CRÔNICAS

Três Porquinhos: oralidade e escrita em língua indígena

Em: 10 de Novembro de 2024 Visualizações: 816
Três Porquinhos: oralidade e escrita em língua indígena

(ABAJO VERSIÓN EN ESPAÑOL)

“A oralidade é o barulho da vida que temos dentro do nosso corpo”. 

(Alcindo Moreira Wherá Tupã, 2015).

Se o terceiro porquinho urbano construísse na cidade sua casa de tijolo e cimento, ela poderia ser derrubada pelo furacão e pelas chuvas como vimos nas recentes imagens televisivas das tragédias em Flórida, Valência e Porto Alegre. Seria mais seguro se salvar nas casas de palha e madeira que resistem ao sopro do lobo, se edificadas no meio da floresta pelos outros dois porquinhos do mato, com técnica indígena que agrega “material invisível”: direção do vento, rotação do sol, localização das árvores e curso dos rios, a exemplo das malocas Suruí-Aikewara da Terra Indígena Sororó (PA), que assim se protegem da ventania e do temporal. 

Este relato descrito no projeto sobre cartografias amazônicas, coordenado por Ivania Neves, do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA), abriu nossa aula inaugural Línguas e Narrativas Indígenas: as histórias que são contadas, ministrada na segunda-feira (4) para 76 alunos do curso de formação de professores indígenas no campus Floresta da Universidade Federal do Acre (UFAC), em Cruzeiro do Sul.  Lembramos que na oficina de contação de histórias na aldeia, o velho narrador Umassu Suruí, depois de ler o livro infantil Os Três Porquinhos de autoria do australiano Joseph Jacobs, mandou ver:

- “Nas histórias que vocês contam, tudo que é técnica indígena é ruim. Nessa versão dos três porquinhos, a casa de palha é a primeira que vai pelos ares com o sopro do lobo. Mas aqui na aldeia, o vento não derruba a casa que a gente constrói, como faz nas cidades, quando prédios de tijolo caem e matam muita gente”.

Nem a academia escapa do eurocentrismo. Um pesquisador alemão, num congresso em 2005, em Bielefeld, citou o castelo medieval de pedra daquela cidade construído em 1240-1250 e o igualou à escrita, pois “ambos duram milênios” e, por isso, “são superiores à casa de palha que, como a oralidade, tem vida curta”. No aparte que então pedi, contei ter nascido em Manaus, onde os portugueses construíram um forte de pedra, em 1669, do qual não sobrou sequer uma pedrinha. Mas as malocas estão lá, no meio da floresta, há milênios, porque a técnica de construí-las permanece, transmitida oralmente de geração a geração. A oralidade, longe de ter vida curta, garante a permanência da maloca.

Territórios narrados

Mais do que o material usado na construção, a fragilidade depende da política de preservação do patrimônio e da memória. Quem concorda com isso é a Faculdade de Arquitetura da UFMG que criou em 2015 a disciplina Arquitetura e Cosmociência e convidou para ministrá-la duas sábias Xacriabá. No final, em aulas práticas, elas construíram no campus Pampulha uma casa tradicional de pau-a-pique, conforme conta Célia Xacriabá em sua dissertação de mestrado na UnB. Explicaram que o que deve durar milênios não é a casa, mas os saberes de como construí-la. Assim, quando a casa envelhece ou perece, se edifica outra e é esse o momento usado pela pedagogia xacriabá para passar esses ensinamentos aos jovens.  

Arquitetura, engenharia, história, literatura... O eurocentrismo e a colonialidade impregnaram muitas áreas do conhecimento. Por não usarem o alfabeto antes da invasão da América, os povos indígenas foram discriminados pelo colonizador como “carentes” de escrita, na realidade eram “independentes desse tipo de escrita”a alfabética - desnecessária até então para a criação e reprodução das culturas ameríndias, que usavam outras formas de registros escritos não-alfabéticos, além da oralidade, desconhecidos pela própria academia. Fortaleceu assim o preconceito colonial, que tratava as línguas indígenas como inferiores, apesar de possuírem todos os atributos de qualquer língua.  

A partir do Rio Babel - a história das línguas na Amazônia, resumimos na aula as políticas de línguas que reprimiram as falas e as narrativas indígenas e analisamos historicamente o deslocamento linguístico para explicar a hegemonia inicial da Língua Geral e depois do português, assim como o destino das línguas ameríndias e os saberes que nelas circulam. Das mais de 1.000 línguas faladas na Pan-Amazônia, centenas foram silenciadas e exterminadas. O glotocídio sepultou muitas narrativas, mas a resistência, que tomou várias formas em cinco séculos, agora se manifesta em projetos literários de salvaguarda da memória e do patrimônio em países amazônicos como Colômbia, Equador, Peru e Brasil.

