CRÔNICAS

As universidades amazônicas: Bhabha e Foucault

Em: 03 de Dezembro de 2023 Visualizações: 3541
As universidades amazônicas: Bhabha e Foucault

- No início, Bhabha e Michel não queriam conversar comigo. Tentei, tentei. Não foi fácil. Demorou. Consegui finalmente bater o maior papo com eles – disse bem humorada Lourdes Elias Terena na sua defesa de mestrado. Ela se referia a dois autores, cujas obras são leitura obrigatória na Pós-Graduação de universidades brasileiras: Hommi Bhabha, professor do University College de Londres e Michel Foucault, catedrático do Collège de France. Ambos lhe foram úteis para ver a si mesma e a seu povo.

A intimidade com Bhabha surgiu num entre-lugar, quando depois de ler “O local da cultura”, ela passou a chamá-lo de bróder, beliscando-lhe a barriga. Foi aí que entendeu a relação entre o sujeito colonizado e o colonizador. Sacou que o discurso de poder endossa a falsa ideia de superioridade de uma cultura sobre outra. Completou as leituras com a “Microfísica do Poder” e a “Arqueologia do Saber”, ambos escritos pelo Mimi, que senta a porrada nas instituições opressoras e desnuda a relação entre poder e saber.

Mestrandos e doutorandos das nossas universidades amazônicas, indígenas e não-indígenas, enfrentam as dificuldades descritas pela mestra Lourdes Terena lá na Universidade Católica Dom Bosco (MS). Acontece atualmente com os 15 mestrandos e os 10 doutorandos indígenas de 11 etnias do Programa de Pós Graduação em Letras: Linguagem e Identidade (PPGLI) da Universidade Federal do Acre (UFAC) e com os pós-graduandos do PPGL da Universidade Federal do Pará (UFPA).

Será que para entender a Amazônia precisamos mesmo encarar Bhabha, Foucault e autores estrangeiros?  Esse foi o tema da conferência de abertura “Ciência e culturas nas universidades da Pan-Amazônia” desenvolvido por este locutor que vos fala, em Belém do Pará - a Mairi dos Tupinambá, no 20º Seminário de Pesquisas em Andamento (SEPA) Amazônias Plurais, que rolou de 28 a 30 de novembro no PPGL da UFPA coordenado por Ivania Neves.

Monoepistêmico

Universidades públicas e privadas atuam dentro dos nove países da Pan Amazônia, mas até que ponto a Amazônia está dentro delas? A Amazônia, com certeza, nunca entrou na Universidade Livre de Manaus, a mais antiga do Brasil, criada em 1909 no apogeu da economia da borracha e que não teve fôlego para produzir saberes capazes de plantar seringueiras. Era mantida pela borracha, mas desconhecia tudo sobre ela.  

Não existia qualquer preocupação com a realidade amazônica. A Faculdade de Sciencias e Lettras incluiu no seu currículo sete línguas: português, francês, inglês, italiano, latim, grego e o alemão, indispensável para um diálogo nunca realizado com o químico Fritz Hofmann, que produziu na Alemanha a borracha sintética. Discriminaram o espanhol, que já era a língua dominante de países pan-amazônicos, assim como o Nheengatu, que até a metade do século XIX era língua falada pela maioria dos amazonenses.

Havia uma política explícita para desvincular a Amazônia brasileira dos oito países da Pan-Amazônia e da Amazônia indígena, cujos saberes deviam ser apagados. A Universidade de Manáos copiava, de forma subserviente, o modelo monoepistêmico europeu, ao ignorar as línguas indígenas e a gramática de Nheengatu que, três décadas antes de sua fundação, já havia sido elaborada por Couto de Magalhães, com narrativas por ele coletadas. Essa postura etnocêntrica não era apenas regional, mas nacional.

Pensar a Amazonia daqui de dentro se torna, então, um aceno político, um gesto de construção do que temos em comum e diverso, de nossas línguas, histórias, muitas vezes estranhas ao desenvolvimento local. Torna-se necessário criar um pensamento localizado para pensar a nossa realidade a partir, em e para a Pan-Amazônia, sem desprezar xenófoba e provincianamente a ciência de fora, essencial para entender a região.

