CRÔNICAS

Zé Celso: com o vento forte, o papagaio subiu

Em: 09 de Julho de 2023 Visualizações: 4709
Zé Celso: com o vento forte, o papagaio subiu

"Eu hoje vou fugir com o vento / Vou até o firmamento /  

Vou ver a Terra a brilhar, a brilhar" (Zé Celso, 1937-2923).

O papagaio empinado pelo menino Zé Celso dançava no céu de Araraquara (SP), sua terra natal, mas uma inesperada tempestade o molhou, levando-o a fugir com o vento, após agonizar sob o sol. Comovido, o menino pegou o violão, compôs uma música e depois escreveu sua primeira peça de teatro “Vento Forte para um Papagaio subir”, que inaugurou o Grupo Oficina, em 1958, e foi reencenada, em 2008, para comemorar os 50 anos do Teatro Oficina Uzyna Uzona.   

Araraquara, na peça, é Bandeirantes - cidade fictícia do interior de São Paulo. Lá, Zé Celso de carne e osso, aos 71 anos, toca ao piano a trilha musical e contracena com o Zé Celso de 21 anos, interpretado pelo ator Lucas Weglinski. Na cidade que se recupera dos estragos do temporal, ele tem de decidir se volta à vidinha normal de vendedor de livros, ou se atende ao chamado do vento forte para morrer como pequeno burguês e renascer como poeta.  

Mas Araraquara é também qualquer lugar do mundo, onde o papagaio liga o homem ao céu:

- O homem pisando o chão e o papagaio bailando no espaço de repente se transformam numa coisa só. A linha leva a alma do empinador, que por ela sobe e se prolonga, penetrando no corpo do papagaio” - escreve o poeta Thiago de Mello no livro “Arte e Ciência de Empinar Papagaio” .

Imperador do Espaço

Foi assim que Zé Celso fugiu com o vento no corpo do papagaio, chamado por ele de “Imperador do Espaço”. Sua memória lúdica e afetiva é compartilhada por crianças dos seis continentes, marcados indelevelmente pelo papagaio, nascido - dizem - na China, que realiza anualmente o Festival de Subir Mais Alto. No Japão, se promove competições. Ele baila nos céus do mundo inteiro e, é claro, de Manaus.

O titiriteiro Euclides de Souza, o Dadá, aos 87 anos, ainda sonha em montar uma peça de teatro de bonecos com o papagaio, seguindo o roteiro de Abrahim Aleme de retratar Manaus em um filme com um papagaio queidando solto pelos céus da cidade, as crianças correndo atrás por todos seus bairros em busca do “pássaro que reparte a alegria de viver”. No alto, o colorido “banda de asa”. Em baixo, a realidade nua e crua da capital do Amazonas.

O papagaio é tema de diferentes obras de arte: teatro, música, artes plásticas, literatura, cinema. Thiago faz uma lista de pintores, escritores, poetas, dramaturgos, músicos brasileiros e estrangeiros. No Museu del Prado de Madrid telas de Goya mostram o “olhar apaixonado do empinador de papagaio”. O pintor chileno Nemesio Antunes  se valeu do volantín como “elemento plástico sedutor”.

Fascinado pelo brinquedo, Tiago de Mello organizou, em 1961, na galeria de arte do Centro Brasileiro de Cultura, em Santiago do Chile, por ele dirigido, uma exposição de volantínes feitos por Guillermo Prado, que “acordava agoniado no meio da noite para anotar os desenhos e a cores de um volantín fantástico que o visitara enquanto dormia”.

Neruda falava de “una banda de pájaros amarillos que volaban en forma estraña como nadando en el água celeste”.Quando convidava Thiago a visitá-lo na Isla Negra, lembrava: “Compañero, no te olvides de tus volantines”.

Pássaro-serpente

Em Cuba, o cantor Silvio Rodrigues homenageou em uma de suas músicas empinador e fabricante de papagaio, conhecido lá como “papalote”: Qué pájaro perfecto / Cuántos colores, qué lindo canto / El papalote/ Cae, cae, cae, cae, cae.