Na Colômbia, o projeto Territórios Narrados do Plano Nacional de Leitura e Escrita do Ministério de Educação Nacional, já produziu cerca de 40 livros em línguas ancestrais, nos últimos dez anos, com o objetivo de tornar conhecida a musicalidade das línguas colombianas e de dar visibilidade à diversidade cultural do país. Os livros elaborados coletivamente e usados nas escolas incluem glossários para facilitar sua leitura pelos alunos.

Territorios Narrados valoriza as diferentes formas de linguagem: a oralidade e todos tipos de registro, não apenas o alfabético, cuja leitura permite compreender o território onde as culturas florescem. Reconhece que esses povos escrevem nas pulseiras, nos colares, nas redes, nas cestas, na cerâmica, nas bolsas, nos tecidos, na palha e em todo tipo de artesanato. "Todas essas escritas são formas de ver o mundo, de compreendê-lo e de habitá-lo", e são traduzidas em enunciados que dão vida à imaginação e à curiosidade.

Cabaças que falam

No caso do mundo andino, demos exemplos das histórias escritas no Equador em cabaças, que tem a casca dura parecida com madeira e incorporaram a técnica tradicional do “mate burilado” existente antes da invasão espanhola. Agora, buriladas e pirogravadas com técnica refinada, as cabaças contam histórias num trabalho decorativo e artístico feito com um pirógrafo – aparelho elétrico em forma de caneta com ponta de metal, que usa o calor para gravar ilustrações, desenhos e textos com impecáveis requintes estéticos.

Foram mostradas, como exemplos, oito cabaças, a maior do tamanho de uma bola de basquete, a menor da dimensão de uma laranja, com narrativas sobre a vida doméstica, o relacionamento com os pais, a educação das crianças, o namoro, o casamento, o cultivo de plantas, a colheita, o pastoreio do gado, os costumes, os conflitos, a luta pela terra.

Sobre o Peru, destacamos o projeto “Cuentos Pintados” da Universidad Nacional Mayor de San Marcos (UNMSM) concebido pelo historiador Pablo Macera e a antropóloga Rosaura Andazábal, que publicaram 25 livros de autores indígenas em edições bilingues (espanhol e idiomas nativos), com narrativas ilustradas e uma rica iconografia referentes aos saberes que circulam na oralidade.

Os autores de “Cuentos Pintados” desenham os cenários, os personagens principais e secundários, as formas como se relacionam, os conflitos e agressões, os heróis e os bandidos, com todos os componentes básicos do enredo dos contos populares russos estudados por Vladimir Propp. Aqui as ilustrações servem de guia para a narrativa oral, que originalmente não continha textos escritos, como agora nas edições bilingues, que transcrevem as falas do narrador.

Na escrita, a edição cuidadosa da UNMSM respeita a variedade do espanhol indígena com marcas das línguas quéchua, uma hibridez linguística que é fruto das línguas em contato. Por isso, o texto não segue a norma padrão da língua espanhola considerada preconceituosamente como a “forma certa de falar e escrever”.

- “O resultado foi um esplêndido quechuanhol, no qual a escrita está transpassada pela oralidade” – escreveu Macera, para quem nós não estaríamos falando hoje espanhol, português, francês, italiano – que eram variantes “erradas” do latim clássico - se o Império Romano tivesse conseguido impedir o uso do “errado” latim vulgar. Essa discussão se deu também em vários outros países.

Narrativas gráficas

No Brasil, a antropóloga Berta Ribeiro denominou de narrativas gráficas a literatura indígena similar aos cuentos pintados do Peru, onde viveu exilada e pôde observar a literatura andina. Ela estimulou os Desana Umúsin (Firmiano Lana) e seu filho Tolamãn (Luis Lana) – “filhos dos desenhos do sonho” - a publicar “Antes o Mundo Não Existia”, em 1980, que quinze anos depois abriria, em nova edição, a coleção Narradores Indígenas com outros mitos: a origem da noite, o roubo das flautas sagradas, o benzimento da moça na sua primeira menstruação e orações para curar doenças. Os desenhos do primo Feliciano Lana percorreram o mundo em exposições na Europa.

O Mito Tukano – Histórias proibidas do Começo do Mundo e dos Primeiros Seres escrito pelo kumu Gabriel dos Santos Gentil e publicado em edição bilingue tukano-português na Suíça, foi o outro livro mencionado, que reflete o estranhamento do mito do Velho Testamento, no qual o criador é figura masculina, sem útero para procriar, ao contrário da avó do mundo – a Ye´pá – que foi fecundada pela música, o que provocou, uma explosão, que lembra a teoria do Big Bang sobre a origem do Universo.

