.br/cronica/1524-a-cura-da-doenca-feliciano-dessana-e-os-kokama
8. Na maloca, uma câmara na mão - https://www.taquiprati.com.br/cronica/1172-na-maloca-uma-c
9. Constantino, museólogo Tikuna na canoa das almas - https://www.taquiprati.com.br/cronica/1007-constantino-museologo-tikuna-na-canoa-das-almas
10. Mãe Cici de Oxalá e os analfabetos da oralidade - https://www.taquiprati.com.br/cronica/1743-mae-cici-de-oxala-e-os-analfabetos-da-oralidade
11. A Escola Yanomami: leva e traz histórias - https://www.taquiprati.com.br/cronica/1369-a-escola-yanomami-leva-e-traz-historias