- No início, Bhabha e Michel não queriam conversar comigo. Tentei, tentei. Não foi fácil. Demorou. Consegui finalmente bater o maior papo com eles – disse bem humorada Lourdes Elias Terena na sua defesa de mestrado. Ela se referia a dois autores, cujas obras são leitura obrigatória na Pós-Graduação de universidades brasileiras: Hommi Bhabha, professor do University College de Londres e Michel Foucault, catedrático do Collège de France. Ambos lhe foram úteis para ver a si mesma e a seu povo.
A intimidade com Bhabha surgiu num entre-lugar, quando depois de ler “O local da cultura”, ela passou a chamá-lo de bróder, beliscando-lhe a barriga. Foi aí que entendeu a relação entre o sujeito colonizado e o colonizador. Sacou que o discurso de poder endossa a falsa ideia de superioridade de uma cultura sobre outra. Completou as leituras com a “Microfísica do Poder” e a “Arqueologia do Saber”, ambos escritos pelo Mimi, que senta a porrada nas instituições opressoras e desnuda a relação entre poder e saber.
Mestrandos e doutorandos das nossas universidades amazônicas, indígenas e não-indígenas, enfrentam as dificuldades descritas pela mestra Lourdes Terena lá na Universidade Católica Dom Bosco (MS). Acontece atualmente com os 15 mestrandos e os 10 doutorandos indígenas de 11 etnias do Programa de Pós Graduação em Letras: Linguagem e Identidade (PPGLI) da Universidade Federal do Acre (UFAC) e com os pós-graduandos do PPGL da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Será que para entender a Amazônia precisamos mesmo encarar Bhabha, Foucault e autores estrangeiros? Esse foi o tema da conferência de abertura “Ciência e culturas nas universidades da Pan-Amazônia” desenvolvido por este locutor que vos fala, em Belém do Pará - a Mairi dos Tupinambá, no 20º Seminário de Pesquisas em Andamento (SEPA) Amazônias Plurais, que rolou de 28 a 30 de novembro no PPGL da UFPA coordenado por Ivania Neves.
Monoepistêmico
Universidades públicas e privadas atuam dentro dos nove países da Pan Amazônia, mas até que ponto a Amazônia está dentro delas? A Amazônia, com certeza, nunca entrou na Universidade Livre de Manaus, a mais antiga do Brasil, criada em 1909 no apogeu da economia da borracha e que não teve fôlego para produzir saberes capazes de plantar seringueiras. Era mantida pela borracha, mas desconhecia tudo sobre ela.
Não existia qualquer preocupação com a realidade amazônica. A Faculdade de Sciencias e Lettras incluiu no seu currículo sete línguas: português, francês, inglês, italiano, latim, grego e o alemão, indispensável para um diálogo nunca realizado com o químico Fritz Hofmann, que produziu na Alemanha a borracha sintética. Discriminaram o espanhol, que já era a língua dominante de países pan-amazônicos, assim como o Nheengatu, que até a metade do século XIX era língua falada pela maioria dos amazonenses.
Havia uma política explícita para desvincular a Amazônia brasileira dos oito países da Pan-Amazônia e da Amazônia indígena, cujos saberes deviam ser apagados. A Universidade de Manáos copiava, de forma subserviente, o modelo monoepistêmico europeu, ao ignorar as línguas indígenas e a gramática de Nheengatu que, três décadas antes de sua fundação, já havia sido elaborada por Couto de Magalhães, com narrativas por ele coletadas. Essa postura etnocêntrica não era apenas regional, mas nacional.
Pensar a Amazonia daqui de dentro se torna, então, um aceno político, um gesto de construção do que temos em comum e diverso, de nossas línguas, histórias, muitas vezes estranhas ao desenvolvimento local. Torna-se necessário criar um pensamento localizado para pensar a nossa realidade a partir, em e para a Pan-Amazônia, sem desprezar xenófoba e provincianamente a ciência de fora, essencial para entender a região.
Governo da língua
No texto escrito para o recém publicado livro “O Governo da Língua”, organizado por Flávia Marinho, Ivania Neves e Rosário Gregolin, lembramos a tensão permanente das universidades entre o compromisso com a ciência, que aspira o universal e com as culturas na qual estão imersas, que são particulares. O então reitor da Universidade de Wurzburg, na Alemanha, Theodor Berchem diz que o conhecimento só pode ser construído no diálogo entre os saberes legítimos gerados nesses dois campos.
Sim, os bróders Mimi e Bhabha são imprescindíveis, desde que as universidades amazônicas promovam um diálogo deles com os saberes tradicionais e populares, incorporados não apenas como objetos de estudo, mas “como referentes de conhecimentos tão válidos quanto os modernos” como defende José Jorge de Carvalho com seu projeto “Encontro de Saberes”. Isto implica em reconhecer os sábios tradicionais como pares, aptos a ocuparem um lugar legítimo no campo do conhecimento.
Uma dessas sábias foi Verônica Tembé (1917-2013) - Hai Rong Tuihaw na língua tenetehára - lutadora, que conhecia tudo sobre medicina tradicional e sobre a história do seu povo. Ela entrou na universidade e lá permanece na sala que leva seu nome, em um painel feito pelo artista visual And Santtos.
Foi nessa sala que se realizou uma sessão do Seminário de Pesquisas em Andamento (SEPA) realizado anualmente há vinte anos, para que mestrandos e doutorandos discutam com professores suas pesquisas nas áreas de concentração em Estudos Literários e em Estudos Linguísticos. Podem se inscrever estudantes da “Rede de Cooperação Acadêmica da Região Norte”, da qual fazem parte onze programas de Pós-Graduação de universidades do Pará, Amazonas, Acre, Rondônia, Roraima, Tocantins.