As ilustrações variam de livro para livro, em algumas são dominantes, em outras cedem espaço para o texto, como em Moqueca de Maridos – Mitos Eróticos, com narrativas em seis línguas indígenas faladas em Rondônia, cujos autores são 32 narradores e tradutores gravados por Betty Mindlin, para quem “escrever muda o modo de pensar e de narrar, mas talvez a escrita e a tradição oral não sejam tão incompatíveis como se imagina e se divulga”.

São muitas publicações monolíngues ou bilingues. O projeto “A natureza segundo os Ticuna” - povo transfronteiriço que habita territórios dentro de três países: Brasil, Peru e Colômbia – editou O Livro das Árvores organizado pela artista plástica Jussara Gruber com desenhos individuais e textos coletivos dos Ticuna sobre flora e fauna regionais, a relação deles com a floresta e o significado de espécies nativas para sua sobrevivência física e cultural. Uma delas, a samaumeira, escurecia o mundo porque a preguiça-real prendia lá no céu os seus galhos. O quatipuru ajudou a derrubar a árvore, clareando o mundo, o tronco caído formou o rio Solimões e os galhos, os afluentes e os igarapés, incluindo o sagrado igarapé Eware.

Três volumes dos Mitos Ticuna da Coleção Eware são frutos de oficinas realizadas com professores bilingues, assim como o livro Tchorü Duṻṻ güca' Tchanu - Minha Luta pelo meu povo - editado pela Eduff, ricamente ilustrado com desenhos, fotos, mapas que  complementam o texto autobiográfico do sábio Pedro Inácio Pinheiro.

Jacaré huni kuin

Citamos ainda “Índios no Acre: história e organização” escrito por professores bilíngues de nove etnias no curso da Comissão Proíndio (CPI-AC). Eles encontraram uma saída para enfrentar a incompatibilidade entre a versão indígena e a científica sobre o povoamento da América. Não hesitaram em incorporar ambas: uma, que circula nas universidades, de uso externo, narra a passagem pelo estreito de Bering durante a última era glacial. A outra de uso interno, recolhida por Edson Ixã, professor Huni Kuin (Kaxinawá), conta a travessia feita na costa de um jacaré gigante. Versões de outros povos não apenas indígena, mas também africanos, foram inseridas no livro.

Textos de autoria de escritores indígenas foram mencionados, entre outros: Aylton Krenak, membro da Academia Brasileira de Letras, Eliane Potiguara, Marcia Kambeba, Edson Kayapó, Daniel Munduruku, Ademario Payayá, Tiago Nhandewa.   

A exposição do projeto “Poéticas da Oralidade Indígena no Contemporâneo: Cartografias Amazônicas” aprovado pelo CNPq, finalizou a aula inaugural. Dele fazem parte 13 programas de pós-graduação e 2 licenciaturas de universidades amazônicas. Seus principais protagonistas são indígenas que, em registros audiovisuais bilingues (língua indígena-português), já começaram a gravar diferentes gêneros de sua livre escolha: narrativas cosmológicas e de contato, histórias de vida, rituais, poesias e canções.

- Nossa proposta prioriza as poéticas da oralidade, as línguas indígenas e seus usos sociais, capazes de visibilizar diferentes cosmovisões indígenas, de instaurar uma percepção mais plural do contemporâneo – escreveu Ivania Neves, destacando que os indígenas serão os autores e não “meros informantes”. O objetivo específico é produzir mapas das poéticas da oralidade e identificar as línguas indígenas para revelar-nos a Amazônia brasileira, porque “A Amazônia que nós habitamos e a que nos habita não são as mesmas” - diz Gerson Albuquerque, coordenador na UFAC do PPGLI – Programa de Pós-Graduação em Letras: Linguagem e Identidade.

O resultado final será publicado em livro e em um documentário audiovisual, dando continuidade a outro projeto “O Mapa das línguas indígenas no estado do Pará” do Programa de Letras da UFPA iniciado em 2021, em plena pandemia.

No debate que se seguiu à aula inaugural, alunos indígenas, professores e representantes da Secretaria de Educação se manifestaram com perguntas, observações e comentários sobre narrativa e educação indígena. A reitora Guida Aquino e a pró-reitora de Graduação Ednaceli Damasceno, presentes no evento, manifestaram apoio ao projeto.

Que história é essa?

A aula terminou com a paródia ao programa televisivo “Que história é essa Porchat?”, onde convidados contam histórias e no final são interpelados pelo humorista Fábio Porchat:

- Você morreu. Chega no céu. O que deve ter lá senão você não entra?