No Brasil, o papagaio, com nome de pipa, está nos quadros de Portinari, Di Cavalcanti, Guignard e nos óleos e gravuras de Volpi e Heitor do Prazeres, que “captou com perfeição a alegria dos meninos dos morros cariocas empinando papagaios” - escreve Tiago. Também em cronicas, poemas e músicas: Drummond, Otto Lara Resende, Rubem Braga, Tom Jobim.

No Amazonas, Moacyr Andrade, Rita Loureiro, Inácio Evangelista e Zuazo, que trabalhou o papagaio em xilogravuras, mostram seu deslumbramento com “o baile do papagaio no vento”.  

Thiago dedica um capítulo à cidade de Manaus e ao seu brinquedo, com histórias que certamente encantariam Zé Celso. Ele conta que seu filho Manduca estava “completamente seduzido pelo pássaro-serpente”. Com ele, empinou, em 1954, um papagaio na rua Pedro Botelho, em Manaus. Num determinado instante, foi buscar mais linha e deixou o papagaio voando aos cuidados do filho de 4 anos. Ao retornar, Manduca olhava o céu “na direção do nosso papagaio levado pelo vento”. O que aconteceu? - perguntou.

- Ele estava pedindo muito para ir embora - respondeu o filho com convicção.

De braços abertos

Essa pode ter sido a resposta de Zé Celso, que nos deixou nesta quinta-feira (6) aos 86 anos.  Sua vocação anárquica foi uma escolha de contestação aos podres poderes que a história nos lega e àquela ordem de corrupção, guerras, exploração que até hoje assistimos. As peças por ele encenadas fizeram minha cabeça: Andorra, Galileu Galilei, Roda Vida, Os Pequenos Burgueses, o Rei da Vela. Aguardo ansioso a encenação da peça “A Queda do Céu” que Zé Celso estava adaptando do livro de Davi Kopenawa e Bruce Albert. Na noite anterior ao incêndio - diz o ator Pascoal da Conceição - ele estava preparando o texto quase concluído. A peça vai inaugurar o teatro do Parque do Rio Bixiga.

Já o “Vento Forte” só assisti agora no you tube. Viva Zé Celso, transgressor genial e combatente pela utopia de uma ordem mais justa. Ele gostaria de ouvir a narrativa lendária de Manaus do menino que o papagaio levou recolhida por Thiago de Mello

Foi assim. O menino brincou no quintal de sua casa à tarde toda, “com os olhos iluminados perdidos no espaço”. Quando anoitecia, sua mãe foi chamá-lo e ele não estava mais lá, só seu par de chinelos. Ela olhou para o céu, os dois haviam desaparecido no firmamento. Como Zé Celso, que lá de cima, está vendo a Terra a brilhar, a brilhar, de braços abertos como se fossem as asas de pássaro:  

- Vou abrir bem os meus braços / Me lançar por este espaço / A voar, a voar.

Foto Cláudio Leal. Folhapress

P.S. Naquela que foi talvez a última entrevista  concedida a Cláudio Leal e publicada na Folha SP neste domingo (9), Zé Celso fala que conheceu em Araraquara (SP), num evento, Davi Kopenawa, “um grande intelectual, xamã, que escreveu com o antropólogo Bruce Albert  A Queda do Céu” . Lá pediu a cessão dos direitos autorais para encená-la no teatro e Davi concedeu.

- Aí comecei a trabalhar numa equipe com cinco pessoas, na fase da dramaturgia. Fizemos toda a dramaturgia, mas agora estamos na revisão. Na primeira leitura pública de sua adaptação de "A Queda do Céu", no Sesc Pompeia, uma parte plateia foi pouco reativa? – pergunta o entrevistador. Zé Celso responde:

A maioria foi a nosso favor. Mas tinha uma minoria completamente reativa. Eu saí da reunião cambaleando com energia negativa. Mas é uma minoria. Esse trabalho é muito complexo. O livro tem 700 páginas e, além do texto, remete a muitos comentários. Para Zé Celso, a leitura de A Queda do Céu foi “praticamente a descoberta de um outro continente”. Ele pretende formar um elenco indígena. “Branco vai ser garimpeiro, missionário, funcionário da Funai. A maioria de papéis é com os indígenas”. 