Amazônia que nos habita
Sob o olhar de Verônica Tembé, três pós-graduandos expuseram o andamento de suas pesquisas: Bruna Ferro analisa a produção textual de estudantes indígenas e o índice de letramento de discentes no ensino superior; Paula Oliveira estuda o processo de colonização da cidade e o silenciamento linguístico dos povos indígenas de São Caetano de Odivelas, que produz um queijo supimpa; Ednaldo D´Jesus busca olhar a gramática pedagógica Haliti-Paresi e sua contribuição ao fortalecimento dessa língua.
- “A Amazônia surge para o mundo como algo incompleto. A Amazônia que nós habitamos e a que nos habita não são as mesmas” - declarou Gerson Albuquerque, doutor em história social e pesquisador do PPGLI da UFAC. Ele lavou a égua com a conferência magistral “Amazônia: unimultiplicidade de uma presença ausente”.
Os projetos de extensão – prática recente da Pós-graduação – constituem “um grande caldeirão que reverbera na comunidade”, segundo Isabel França, orientadora de teses no PPGL. Ela abordou as práticas decoloniais em linguagem do projeto Emaús e do grupo EncantArtes de contação de histórias e mediação de leitura, avaliados pelas próprias comunidades. Seu colega Augusto Pantoja falou sobre os contos em língua portuguesa, exemplificando com O baile do judeu e A quadrilha do Jacó Patacho de Inglês de Souza. Ao ouvi-lo, deu vontade de reler esses contos.
As novas linhas de pesquisa do PPGL – Línguas e Cosmologias Indígenas e Poéticas e Cosmologias Indígenas foram apresentadas pela coordenadora do PPGL, Ivania Neves e por Tânia Sarmento-Pantoja, em mesa que contou ainda com o relato da doutoranda Márcia Kambeba sobre sua experiência no doutorado. É uma nova universidade que está surgindo, refletindo os brilhos da floresta, atenta aos saberes milenares produzidos pelos povos originários, que busca incorporar em seus currículos.
Brilhos da floresta
Escrito em nheengatu, português, inglês e japonês, a bióloga do INPA Noêmia Kazue relata no livro “Brilhos na floresta” a entrada noturna na selva, numa noite sem lua, com o objetivo de pesquisar fungos bioluminescentes. Foi acompanhada por Aldevan Baniwa com milênios de experiência de quem nasceu na Cabeça do Cachorro (AM) e aprendeu ouvindo as histórias do pai Baniwa e da mãe Tukano. Takehide Ikeda da Universidade de Kyoto e a linguista Ana Carla (INPA) fizeram parte da comitiva.
Depois de uma boa caminhada, o Baniwa pede que todos apaguem suas lanternas. Durante dez minutos, mergulhados em intensa escuridão, os olhos se acostumaram com o breu. Foi aí que os cogumelos deslumbrantes, resplandeceram em toda sua majestade. Parecia até uma cintilante árvore de natal. Eles nunca mais esquecerão aquele espetáculo, que pode ser observado na floresta amazônica, mas também na mata atlântica, no cerrado e em biomas de outros países.
- Já andei muito por florestas, de noite, mas nunca vi isso antes – disse Ikeda, intrigado.
- Você experimentou apagar a lanterna? Os cientistas deviam saber que nem tudo que a gente procura, pode ser encontrado iluminando. Às vezes, para ver, é preciso desiluminar – disse Aldevan.
De boa, Bróder. As universidades amazônicas precisam varrer todo o entulho e desiluminar para assim poder ver o brilho da floresta e desmontar os preconceitos que ainda dominam muitas delas.
Referências:
1. Marinho, Flávia, Neves, Ivânia e Gregolin, Rosário: O Governo da Língua – uma perspectiva discursiva sobre o lugar da língua nas relações de poder no Brasil. Guarapuava. Unicentro. 2023. Disponível para download em: https://drive.google.com/file/d/12emP3QMHPk46ky45-5YGn3REBAfXM3rc/view
2. Gerson Albuquerque - Amazônia: unimultiplicidade de uma presença ausente”.- https://www.youtube.com/watch?v=aAjBq96GXJo
3. Noemia Ishikawa, Aldevan Baniwa, Ana Carla Bruno e Takehide Ikeda: Brilhos na Floresta. Coedição Editora INPA / Editora Valer. Manaus. 2019.
4. Augusto Sarmento-Pantoja. Memórias de outros tempos: a resistência em tempos transcontemporâneos. Belém (Mairi). UFPA-Editor Abaete.2023
5. Márcia Wayna Kambeba. Saberes da Floresta. São Paulo, Jandaíra. 2020.
6. Conceição Campos. À luz do Candeeiro. Contos de assombrações amazônicas e de medos fabulosos. Rio de Janeiro. Engenho 2023
7. Maria de Lourdes Elias Sobrinho: Alfabetização na língua Terena: uma construção de sentido e significado da identidade Terena da aldeia Cachoeirinha – Miranda – MS. UCDB. Campo Grande. 2010
8. José R. Bessa Freire. Para nunca mais falar com o espelho. Diário do Amazonas e Blog Taquiprati. Manaus. 15 de agosto de 2010. Resenha de dissertação de mestrado. https://www.taquiprati.com.br/cronica/876-para-nunca-mais-falar-com-o-espelho e "As línguas indígenas e as Universidades na Amazônia"