As respostas são as mais diversas. A minha seria:

 - Indígena. Se não tiver no céu literatura e música indígena, eu não entro. Não entro.

- Professor, o senhor já entrou. Aqui é o céu - falou a professora Simone.

Como vale o que é falado e ouvido, quando não foi escrito e lido, entrei primeiro no céu e só depois no CEL - o Centro de Educação e Letras da UFAC,  a convite de sua diretora Simone Cordeiro

A entrada no céu ocorreu no dia seguinte, quando ouvimos “o barulho da vida saindo de corpos indígenas" nas gravações de histórias contadas por cinco alunos em quatro diferentes línguas ancestrais: 1) Sabá Manchineri: 3) Txima Inani Bake (Huni Kuin); 3) Sheré Noke Kuĩ (Katukina), 4. Siná Yawanawa; 5. Siã Inu Bake Huni Kuin, os dois últimos filmaram também os outros colegas com o apoio do professor Amilton Matos. As cinco narrativas serão resumidas em outro texto.  O artista plástico Cledeilton Huni Kuin também produziu uma narrativa gráfica.

P.S. 1 – A UFAC participa do projeto Cartografias Amazônicas através do PPGLI coordenado por Gerson Rodrigues com a participação, entre outros, dos docentes Shelton Lima e Francisco Bento da Silva, além do Curso de Licenciatura Indígena do campus Floresta, em Cruzeiro do Sul, coordenado por Maria Isabel Afonso e José Alessandro.    

P.S. 2 – As fotos das cabaças foram feitas em aulas com crianças do ensino fundamental em 5 escolas no Rio e em Niterói, duas das quais recentemente, que serão objeto de outra crônica.   

Referências

1. Como amansar a escola? O barro, o jenipapo e o giz: http://www.taquiprati.com.br/cronica/1409-como-amansar-a-escola-o-barro-o-jenipapo-o-giz

2. Entre a maloca e o castelo, o Belão: http://www.taquiprati.com.br/cronica/132-entre-a-maloca-e-o-castelo-o-belao

3. Territorios Narrados: o menino Jesus Arhuaco: http://www.taquiprati.com.br/cronica/1087-territorios-narrados-o-menino-jesus-arhuaco-en-espa

4.  Narrativa gráfica Dessana: desenhando os sonhos: http://www.taquiprati.com.br/cronica/136-narrativa-grafica-dessana-desenhando-sonhos

5.  Livro bilingue Tikuna: morro por essa terra: http://www.taquiprati.com.br/cronica/1134-livro-bilingue-ticuna-morro-por-esta-terra-

6.  Os índios na Copa: Oga mitá: https://www.taquiprati.com.br/cronica/1402-os-indios-na-copa-o-jogo-em-oga-mita

7.   A Cura da doença: Feliciano Dessana e os Kokama: https://www.taquiprati.com.br/cronica/1524-a-cura-da-doenca-feliciano-dessana-e-os-kokama

8. Na maloca, uma câmara na mão - https://www.taquiprati.com.br/cronica/1172-na-maloca-uma-c

9. Constantino, museólogo Tikuna na canoa das almas - https://www.taquiprati.com.br/cronica/1007-constantino-museologo-tikuna-na-canoa-das-almas

10. Mãe Cici de Oxalá e os analfabetos da oralidade - https://www.taquiprati.com.br/cronica/1743-mae-cici-de-oxala-e-os-analfabetos-da-oralidade

11. A Escola Yanomami: leva e traz histórias - https://www.taquiprati.com.br/cronica/1369-a-escola-yanomami-leva-e-traz-historias

Los Tres Chanchitos:  oralidad y escritura en lengua indígena

Texto: José R. Bessa. Traducción: Consuelo Alfaro Lagorio

La oralidad es el ruido de la vida que tenemos dentro de nuestro cuerpo”. (Alcindo Moreira Wherá Tupã, 2015).

Si el tercer chanchito urbano construyera su casa de ladrillo y cemento en la ciudad, podría ser derribada por el huracán y las lluvias, como vimos en las recientes imágenes televisivas de las tragedias de Florida, Valencia y Porto Alegre. Sería más seguro salvarse en casas de paja y madera que resisten al soplo del lobo cortante como un tifón, si las construyeran en medio del bosque los otros dos chanchitos, utilizando una técnica indígena que añade “material invisible”: dirección del viento, rotación del sol, árboles de ubicación y cursos de ríos, como las malocas Suruí-Aikewara en la Tierra Indígena (AP) Sororó, que quedan así protegidas de vientos y tormentas.