Governo da língua

No texto escrito para o recém publicado livro “O Governo da Língua”, organizado por Flávia Marinho, Ivania Neves e Rosário Gregolin, lembramos a tensão permanente das universidades entre o compromisso com a ciência, que aspira o universal e com as culturas na qual estão imersas, que são particulares. O então reitor da Universidade de Wurzburg, na Alemanha, Theodor Berchem diz que o conhecimento só pode ser construído no diálogo entre os saberes legítimos gerados nesses dois campos.

Sim, os bróders Mimi e Bhabha são imprescindíveis, desde que as universidades amazônicas promovam um diálogo deles com os saberes tradicionais e populares, incorporados não apenas como objetos de estudo, mas “como referentes de conhecimentos tão válidos quanto os modernos” como defende José Jorge de Carvalho com seu projeto “Encontro de Saberes”. Isto implica em reconhecer os sábios tradicionais como pares, aptos a ocuparem um lugar legítimo no campo do conhecimento.

Uma dessas sábias foi Verônica Tembé (1917-2013) -  Hai Rong Tuihaw na língua tenetehára - lutadora, que conhecia tudo sobre medicina tradicional e sobre a história do seu povo. Ela entrou na universidade e lá permanece na sala que leva seu nome, em um painel feito pelo artista visual And Santtos.

Foi nessa sala que se realizou uma sessão do Seminário de Pesquisas em Andamento (SEPA) realizado anualmente há vinte anos, para que mestrandos e doutorandos discutam com professores suas pesquisas nas áreas de concentração em Estudos Literários e em Estudos Linguísticos. Podem se inscrever estudantes da “Rede de Cooperação Acadêmica da Região Norte”, da qual fazem parte onze programas de Pós-Graduação de universidades do Pará, Amazonas, Acre, Rondônia, Roraima, Tocantins.

Amazônia que nos habita

Sob o olhar de Verônica Tembé, três pós-graduandos expuseram o andamento de suas pesquisas: Bruna Ferro analisa a produção textual de estudantes indígenas e o índice de letramento de discentes no ensino superior; Paula Oliveira estuda o processo de colonização da cidade e o silenciamento linguístico dos povos indígenas de São Caetano de Odivelas, que produz um queijo supimpa; Ednaldo D´Jesus busca olhar a gramática pedagógica Haliti-Paresi e sua contribuição ao fortalecimento dessa língua.

- “A Amazônia surge para o mundo como algo incompleto. A Amazônia que nós habitamos e a que nos habita não são as mesmas” - declarou Gerson Albuquerque, doutor em história social e pesquisador do PPGLI da UFAC. Ele lavou a égua com a conferência magistral “Amazônia: unimultiplicidade de uma presença ausente”.

Os projetos de extensão – prática recente da Pós-graduação – constituem “um grande caldeirão que reverbera na comunidade”, segundo Isabel França, orientadora de teses no PPGL. Ela abordou as práticas decoloniais em linguagem do projeto Emaús e do grupo EncantArtes de contação de histórias e mediação de leitura, avaliados pelas próprias comunidades. Seu colega Augusto Pantoja falou sobre os contos em língua portuguesa, exemplificando com O baile do judeu e A quadrilha do Jacó Patacho de Inglês de Souza. Ao ouvi-lo, deu vontade de reler esses contos.

As novas linhas de pesquisa do PPGL – Línguas e Cosmologias Indígenas e Poéticas e Cosmologias Indígenas foram apresentadas pela coordenadora do PPGL, Ivania Neves e por Tânia Sarmento-Pantoja, em mesa que contou ainda com o relato da doutoranda Márcia Kambeba sobre sua experiência no doutorado. É uma nova universidade que está surgindo, refletindo os brilhos da floresta, atenta aos saberes milenares produzidos pelos povos originários, que busca incorporar em seus currículos.  

Brilhos da floresta

Escrito em nheengatu, português, inglês e japonês, a bióloga do INPA Noêmia Kazue relata no livro “Brilhos na floresta” a entrada noturna na selva, numa noite sem lua, com o objetivo de pesquisar fungos bioluminescentes. Foi acompanhada por Aldevan Baniwa com milênios de experiência de quem nasceu na Cabeça do Cachorro (AM) e aprendeu ouvindo as histórias do pai Baniwa e da mãe Tukano. Takehide Ikeda da Universidade de Kyoto e a linguista Ana Carla (INPA) fizeram parte da comitiva.