Zé Celso disse que nunca visitou uma aldeia, embora sua avó fosse indígena, de Porto Ferreira (SP), de onde fugiu para morar em Araraquara. “Encontrou meu avô, casou. Eu tenho uma ascendência indígena que me orgulha muito" - disse.

Comente esta crônica



Serviço integrado ao Gravatar.com para exibir sua foto (avatar).

21 Comentário(s)

Avatar
Isabella Thiago de Mello comentou:
30/07/2023
Bessa querido, vou encaminhar esta crônica para Ítala Nandi, eterna musa do Teatro Oficina – quem viu a encenação de “Selva das Cidades” e “Os Pequenos Burgueses” de Bertold Brechdt, e o “Rei da Vela” de Oswald de Andrade, sabe do que estamos falando – viu a coragem de uma das principais gerações do Teatro Brasileiro com Fernando Peixoto, Itala Nandi, Renato Borgui, Othon Bastos e Zé Celso Martinez Correa. Digo que vou encaminhar para Itala para emocionar um pouco mais seu coração que está despedaçado com a partida do diretor e companheiro de longa data. Guardo com carinho o livro “Teatro Oficina, onde a Arte não dormia”, com dedicatória da nossa musa, onde há a clássica foto de Itala e Zé Celso machucados na passeata dos estudantes de Paris, em 68, exatamente quando de lá, da França, Itala vai trabalhar em Cuba, chamada por Thiago de Mello. Reza a lenda que este encontro de Thiago e Itala em Paris, provocou cataclismas. Zé Celso contava que acordou no meio da noite, e não viu mais Itala, foi pra varanda, olhou para o Céu, Itala e Thiago estavam voando, cada um com seu papagaio.
Comentar em resposta a Isabella Thiago de Mello
Avatar
Any Collin comentou:
14/07/2023
Avatar
Lucas Weglinski comentou:
13/07/2023
José Bessa eu li essa belezura
Comentar em resposta a Lucas Weglinski
Avatar
Ivone Andrade comentou:
13/07/2023
José Bessa linda homenagem ao Zé Celso. Me fez voar nas asas do tempo de menina. Brigaduuuh por compartilhar esse belo voo. Bjosss no coração!
Comentar em resposta a Ivone Andrade
Avatar
Magela De Andrade Ranciaro comentou:
13/07/2023
Sem comentários… uma lágrima rolou aqui; tão quentinha, embaçou tudo, sério, sério mesmo!
Comentar em resposta a Magela De Andrade Ranciaro
Avatar
Rodrigo comentou:
12/07/2023
Lindíssima homenagem ao grande artista Zé Celso! Professor Bessa sempre com uma sensibilidade que nos emociona. Eu não sabia dessa adaptação de "a queda do céu" fiquei com vontade de assistir, com certeza será incrível assim como todas as peças que o Zé Celso participou sempre com grande mestria e genialidade. Viva Zé Celso! Um abraço querido professor
Comentar em resposta a Rodrigo
Avatar
Grecia comentou:
12/07/2023
Simplesmente fantástica! Grata por compartilhar.
Comentar em resposta a Grecia
Avatar
Ana Lúcia Pardo comentou:
11/07/2023
Linda a sua escrita poética atravessada pelos vôos do papagaio nas obras de arte e o voo do nosso papagaio revolucionário Zé Celso. Voar é preciso
Comentar em resposta a Ana Lúcia Pardo
Avatar
AstrId Lima comentou:
11/07/2023
E la vai o Bessa empinando o seu papagaio que no lugar de voar em zigzag vai pulando de galho em galho, puxando o fio, ligando árvores, para contar o Zé Celso e tantos outros de uma geração que vai indo para o céu, “levada pelo vento”. Me pergunto a quem restará arte de costruir papagaios e ensiná-los a voar.
Comentar em resposta a AstrId Lima
Avatar
Marcio Pucu comentou:
10/07/2023
Professor muita inspiração no seu texto em homenagem ao Zé Celso, buscando um bom empinador de papagaio como foi o nosso poeta conterrâneo Thiago de Mello. Louvado essa inspiração. Conseguiu trançar dois bons papagaios sem quedar nenhum.