Este informe descrito en el proyecto sobre cartografías amazónicas, coordinado por Ivania Neves, del Programa de Posgrado en Letras de la Universidad Federal de Pará (UFPA), abrió nuestra clase inaugural Lenguas y narrativas indígenas: las historias que se cuentan, impartida el lunes (4) para 76 estudiantes del Curso de Formación de Docentes Indígenas en el campus Floresta de la Universidad Federal de Acre (UFAC), en Cruzeiro do Sul. Recordamos que, en el taller de conteo, el viejo narrador Umassu Suruí, después de leer el libro infantil Los Tres Chanchitos del australiano Joseph Jacobs, dijo:

- “En las historias que cuentan, ustedes descualifican todo lo que sea técnica indígena. En esta versión de los Tres Chanchitos, la casa de paja es la primera en volar por los aires con el soplo potente del lobo. Pero aquí en nuestro pueblo, el viento no derriba las casas que construímos, como ocurre en las ciudades, cuando los edificios de ladrillo se caen y matan a mucha gente”.

Ni siquiera el mundo académico escapa al eurocentrismo. Un investigador alemán, en una conferencia celebrada en 2005 en Bielefeld, citó el castillo medieval de piedra de esa ciudad construido en 1240-1250 y lo equiparó con la escritura, ya que “ambas duran milenios” y, por tanto, “son superiores a la casa de paja que, al igual que la oralidad, dura poco”.

En el aparte, dije que nací en Manaus, donde los portugueses construyeron un fuerte de piedra en 1669, del que no quedó ni una sola piedra. Pero las casas comunales están allí, en medio del bosque, durante milenios, porque la técnica de construirlas permanece, transmitida oralmente de generación en generación. La oralidad, lejos de ser efímera, garantiza la permanencia de la maloca.

Territorios narrados

Más que del material utilizado en la construcción, la fragilidad depende de la política de preservación del patrimonio y la memoria. Quien está de acuerdo con esto es la Facultad de Arquitectura de la Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que creó la disciplina Arquitectura y Cosmociencia en 2015 e invitó a dos sabias Xacriabá a impartirla. Al final, en las clases prácticas, construyeron una casa tradicional de adobe en el campus de Pampulha, según nos cuenta Célia Xacriabá en su tesis de maestría en la Universidade de Brasilia (UnB).  Explicaron que lo que debe durar milenios no es la casa, sino el conocimiento de cómo construirla. Así, cuando la casa envejece o perece, se construye otra. Y este es el momento aprovechado por la pedagogía xacriabá para transmitir estas enseñanzas a los jóvenes. 

Arquitectura, ingeniería, historia, literatura... El eurocentrismo y la colonialidad han permeado muchas áreas del conocimiento. Debido a que no utilizaban el alfabeto antes de la invasión de América, los pueblos indígenas fueron discriminados por el colonizador por “carecer” de escritura, en realidad eran “independientes de este tipo de escritura” –alfabética – innecesaria hasta entonces para la creación y reproducción. de las culturas amerindias, que utilizaban otras formas de registros escritos no alfabéticos desconocidas por la propia academia, además de la oralidad. Esto fortaleció el prejuicio colonial, que trataba a las lenguas indígenas como inferiores, a pesar de tener todos los atributos de cualquier lengua.

Con base en Río Babel - la historia de las lenguas en la Amazonía, en nuestra charla resumimos las políticas lingüísticas que reprimieron el habla y las narrativas indígenas y analizamos históricamente el desplazamiento lingüístico para explicar la hegemonía inicial de la Língua Geral y luego del portugués, así como el destino de las lenguas amerindias y los conocimientos que en ellas circulan. De las más de 1.000 lenguas que se hablaban en la Panamazonía, cientos han sido silenciadas y exterminadas. El glotocidio enterró muchas narrativas, pero la resistencia, que tomó diversas formas a lo largo de cinco siglos, ahora se manifiesta en proyectos literarios para salvaguardar la memoria y el patrimonio en países amazónicos como Colombia, Ecuador, Perú y Brasil.

En Colombia, el proyecto Territorio Narrados del Plan Nacional de Lectura y Escritura del Ministerio de Educación Nacional ya ha producido alrededor de 40 libros en lenguas ancestrales en los últimos diez años, con el objetivo de dar visibilidad a la diversidad cultural del país y dar a conocer la musicalidad de las lenguas colombianas. Los libros creados colectivamente y utilizados en las escuelas incluyen glosarios para facilitar la lectura de los estudiantes.