Depois de uma boa caminhada, o Baniwa pede que todos apaguem suas lanternas. Durante dez minutos, mergulhados em intensa escuridão, os olhos se acostumaram com o breu. Foi aí que os cogumelos deslumbrantes, resplandeceram em toda sua majestade. Parecia até uma cintilante árvore de natal. Eles nunca mais esquecerão aquele espetáculo, que pode ser observado na floresta amazônica, mas também na mata atlântica, no cerrado e em biomas de outros países.

- Já andei muito por florestas, de noite, mas nunca vi isso antes – disse Ikeda, intrigado.

- Você experimentou apagar a lanterna?  Os cientistas deviam saber que nem tudo que a gente procura, pode ser encontrado iluminando. Às vezes, para ver, é preciso desiluminar – disse Aldevan.

De boa, Bróder. As universidades amazônicas precisam varrer todo o entulho e desiluminar para assim poder ver o brilho da floresta e desmontar os preconceitos que ainda dominam muitas delas.

Referências:

1. Marinho, Flávia, Neves, Ivânia e Gregolin, Rosário: O Governo da Língua – uma perspectiva discursiva sobre o lugar da língua nas relações de poder no Brasil. Guarapuava. Unicentro. 2023.  Disponível para download em: https://drive.google.com/file/d/12emP3QMHPk46ky45-5YGn3REBAfXM3rc/view

2. Gerson Albuquerque - Amazônia: unimultiplicidade de uma presença ausente”.-  https://www.youtube.com/watch?v=aAjBq96GXJo

3. Noemia Ishikawa, Aldevan Baniwa, Ana Carla Bruno e Takehide Ikeda: Brilhos na Floresta. Coedição Editora INPA / Editora Valer. Manaus. 2019.

4. Augusto Sarmento-Pantoja. Memórias de outros tempos: a resistência em tempos transcontemporâneos. Belém (Mairi). UFPA-Editor Abaete.2023

5. Márcia Wayna Kambeba. Saberes da Floresta. São Paulo, Jandaíra. 2020.

6. Conceição Campos. À luz do Candeeiro. Contos de assombrações amazônicas e de medos fabulosos. Rio de Janeiro. Engenho 2023

7. Maria de Lourdes Elias Sobrinho: Alfabetização na língua Terena: uma construção de sentido e significado da identidade Terena da aldeia Cachoeirinha – Miranda – MS. UCDB. Campo Grande. 2010

8. José R. Bessa Freire. Para nunca mais falar com o espelho. Diário do Amazonas e Blog Taquiprati.  Manaus.  15 de agosto de 2010. Resenha de dissertação de mestrado. https://www.taquiprati.com.br/cronica/876-para-nunca-mais-falar-com-o-espelho e "As línguas indígenas e as Universidades na Amazônia"

 

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17 Comentário(s)