Comentar em resposta a Marcio Pucu
Avatar
Marianna Kutassy comentou:
10/07/2023
Como não sonhar em avoar numa pipa encantada, voar, voar e avistar a Terra a brilhar! Salve Zé Celso, salve Thiago de Mello e salve você, querido Bessa! Por mais pássaros-serpente a aluminar os nossos céus com teatro, poesia e literatura,
Comentar em resposta a Marianna Kutassy
Avatar
João Bina comentou:
10/07/2023
Viva Zé Celso! Voa, voa!
Comentar em resposta a João Bina
Avatar
Nilda Alves comentou:
09/07/2023
Linda, amigo Bessa. A melhor para falar desse maravilhoso Zé Celso. Lembrando o passado e indicando o futuro. Melhor impossível. Isto sim é jornalismo. Grande abraço Nilda PS Passando adiante.
Comentar em resposta a Nilda Alves
Avatar
Ana Chrystina Mignot comentou:
09/07/2023
Como sempre, ler sua crônica emocionada é emocionante. Viva a vida!!!
Comentar em resposta a Ana Chrystina Mignot
Avatar
Valter Xeu comentou:
09/07/2023
Publicado em PATRIA LATINA - https://patrialatina.com.br/ze-celso-com-o-vento-forte-o-papagaio-subiu/
Comentar em resposta a Valter Xeu
Avatar
Romulo Andrade - Nação Cerratense (via FB) comentou:
09/07/2023
"Pra quem viaja ao encontro do Sol é sempre madrugada." Viva !
Comentar em resposta a Romulo Andrade - Nação Cerratense (via FB)
Avatar
Celeste Correa comentou:
09/07/2023
"Há algo nos sonhos, algo profundo e tamanho, que nos torna imortais" Mano, eu fiquei muito emocionada com essa belíssima homenagem que o taquiprati fez para o Zé Celso! É um grande reconhecimento à sua memória na História da dramaturgia brasileira. É importante reconhecer e reverenciar essas pessoas que teimaram em fazer arte neste país, como o Zé Celso e o saudoso Thiago de Mello, e reverenciar também os que ainda teimam e sonham, como o nosso grande amigo e irmão, o titiriteiro Euclides de Souza, o Dadá. Os três, para além da contemporaneidade, têm muita coisa em comum, sendo a principal, o grande amor e dedicação pela arte. Através das suas vidas e dos seus trabalhos, eles nos ensinam que é possível sonhar e renascer como poeta Todo o nosso reconhecimento ao Zé Celso, que lá de cima, está vendo a Terra a brilhar, a brilhar, de braços abertos como se fossem as asas de pássaro, ao Thiago, que nos inspira a acreditar que "vale a pena não dormir para esperar a cor do mundo mudar", e ao nosso amado Euclides, que, aos 87 anos, nos ensina através das suas estórias e dos seus desejos, que podemos voar e ser livres, pois os sonhos não envelhecem jamais!
Comentar em resposta a Celeste Correa
Avatar
Carmelo Ribeiro comentou:
08/07/2023
Belo texto e bela homenagem. Aguardo o livro com as melhores crônicas.
Comentar em resposta a Carmelo Ribeiro
Avatar
Roberto E. Zwetsch comentou:
08/07/2023
Genial ZÉ Celso e sua memória das pipas que tabmém me encantavam na infância e na vida adulta. Uma vez no encontro nacional da PPL, em Chapada Diamantina, no MT, soltamos centenas de pipas. Foi o símbolo do Encontro naquele ano. Inesquecível ... RZ
Comentar em resposta a Roberto E. Zwetsch
Avatar
Eliete Ferrer comentou:
08/07/2023
Que texto maravilhoso! Texto que me fez também voar... Tão poético e criativo como a existência do Zé Ceso na face da Terra! Parabéns e obrigada! Ainda estou voando... Eli.
Comentar em resposta a Eliete Ferrer
Avatar
Maria Dorothea Post Darella comentou:
08/07/2023
Bessa, querido Bessa, Minha indagação semana a semana é a mesma: como você consegue ser tão, mas tão, formidável? Aplaudo sempre. Te desejo o melhor. Abraço ilhéu.
Comentar em resposta a Maria Dorothea Post Darella