Territorios Narrados valora las diferentes formas de registro de la lengua: la oralidad y todo tipo de registro, no sólo alfabético, cuya lectura permite comprender el territorio donde florecen las culturas. Reconoce que “se escriben también en las manillas, en los collares, las hamacas y las mochilas”, cestas, cerámicas, bolsas, telas, paja y todo tipo de artesanía. "Todos estas escrituras, formas de ver el mundo, de compreenderlo y habitarlo se traducen en palabras que le dan vida, como arcilla, al pensamiento, a la imaginación y a la curiosidad”.

Calabazas parlantes

En el caso del mundo andino, dimos ejemplos de historias escritas en Ecuador sobre calabazas, que tienen una cáscara dura similar a la madera e incorporaron la tradicional técnica del “mate cincelado” que existía antes de la invasión española. Ahora, cinceladas y pirograbadas con refinada técnica, las calabazas cuentan historias en obras decorativas y artísticas realizadas con un pirógrafo - un dispositivo eléctrico en forma de bolígrafo con punta de metal, que utiliza calor para grabar ilustraciones, dibujos y textos. con impecable refinamiento estético.

Como ejemplos, mostramos ocho calabazas, la mayor, del tamaño de una pelota de baloncesto, la menor, del tamaño de una naranja, con narrativas sobre la vida doméstica, las relaciones con los padres, la educación de los hijos, el noviazgo, el matrimonio, el cultivo de las plantas, la cosecha, el pastoreo de ganado, las costumbres, los conflictos, la lucha por la tierra.

En relación al Perú, destacamos el proyecto “Cuentos Pintados” de la Universidad Nacional Mayor de San Marcos (UNMSM) ideado por el historiador Pablo Macera y la antropóloga Rosaura Andazábal, que publicó 25 libros de autores indígenas en ediciones bilingües (español y lenguas nativas), con narraciones ilustradas y rica iconografía referentes al conocimiento que circula oralmente.

Los autores de “Cuentos Pintados” dibujan los escenarios, los personajes principales y secundarios, las formas en que se relacionan entre sí, los conflictos y agresiones, los héroes y los bandidos, con todos los componentes básicos de la trama del cuento popular ruso. estudiado por Vladimir Propp. Aquí las ilustraciones sirven de guía para la narración oral, que originalmente no contenía textos escritos, como ahora en ediciones bilingües, que transcriben los discursos del narrador.

En la escritura, la cuidada edición de la UNMSM respeta la variedad del español indígena con marcas de las lenguas quechuas, una hibridación lingüística que es resultado de las lenguas en contacto. Por tanto, el texto no sigue el estándar del idioma español, considerado prejuiciosamente como la “forma correcta de hablar y escribir”.

- “El resultado fue un quechuanhol espléndido, en el que la escritura está impregnada de oralidad” – escribió Macera, para quien hoy no hablaríamos español, portugués, francés, italiano – que eran variantes “incorrectas” del latín clásico – si el Imperio Romano hubiera logrado evitar el uso del latín vulgar "incorrecto". Esta discusión también tuvo lugar en varios otros países.

Narrativas gráficas

En Brasil, la antropóloga Berta Ribeiro llamó narrativas gráficas a la literatura indígena similar a los cuentos pintados del Perú, donde vivió en el exilio y pudo observar la literatura andina. Animó a los dos Desana - Tolamãn (Luis Lana) y  su padre Umúsin (Firmiano Lana)  “ambos hijos de los dibujos oníricos” – a publicar “Antes o Mundo Não Existia”, en 1980, que quince años después inauguraría, en una nueva edición, la Colección Narradores Indígenas con otros mitos: el origen de la noche, el robo de flautas sagradas, la bendición de la niña durante su primera menstruación y oraciones para curar enfermedades. Los dibujos del primo Feliciano Lana recorrieron el mundo en exposiciones por Europa.

El Mito Tukano – Historias Prohibidas del Principio del Mundo y de los Primeros Seres escrito por el kumu Gabriel dos Santos Gentil y publicado en edición bilingüe tukano-portugués en Suiza, fue el otro libro mencionado, que refleja un distanciamiento del mito del Antiguo Testamento, en el que el creador es una figura masculina, sin útero para procrear, a diferencia de la abuela del mundo -Ye'pá- que fue fecundada por la música, lo que provocó una explosión similar a la descrita por teoría del Big Bang sobre el origen del Universo.

Las ilustraciones varían de un libro a otro, en algunas son dominantes, en otras dan paso al texto, como en “Sancocho” de Maridos – Mitos Eróticos, con narraciones en seis lenguas indígenas habladas en Rondônia, cuyos autores son 32 narradores y traductores registrados por Betty Mindlin, para quien “escribir cambia la forma de pensar y narrar, pero quizás escritura y tradición oral no sean tan incompatibles como se imagina y publica”.