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Francisco Christo comentou:
18/12/2023
Muito bom, suas crônicas são muito boas e instigantes. Quando vamos recuperar a nossa memória sobre as atrocidades do golpe de 64?
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rodrigo comentou:
16/12/2023
Excelente cronica professor e sem duvida alguma teremos excelentes trabalhos em breve por meio das pesquisas de Bruno, Paula e Ednaldo, serão cogumelos luminosos de conhecimento que servirá de inspiração para muitos pesquisadores no futuro. Um abraço querido professor.
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rodrigo comentou:
15/12/2023
Brother, posso falar? Essa crônica é uma brasa mora., um brotinho. Tenho certeza que em breve seremos iluminados (assim como os cogumelos fluorescentes da floresta) com belos trabalhos de Bruna, Pàulo e Ednaldo.. Um abraço querido professor.
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Egle Wanzeler comentou:
08/12/2023
Lindo texto, Bessa! Vou trabalhar com ele no Lepete e nas minhas aulas de história da educação.
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Ailton Krenak comentou:
08/12/2023
Bessa te li de manhã, numa ensolarada Vila Velha, aqui mesmo no país Tupiniquim onde estuda minha filha Noua, o sol alumia demais e nem dá pra ver cogumelos, mas nem pisquei nessa crônica de amanhecer o dia, sextou Parabéns querido amigo, tão animado com as frestas na floresta para um pensamento contra colonial- Nego Bispo, já dizia antes de tombar na fria. Descolonizar as línguas ou animar a diversidade linguística no país Brasillis será trabalho pra muitas gerações, ainda mais para quem ja foi declamado extinto, estamos bem na fita, amigo Bessa. Me chama ai pra um Xibé, se estiver vivo prometo que vou. Viva Antônio Bispo dos Santos, o Nego Bispo
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Delayne Brasil (EGC) comentou:
07/12/2023
Quando poesia rima com sabedoria!
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Ermelinda Polizel Guedes (Via FB Fernando Campos) comentou:
04/12/2023
Bom dia, maravilhoso o texto, quanta coisas que o povo não sabe e nem imagina,eu pensei como deve ser passar à noite na floresta muito emocionante sem contar a beleza
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Loretta Emiri (via FB) comentou:
04/12/2023
As competentes e simpáticas palavras do querido professor José Bessa mostram que as influências indígenas já mudaram a universidade brasileira.
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Luiz Pucú comentou:
04/12/2023
José...lendo-te, aqui no quintal, ouvindo a pupunheira chorar e sabiá discursando, sinto como é bom não ser velho e sim histórico que nem tu que conheces o jeito da mistura do conhecer. Resistir ao inimigo só fazendo;e sabes do saber que se soma. E o queijo era bom de mais da conta.
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Ana Silva comentou:
03/12/2023
Que maravilha de texto e de evento. Linda crônica.
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FELIPE JOSE LINDOSO comentou:
03/12/2023
Bessa, Taí, mano. Sempre entendi meu processo de formação como antropólogo não se restringia, ou conformava, na conversa com os chamados "informantes" tão somente as "informações" necessárias para o bom termo do trabalho de pesquisa sendo executado. Na verdade, estava ali aprendendo. Aprender os outros, trocando conhecimentos, compreendendo as motivações é o que vale. E essa sua crônica é, por si só, uma demonstração que só é possível saber alguma coisa na troca dos conhecimentos, e que é necessário muitas vezes apagar a lanterna para ver o que se ocyulta.
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Roberto E. Zwetsch comentou:
03/12/2023
Exclente Bessa, desafio maior do nosso século. RZ
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Angelina Teixeira Peralva comentou:
03/12/2023
Tá cortado no celular, mas no computador está perfeitamente claro. Obrigada por ser uma tão bela ponte entre a Amazônia e nós.
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Mariana Kutassi comentou:
03/12/2023
Os cientistas deviam saber que nem tudo que a gente procura, pode ser encontrado iluminando. Às vezes, para ver, é preciso desiluminar ", grande Aldevan!! ou como diria Manoel de Barros, que sabia tudo, é preciso desver
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Márcia Kambeba comentou:
03/12/2023
Boa tarde meu professor querido. Que lindo seu texto. Pois o Foucault tbm não entendi bem a literatura dele até uma professora da Bahia me explicar a relação dele com minha forma de produção Literária e unido a arqueologia do saber.
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Tania Pacheco comentou:
03/12/2023
Publicado em COMBATE - RACISMO AMBIENTAL - https://racismoambiental.net.br/2023/12/03/as-universidades-amazonicas-bhabha-e-foucault-por-jose-ribamar-bessa-freire/
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Celeste Corrêa comentou:
03/12/2023
Mano, eu assisti há algum tempo atrás uma palestra da Marilena Chaui onde ela fala justamente sobre o conhecimento popular e o saber científico e a importância da interrelação de ambos, o diálogo entre eles. E aí eu penso que não apenas as universidades amazônicas precisam varrer todo o entulho e desiluminar para ver os preconceitos que ainda dominam muitas delas. Outras universidades também precisam entender que os bróders Mimi e Bhabha, por exemplo, podem perfeitamente dialogar com os saberes tradicionais e considerar que podem ser excelentes elementos impulsionadores da ciência
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