Existen muchas publicaciones monolingües o bilingües. El proyecto “Naturaleza según los Ticuna” - un pueblo transfronterizo que habita territorios dentro de tres países: Brasil, Perú y Colombia - publicó El Libro de los Árboles organizado por la artista Jussara Gruber con dibujos individuales y textos colectivos de los Ticuna sobre temas regionales. flora y fauna, su relación con el bosque y la importancia de las especies nativas para su supervivencia física y cultural. Uno de ellos, el árbol samauma, oscurecia el mundo porque la ranura-real sostenía sus ramas en el cielo. El roedor quatipuru, de la familia de las ardillas, ayudó a talar el árbol, iluminando el mundo. El tronco caído formó el río Amazonas y sus brazos, afluentes y arroyos, incluido el sagrado arroyo Eware.

Tres volúmenes de los Mitos Ticuna de la Colección Eware son el resultado de talleres realizados con profesores bilingües, así como el libro Tchorü Duṻṻ güca' Tchanu - Mi Lucha por mi gente - publicado por la editora de la Universidade Federal Fluminense (Eduff), ricamente ilustrado con dibujos, fotografías y mapas. que complementan el texto autobiográfico del sabio Pedro Inácio Pinheiro.

El caimán huni kuin

También mencionamos el libro “Indios en Acre: historia y organización” escrito por profesores bilingües de nueve etnias en el curso de la Comisión Proíndio (CPI-AC). Encontraron una manera de resolver la incompatibilidad entre las versiones indígena y científica del poblamiento de América. No dudaron en incorporar ambos: uno, que circula en las universidades, para uso externo, narra el paso por el estrecho de Bering durante la última glaciación. El otro, de uso interno, recopilado por Edson Ixã, profesor Huni Kuin (Kaxinawá), narra el cruce realizado en la costa de un caimán gigante. En el libro se incluyen versiones de otros pueblos, no sólo indígenas, sino también africanos.

También aludimos a textos de escritores indígenas, entre otros: Aylton Krenak, miembro de la Academia Brasileña de Letras, Eliane Potiguara, Marcia Kambeba, Edson Kayapó, Daniel Munduruku, Ademario Payayá, Tiago Nhandewa.

La exposición del proyecto “Poéticas de la oralidad indígena en lo contemporáneo: cartografía amazónica” aprobado por el Consejo Nacional de Desarrollo Científico y Tecnológico (CNPq), concluyó la charla. Incluye 13 programas de posgrado y 2 licenciaturas de universidades amazónicas. Sus principales protagonistas son pueblos indígenas que, en grabaciones audiovisuales bilingües (lengua indígena-portuguesa), han comenzado a registrar diferentes géneros escogidas por ellos: narrativas cosmológicas y de contacto, historias de vida, rituales, poesía y canciones.

- Nuestra propuesta prioriza las poéticas de la oralidad, las lenguas indígenas y sus usos sociales, capaces de visibilizar diferentes cosmovisiones indígenas, de establecer una percepción más plural de lo contemporáneo – escribió Ivania Neves, destacando que los indígenas serán los autores y no “meros informantes”. El objetivo específico es producir mapas de las poéticas de la oralidad e identificar lenguas indígenas para revelarnos la Amazonia brasileña, porque “La Amazonía que habitamos y la que nos habita no son las mismas” - dice Gerson Albuquerque, coordinador en la UFAC del PPGLI – Programa de Postgrado en Literatura: Lengua e Identidad.

El resultado final será publicado en un libro y en un documental audiovisual, dando continuación a otro proyecto “El Mapa de las lenguas indígenas del estado de Pará” del Programa de Literatura de la UFPA iniciado en 2021, en plena pandemia del coronavirus.

En el debate que siguió a la charla inaugural, estudiantes indígenas, docentes y representantes de la Secretaria Estadual de Educación dialogaron con preguntas, observaciones y comentarios sobre narrativa y educación indígena. La decana Guida Aquino y la decana de Graduación Ednaceli Damasceno, presentes en el evento, expresaron su apoyo al proyecto.

¿Qué historia es esta?

La charla terminó con una parodia del programa de televisión “¿Qué historia es esta, Porchat?”, donde los invitados cuentan historias y al final son interrogados por el comediante Fábio Porchat:

- Moriste. Llegas al cielo. ¿Qué debería haber allí, de lo contrario te negarías a entrar?

Las respuestas son muy diversas. Yo contestaría:

 - Indígena. Si no hay literatura, música y grafismos indígenas en el cielo, no entraré. No entro.

- Profesor, ya entró. Esto es el paraíso - dijo la profesora Simone.

Como lo que cuenta es lo dicho y oído y no lo escrito y leído, en portugués se pronuncia de la misma forma “céu” y “cel”. Y nosotros estábamos en el CEL - Centro de Educación y Letras de la UFAC, por invitación de su directora Simone Cordeiro.

La entrada al cielo se produjo al día siguiente, cuando escuchamos “el ruido de la vida proveniente de los cuerpos indígenas” en las grabaciones de cuentos narrados por cinco estudiantes en cuatro lenguas ancestrales diferentes: 1) Sabá Manchineri: 2) Txima Inani Bake (Huni Kuin ); 3) Sheré Noke Kuĩ (Katukina), 4. Siná Yawanawa; 5. Siã Inu Bake Huni Kuin, los dos últimos también filmaron a los demás compañeros con el apoyo del profesor Amilton Matos. Las cinco narrativas se resumirán en otro texto. También, el artista visual Cledeilton Huni Kuin produjo una narrativa gráfica.

P.D. 1 – UFAC participa del proyecto Cartografía Amazónica a través del PPGLI coordinado por Gerson Rodrigues con la participación, entre otros, de los profesores Shelton Lima y Francisco Bento da Silva, además de la Licenciatura Indígena en el campus de Floresta, en Cruzeiro do Sul, coordinado por María Isabel Afonso y José Alessandro.

P.D. 2 – Las fotos de las calabazas fueron tomadas en clases con niños de primaria en 5 escuelas de Rio y Niterói, dos de ellas recientemente, que serán objeto de otra crónica.

 

Comente esta crônica



Serviço integrado ao Gravatar.com para exibir sua foto (avatar).

9 Comentário(s)

Avatar
Rocha Coutinho comentou:
13/11/2024
Que coisa linda irmão!!! Eu queria que a sociedade soubesse dessa sabedoria, que pra eles pode ser "básica" mas pra nós seria extremamente inovadora.
Comentar em resposta a Rocha Coutinho
Avatar
Rafael U. comentou:
13/11/2024
Então, essa parte aqui "Mais do que o material usado na construção, a fragilidade depende da política de preservação do patrimônio e da memória." Me faz sentir segurança de que o trabalho que eu quero fazer em volta do rio Calimbá tá certo em trazer essa mensagem. O largo do marrão SEMPRE "alaga, porque ali existe um rio soterrado pela colonização
Comentar em resposta a Rafael U.
Avatar
Frei Florêncio comentou:
13/11/2024
Obrigado pela teimosia da escrita. Parabéns pela mente inquieta. E não esqueça que ainda espero uma resenha sobre o nosso livro Isso tudo é encantado. Rs.
Comentar em resposta a Frei Florêncio
Avatar
Rodrigo Wallace comentou:
13/11/2024
Excelente texto, professor! Viva as Amazônias!
Comentar em resposta a Rodrigo Wallace
Avatar
Marcia Paraquett comentou:
12/11/2024
Como sempre, a crônica está genial, colaborando para nosso conhecimento quanto às tantas vozes indígenas que nos ajudam a ser melhores.
Comentar em resposta a Marcia Paraquett
Avatar
Ana Pizarro comentou:
11/11/2024
Maravillosa reflexion. Como siempre y cada vez mas.
Comentar em resposta a Ana Pizarro
Avatar
Ivânia Neves comentou:
11/11/2024
Em 2021, quando finalizamos o projeto "O mapa das línguas indígenas no Pará", o Bessa me perguntou: "Por que não fazemos o da Amazõnia toda?" Uma pergunta que me deixava sem resposta. Dois anos depois escrevi o projeto Poéricas da Oralidade indígena: cartografias do contemporâneo, em parceria com os Programa de Letras da Amazônia, aprovado pelo CNPQ. E eis que foi justamente ele, com 1) Sabá Manchineri: 3) Txima Inani Bake (Huni Kuin); 3) Sheré Noke Ku? (Katukina), 4. Siná Yawanawa; 5. Siã Inu Bake Huni Kuin, que deram início ao projeto. A oralidade tem muito poder! E essa é apenas uma das lições que aprendi contigo. "Vamos juntos de mãos dadas"! Agora começou!
Comentar em resposta a Ivânia Neves
Avatar
Sabá Manchineri comentou:
10/11/2024
Estimado e bom professor Bessa, nossos agradecimentos por sua importante contribuição na diversidade dos povos Indígenas! Minha felicidade por reencontrar, depois de aproximadamente 20 anos, em um momento desafiador, como muito outros de nossa vida. Mas também, é muito gratificante viver as conquistas, a superação.
Comentar em resposta a Sabá Manchineri
Avatar
Marcilene Kudã Tembé comentou:
10/11/2024